12.6.17

Do esquecimento

Diamante delapidado
no probo alguidar da crítica
merecedor que fora dos encómios sem par
atirado para o canto da irrelevância. 
Era sabida a sua prolixa condição
a verve parafrástica
a linguaruda teia opinativa
a admiração que deixava em rasto
depois da sua passagem. 
Dele se dizia
ser um quase sucedâneo divino. 
Um dia
o chão fugiu sob os pés
e no precipício fundo o seu corpo se entregou
como cofre baço onde teriam guarida
os ossos finais:
a mera metáfora da singularidade
que 
(de acordo com as lendas)
fora. 
A sua serventia
era a mesma do cofre sepultado no abismo 
que era a morada ao fim do precipício:
lugar tão remoto,
inóspito,
infrequentável. 
Não havia ninguém para o recordar. 
Agora,
só era um diamante delapidado;
ao final,
deixara de ser diamante. 

#224

A uva à espera de ser doce
na encosta espraiada sobre o rio
varanda que domina o sonho. 

9.6.17

Junho

Nas montanhas ideais
onde os freios deixam de ser freios
e as lâmpadas ensaiam a luz sem peias
no equinócio onde se orquestram as almas
sem pastor para as apascentar 
tirando as meadas das grutas inóspitas
remoendo o trovão disfarçado
sem medo dos medos que sejam
e dos fundos bolsos de onde as mãos
se desabituam do retiro não apalavrado;
sabendo
que somos
maestros da música bebida pelos nossos olhos
e das mãos trazemos os milagres:

a “segunda vida”
(como acertadamente definiste).

Devolvemos as luas brancas
sem trevas impostoras
pedaços de alma sem algozes
prazeres sem confissão
e só a nos devemos a redenção:

do junho não temos nuvem
mas apenas a heurística
o conta quilómetros a zero
e as estradas que quisermos por arrotear
na soberana determinação da vontade
na insubordinação das palavras que compomos
entre os vales adormecidos
a que cuidamos de emprestar fulgor.

#223

Enxuga do húmus do mar
as lágrimas venais
enquanto a maresia adere à manhã.

8.6.17

#222

Garotas púberes
ostentam adiposidades descarnadas
(e se melhor critério seria uma fazenda...).
Oxalá
ao junk food não estivessem agarradas. 

Catedráticos de aviário

O vinho estragado
em rima
com ideias mal urdidas
de velhacos na pose de catedráticos.
A supina soberba
substitui-se
aos pergaminhos que contam;
do escrutínio dispensam-se os preclaros.

(Mal pudera ser
que os demais vegetam em inferior patamar
– ia proclamar “homessa”,
mas a marcha-atrás ditou-se:
um deles,
dos mais sabichões,
tão senhor da erudição
e de certezas incontestáveis,
escreve “omessa”).

São eles
o vinho estragado.

E, todavia,
teimam em serem servidos em finos cálices
e de,
em sua homenagem,
se obedecer a cerimonial de casta.

Pelo meio
destilam páginas e páginas
no bolorento desfilar de decoro,
que insistem em ensinar aos néscios
– especialidade bestunta:
ensinar democracia
e rios de tinta e tinta
sobre igualdade
(um imperativo tão aristocrático).

Mal os espera
o impiedoso adágio
popularizado pelo mesmo povaréu
de que se dizem advogados de defesa
mas em privado se entretêm no vil desdenhar:
o olhar que se desvie para a retórica
e a distração seja arrebanhada para os atos.

7.6.17

Língua franca

Não são as heresias
que matam o mundo.
Deixem os chapéus aninhar-se
depois dos prolegómenos pristinos
e as cavalgadas loucas tomarão sentido.
Houvesse alfândegas caídas
e os homens armados andassem nus
as palavras só seriam ditas se fossem honestas
as noites fossem brancas quando apetecesse
as paredes das casas, caiadas e lisas,
não fossem timoratas
e houvesse vontade para desaprender
e depois voltar a aprender
como se tudo houvesse para aprender.
A língua franca entronizada
e os gestos espontâneos
as palavas sentidas,
sem pesar
e o céu sem ser um fardo a amofinar o corpo
e as coisas todas fossem inteiras
no possível e no impossível
até que não houvesse lugares ermos
e as homenagens fossem distribuídas a eito
equânimes
no desembaraço dos corpos 
desatados de seus freios
mercê da língua franca
toda ela franca,
leal.

#221

A cidade
morde no parapeito da noite
caudal da piromania,
refém dessa estreiteza. 

6.6.17

Golpe de Estado

O torreão sem bandeira
perfuma a decadência
– protestam os usurpados pelo domínio
(e que depois tutelam a usura da vontade).
Sem desvio
os ossos estimados dão à costa
já não aprisionados
na garrafa despojada pelo marinheiro.

Na terra de ninguém
não há bandeiras hasteadas
nem milagres proficuamente doutrinados
ou o sobressalto da tutela que se encorpa.

Às vezes
é preciso o mar alto
um paredão inacessível
a chuva rara
(a que cai nos desertos)
o rosto inteiro na macieza da areia
arrematar uma embarcação sem capitão
e deixar que o mar
o mar alto
ornamente as marés ao acaso.
Para
num golpe furtivo
inesperado
do cais arpoado se distinguir
o torreão que recusa bandeiras.

