27.9.16

Inflação homóloga

Subia pela árvore
indomável
sem retiro outro que não fosse
o impecável estatuto de um lugar sobranceiro.
Preparava os instintos para apreciarem
os lugares subjacentes;
não por usura
não para a experiência cimeira
não queria comenda inerente
ou regalias bastantes para sinecura.

O que me motivava
era a tenção de saber
o que vê um pássaro em voo
à falta de capacidades para o efeito.
Dir-se-ia
uma visão de conjunto
para mais cobrir com o olhar.
Tentativa
(julgava que não vã)
de estender os campos abraçados pelo olhar
ou apenas a irreprimível pulsão
de outro olhar trazer ao olhar.

Fosse peixe em demoradas sabatinas pelos mares
era como se espreitasse no dorso das ondas
só para as conseguir ver do avesso.

A demora que levo congemina tais preparos:
as coisas como são,
são uma fonte que se esgota.
Dizem que é juízo impreparado:
que por dentro das coisas
de que julgamos ser incansáveis hermeneutas
se escondem sentidos sublimes
entrelinhas por acautelar
e tudo se reinventa
quando a folha está repleta de texto.

Concedo.
Sou,
todavia,
argonauta intrépido
que precisa de árvores outrora descamisadas
para deixar porfiar os sentidos avisados
os sentidos que não querem capitular.
Para deixar as mãos
cinzelar as formas das árvores
que a elas veem.

Pois há sempre
um avesso no céu da boca do pensamento,
de maior carestia
do que interstícios a haver por descoberta.

26.9.16

Vertigem

Deslumbrantes
morangos frescos sobre a cama
respiram sobre a noite temporã.
Desalinham-se os céus
devolvida a claridade
apesar da noite
(já noite):
um grande lago azul sobreposto.
Anotação de empreitadas:
que estou a chegar
que trago uma forma diferente de estio
que das lonjuras viajou comigo
o horizonte desembaraçado
e as legítimas rodas dentadas
que prendem os olhos salgados à tela majestosa.
E num dezembro tardio
sem os ósculos caridosos em velhinhas ao acaso
sem as íngremes subidas mordazes
talvez
encontre uma floreira viçosa a destempo
sem garantia de gente importante
ou caução de funcionários atestados.
Os feixes de luz 
incendeiam-se por dentro dos olhos
deixando os frutos sem aroma
e os dedos incapazes de tecerem seu mapa.
Não me assusto.
Não será decerto tarde.
Não serão 
nórdicos gelos a entronizar a inércia.
Não haverá 
casacos de ferro a impedir o movimento
ou algozes desembainhados
a tornar deletérios os pensamentos.
Tenho o horizonte debaixo da manga
e não conto contar o segredo.
Os morangos colhidos
têm dias de repouso em cima da cama
e nem assim a madurez se evaporou.
O aroma obtido dos morangos
continua a ser o vaso comunicante
a aragem continua do quarto
– do quarto portanto pleno.

25.9.16

Sótão

Julgava que o peso do corpo
era preparo bastante
nos interstícios dos ramos arqueados.
Não sabia dos penhores das almas
dos humores sucedâneos
do outono pusilânime
das barcaças caducas no lodo do rio.
Não sabia que havia cores sem cortinas
ou palavras retiradas do exílio
ou suores sem o concurso de esforços.
Ele havia tantas coisas que não sabia
que nem tinha aproximada ideia
das coisas de que podia ter tirocínio.
Passava um pano limpo no retrovisor
de onde se aprumavam as memórias.
Não que tivessem préstimo as memórias;
queria que o espelho fosse varanda nítida
(e sobranceira)
sobre o cós do tempo que estava de véspera.
Não era para trazer um oráculo às minhas mãos,
que adivinhar o que se espera
é locupletar o tempo antes de tempo,
açambarcar conhecimento a destempo:
só queria um espelho desembaciado
para se abraçar
(descomprometido)
ao tempo que ainda era véspera
e dar caução ao muito que se viesse aninhar
nos anéis do saber.

24.9.16

Pela maré

Terçam-se as espadas frias
um banquete soez
aguçam-se os lápis desembainhados
para um logro no tempo.

Sabia ser uma caução sem fundo
um espelho estilhaçado que nada deixa ver
a antinomia de paisagens pinceladas a ouro.
Sabia das noites perdidas
no jeito desastrado
de desarranjar as estáveis considerações.
Sabia dos rios tumultuosos
que apenas são graça
para a paisagem que extasia.
E sabia
que as espadas correm o risco de sangrar
o risco de serem dor funda
tornando impuros os domínios onde se terçam.

Tudo confere.
Das lições marginais que não são aprendidas
das luzes baças que se emprestam ao torpor
dos corpos abandonados às nuvens vetustas
dos anéis despolidos em coreografia bastarda.

Confere.
A lição magistral
dentro de um palco freguês
onde tem lugar
o desalfandegar dos assentos confortáveis.
No dorso de um cavalo mítico
desautorizando esgares aferroados na fealdade
no sentido contrato com a inteireza.

Até que sobrem
sobre o chão molhado e sem vestígio das ruínas
só as palavras doces
os olhares ternos
a sorte tirada no avesso do infortúnio
a homérica assinatura das folhas brancas
à espera de heurísticas formulações.

23.9.16

#76

Aberta a escotilha
uma rosa de espuma sentou-se no rosto.
O sortilégio da manhã
mestiçou-se no metálico bramido do navio.

Oito ou oitenta

Aconchegar o peito vazio
ao cais capitão
dando voltas seguidas ao perplexo sentido.
Ditados descomunais em vestes sumptuosas
a preceito da função
sem rimas,
inúteis.

E o peito vazio sacia-se
enche-se de imagens grossas
imagens espessas e leitosas
com palavras capitais
palavras lustrosas
a eloquência incendiada
na ponta do fósforo teimoso.

O cais devolve a calma parecida
deitando aos olhos sementes frutuosas
de um mar cheio de navios belos
um mar timoneiro
um mar matricial.

E o peito,
já cheio
oferece-se aos preceitos idênticos.
Mandam as convenções
que não se regateie a generosidade.

22.9.16

Miradouro

As mangas arregaçadas limpam o norte
das cotovias tontas que esvoaçam rentes.

Deixei que a árvore se sentasse ao meu colo
desde que duvidei que as nuvens fossem água.

As margens acossadas de um rio
suportam os pesares contristados e nulos.

Depois da noite clara
açambarquei as fogueiras acesas em meu manto.

Convoquei
os sacerdotes evidentes
os mágicos sem eira
os cães famintos
os mendigos serenados em sua humildade
as avenidas largas e vazias de gente
sem esquecer
os tribunícios loquazes
os preguiçosos peritos
os pássaros das ilhas amaciadas
e os tenores de óperas falidas.

Para lhes dizer
em solene proclamação
que destarte sou ciente dos capazes limites
e que nada
nada
desafia os altares onde depus apoquentações.

Sou eu e os meus
em abraços cúmplices
em palavras fundas
em olhares frontais
em sentidos albergados
em casas por nós habitadas
e nada mais.

21.9.16

#75

E a cidade emudeceu
escurecida pelo nevoeiro repentino
como se houvesse perdido os pés
ou debaixo deles o chão se ausentasse.

Antes

Antes que seja tarde
antes que não se possa dizer
antes
e que o depois queira de volta
o antes que não chegou a ter lugar.
Antes que a língua se intumesça
antes que dos fiordes venha o degelo
antes que o mar engula a areia
antes que o sol se perca no fim do mar
antes que tomem as palavras por loucas
antes que os relógios sejam desmentidos
antes que o sangue deixe de ferver
antes dos beijos últimos
antes que a seara matinal entregue o orvalho
antes dos pesares sem remédio
antes que venham deuses dentes desmentidos.
E antes que se possa só dizer antes
para que o “antes que” não atire a lua ao céu
e ela venha devolvida em estilhaços.

20.9.16

Âncora perdida

Pelo fundo desbotado de uma garrafa
impuras as ideias que povoam a angústia.
Os sinos não são subtis
quando ressoam por dentro dos esteios,
desfazendo-os em pedaços.
Dir-se-ia
não ficam ideias de pé
sobram delas vestígios que apenas
apuram o sentido da memória.
O fundo da garrafa
desbotado no vidro arranhado
confere a indecisão:
idas as ideias
partidas para parte incerta
arranjam-se pedaços de chão para vindicar outras.
Não é apocalipse.
A orfandade tem vista curta.
Ditam os corpos lançados num abismo
em sua queda livre
que terá um epílogo almofadado:
não há ninguém órfão de ideias
(tirando
os que nem dão conta da petição de princípio).

#74

To lose Toulouse.
To lose in Toulouse.
Toulouse is too loose.
At Toulouse to lose.

Espólio

Não era o fingimento
o esconderijo arranjado no leque de sombras
a secura dos dias longamente sem chuva
os pretéritos alternativos em manhãs sem regra
que desencavilhavam explosivos interiores.

Podiam as luzes mortiças travar o firmamento.
Podiam os cordões deslaçados
armar armadilhas sem espera.
Podia o espólio terçar cicatrizes incuráveis.

Nada tinha importância
nada se congeminava
no possível furto do tempo
pois não havia algozes capazes.

O espólio desarrumado
um pouco como as ruínas em redor:
desconsumição com raízes frágeis
mas promessa entrelaçada
numa teia diligentemente servida.

O espólio já não entra nas contas.
Já só cinzas
imprestável grilheta seria ao tempo maior.

19.9.16

#73

Não é daninha ideia
ensinar aos neófitos
os ardis das curvas retorcidas
que vêm sem advertência previa.

Infância

Petizes
algazarra desatada:
desmintam os líricos,
os desalmados que desarrumam
a sua permanência no mundo:
não,
não é a inocência que entroniza
a sublime felicidade dos petizes.
Pois se não lhes é dado saberem
dos adultos prazeres
a vertigem do conhecimento
o sexo
a bebida
a transcendência do ilícito
a contrastante transgressão
a imersão da pele
a música nutriente
o mundo para apreciar
a noite telúrica
a aprendizagem dos sobressaltos
a volúpia da identidade
o exemplo da contrição
o sarcasmo
os obnóxios contratempos a anotar
as munições dos sentidos em êxtase.
Desenganem-se os líricos
em vácuas odes à infância:
terão desperdiçado
grande quinhão do que lhes foi creditado.