E sentir
por dentro e sem peias
o ósculo maior do despoder
a esbracejar no rosto então macio.

#220

I'm in 
I mean
I'm mean. 

#219

À mão beijada
(no estofo da desvergonha)
sem capitulação possível. 

5.6.17

Patrocínio

Caminhava sobre arame farpado
no bocal de um precipício
apalavrado.
A cofragem nua
mostrava,
às escâncaras,
o desfastio da vertigem assinalada.

Não aprendia:
tantas as vezes
de despedaçar estrepitoso
depois de si apenas estilhaços
e nem uma única vez
de lágrimas transfiguradas cor.

Nas margens da loucura
mantinha a lucidez improvável
uma âncora invisível,
sem matéria,
o desembaraço das respostas
a volumetria dal atividade ociosa
os costumes sem cais
em anéis fortuitos
e estrofes desalinhadas.

Era tutor de um caos organizado
e pretendia-se noivo do descompromisso
em teias usadas vezes sem conta
em livros empoeirados resgatados da inércia.

Ou
era apenas a rebeldia
uma parecença com rebeldia
convencido de um palco que não era seu.

#218

No avesso das persianas
o esconderijo que resguarda
o insondável. 

4.6.17

#217

Debulhada a lua albina
os prantos viúvos
à espera do logro da alvorada.

3.6.17

Notícias manifestamente exageradas

Não sei
que batuta
orquestrou as vontades.
Não sei
por que opúsculo
levitam as notícias trazidas à pública praça,
nem por que escondidos púlpitos
terçaram suas observações.
Não sei
que crédito merecem pitonisas
arcaicamente
contumazmente
intencionalmente
mitómanas.
Não sei
das costuras
dos que se põem de cócoras
(concedo, em generosidade minha:
sem darem conta)
e bolçam desconhecimento
sobre vidas não suas.
Ainda estou para ter entendimento
sobre as vetustas incapacidades
dos inscientes que dão palco
a estes trovadores que apostrofam
vidas não suas.
Parece um imenso palco
onde se jogam
os ardis de quem de si foge
e se refugia nas
(assim supostas)
apoquentações atiradas para os contrafortes
que são o inferno dos outros,
os outros.
Como se os outros
que vidas outras sentenciam
fossem paradigmas de coisa alguma
em não passando de atores
na desarte de não conseguirem ser
personagens de si mesmos.
Quando as águas chegam às mãos
são águas impuras
fétidas
um logro onde os tiranetes
que se abespinham pelos pecadilhos outros
se despem do que são
na vergonha indizível de serem o que são
deixando à mostra,
depois do verniz destronado,
a decadência de um absoluto vazio.

#216

No recorte do vidro
a penumbra da areia
e o sibilar, em surdina,
do navio mercante.

2.6.17

#215

Daquela medida
rasa
em que cem lágrimas
se articulam,
uma vasa. 

Latitude

Os olhos vendados
adormecem vizinhos da buganvília centrípeta.
As costas viradas na horizontal
deitadas depois na cama de jardim
vedam as sobrancelhas gastas
que vigiam a polinização do pretérito.
Esgaçam-se olhares recolhidos
no justo avesso das mãos ávidas
e a fina usura do tempo
é medida do trespasse admirado.
Não haverá levas iguais
no desabotoar dos segredos.
Nem os segredos divergem
enquanto ficarem segredos.
É por isso que os olhos se embaciam:
não são guturais desejos
que crestam no fogo persistente
de fogueiras venais.
Os olhos
preferem continuar vendados.

1.6.17

#214

For ages
drawing waves within
drowning into the reckless sea.

Medo

De onde chegam
as nuvens que se deitam
sobre o olhar vencido?
Punhais sem mão
bustos em demanda de rosto
serpentes afiveladas
uma corda-garrote atando o pescoço
um teto feito de água
apneia
ósculos de gente-pesadelo
montra com cadáveres para comer
grotescos artistas
o corpo nu na rua
sumidades impantes
madraços suplicando boçalidade
eruditos a braços com estorvos na escrita
o ridículo
velhos curandeiros de sotaina
novos curandeiros sem sotaina
deserto
divindades com mácula
preces
sangue a sair das veias notórias:
medos.
E o medo de ter medo
nos estouvados labéus
labirintos só com porta de entrada
precipícios sem aviso
nevoeiro no quarto
chão sem chão
e o avesso dos medos;
medos ainda
um polvo disforme
tentáculos a perder de vista
em asfixia dos sentidos.
Sem saber
se é pesadelo,
apenas
ou medo tangível
locupletando a lucidez
tornada contumaz.

31.5.17

#213

Atirei para depois de amanhã
o coldre da sentença,
na contrafação da audácia.

Retrospetiva

Corríamos
contra os corrimões
emaciados do tempo.

Atirávamos
os corpos sem sentido
contra os paredões da loucura.

Atravessávamos
as ruas vidradas
no desencontro das luzes.

E sabíamos
jogando as mãos contra paredes
do luto transversal que não incomodava
das proezas avocadas em logros
da angústia do vazio
trespassando o sono em contínuas sessões.

Fomos
sem termos noção das estradas andadas
sem sermos reféns
a não ser
de nós mesmos.

Andámos
no sargaço ao acaso
nas ondas e marés que se compunham
graças aos dedos salgados
e à indomável estrutura da vontade.

Hoje
em retrospetiva
ao menos
sabemos disso tudo.