18.9.16

Dito de outro modo

Especialmente em língua ininteligível,
para não enxugar as entrelinhas:
entontecido pelos tambores que troam
parecendo uma trovoada sem freio:
desalinhadas suposições aquecidas ao sol:
uma multidão faminta, ruidosa, não sigilosa:
dos antepastos aos pulcros que saciam:
tirando à sorte a colmeia sem abelhas:
de um mel forte,
cristalizado nas varandas da alma:
bolçando orações sarcásticas
dançando no seu quê de atónito:
desde as almofadas do sono madraço
vitrinas nuas que dão as tornas à alma:
uma escultural estrofe, sem rima nem métrica:
por outras palavras:
haver tanto para dizer
e as palavras tropeçam em seus estorvos.

17.9.16

#72

Prometi virtudes condensadas. 
Jurei renegar 
todos os desvios à perfeição ousada. 
Não tem mal. 
Sou o meu próprio tribunal de contas. 

Logro

A clepsidra centrípeta
escolhe os pesares certos 
na contagem que conta.
A água vem da fonte fresca
atrás dos montes inclinados 
que escondem segredos.
A lenda dos mineiros algozes
conta que se curvavam diante da clepsidra.
Respeitavam-na como divindade.

(Talvez por falta de estudos
nunca entenderam a lógica da clepsidra
e escolheram profana origem.)

Sobrou para a posteridade
a deificação de um relógio de água,
vulgar como tantos outros mundos fora.
A palavra passou entre gerações.
E hoje
um mito ganhou incontestáveis pergaminhos
(como se diz ser próprio dos mitos).
Temerosa
até a gente que desalinha de crendices
se silencia.
Os mitos ganham vantagem no húmus da agnosia.

Poucos os esclarecidos metem pés ao caminho 
da mutilação do pensamento:
melhor método para não serem
denunciaria por heresia
não se conhece.

16.9.16

#71

Mãos que, por gastas,
esperam pelo tardio anoitecer
entregam-se à lua forte 
em promessas fundas, telúricas. 

Convalescença

Sob o peso das nuvens de chumbo
dizem:
não temos nada a temer.
Os fumos densos
não trazem rios de lividez
não desassossegam as almas fartas.
Diante dos trôpegos madraços
desdizemos a má fortuna
que cobiçam aos demais.
Talvez desenhássemos
círculos perfeitos na orla das nuvens
a tempo de sermos soberanos.
Ou então
atrás das coisas escondidas
sob a penumbra encavalitada
tirávamos à sorte as ruas dardejadas
em danças rituais à medida dos loucos.
Dos loucos de que invejamos estatuto
à espera da desunião entre os elementos axiais
e das nótulas que,
prolixas,
desinquietam os próceres da altivez.
Até sermos todos gente meã
e de um lugar térreo deixarmos de nós
o sumo abundante e mélico.

15.9.16

#70

Aplausos com as mãos cheias
nas piscinas a abarrotar
entre peixes transparentes
e ingénuos acreditadores de tudo.

O mau elemento

Atirem toda a artilharia
os impropérios e os dardos envenenados
as flores podres e o pão bolorento
o opróbrio sancionatório
que faz descer a vergonha.

Atirem tudo de mau ao mau elemento
que,
ao mau ser,
mereceu todos os males cominados.
Não se cansou das torpezas
não largou a insídia de mão
não ganhou para sustos ao fintar demónios
não quis semear simpatia
no púlpito de onde assobiava perfídia.

Desdenhou
vociferou
atraiçoou
mentiu
manipulou
distorceu
disfarçou
esbofeteou (fracos)
fez chover deslealdade
ganhou foros de desagradável personagem
ufanando-se de pergaminhos tais.

Findado o reinado de aleivosias
à mercê do julgamento dos outros
de todos os outros
– dos que aleijou
e dos que foram testemunhas dos danos noutros
– mantém-se impassível
cabisbaixo
estremunhado.

Compõe o ar compungido de vítima.
Vítima de si mesmo.
E agora
que sobre ele todo o mal se abate
e sofre
com a devolução das maldades dantes palco
monta outro teatro doloso:
sem entoar as palavras
substitui-as pelo rosto condoído
que suplica por misericórdia.

Enfim
a misericórdia entrou
no catálogo da sua pessoal gramática.

14.9.16

Diamante

Em tempos
uma lágrima inspirada
em rosto impassível:
daria fortunas para ser herói.

Mas esses eram tempos
em que não sabia nada
julgando muito ser o meu saber.

Hoje
desautorizo os campos férteis
de onde medram os saberes.
Prefiro as interrogações
colocar pontos de interrogação
em finais de frase
desenhar perguntas sem a ousadia
das respostas
beber dos cálices de onde escorre,
em forma de lágrima,
o seu suor lento.

Ainda não sei
se é isto o saber.