30.6.17

Sentinela

A meta,
mirífico encestar das nuvens de Juno,
promete-se
no olhar luzidio de uma criança
sem pressa de saber o tempo
em sua alçada. 

O foro acertado
com o granulado dos dias ácidos,
porém
(só para a mnemónica
da impossibilidade da perfeição),
é o estendal onde repousam
à espera
as roupas já caiadas. 

Um ninho
por lírico que se esteie
onde não respiram
os corruptores inescrupulosos
os meãos bastardos sem rosto
os provectos maneiristas dos ardis. 

Aos outros
esperam as caiadas indumentárias 
sopesadas
no vento que beija
o estendal. 

29.6.17

#238

Ao fundo
onde só o fundo se vê
na triagem das impurezas
sob o sol descarnado.

Moderado

Os frutos maduros
inclinados sobre a mesa
servem-se sobre o abrigado olhar.
Um aspirador magro
dentro da bacia da farinha azeda
cozinha os profetas variegados
os demenciais espíritos treslidos
sem âncora para a colheita.
Piores as comendas
as comendas ungidas pela ferrugem
da ultrajada confraria
onde repousam,
ao alto,
os endemoninhados celtas bastardos.
Oxalá,
os pontos atilados no céu burocrático
não desfizessem os sonhos
não desmentissem as ilusões;
oxalá
não fossem teares envelhecidos
senescentes
servis na sua usura.
Pois são
sonhos e ilusões
redutos onde proibida é a entrada
aos vendilhões
aos acrobatas do medo
aos lacraus da incultura.
Batem à porta.
Oxalá
pudessem cruzar-se os dedos.
Mas não há superstição que chegue.
(Temos medo
que sejam os ladrões dos sonhos?)

28.6.17

#237

Aos nomes contrariados
entre vestígios de bruma
e a isenção dos rostos.

Atavismo

Um porventura beato obnóxio
terçou armas ferozes
sarcásticas
contra os arquipélagos que o sitiavam. 
Manobra de diversão
ou simples engasgar de sobrevivência
ninguém
(a não ser o próprio)
podia certificar. 
Era um daqueles dias repetitivos:
o agente convencido
que o demais mundo, 
imensa teia conspirativa,
e ele sua vítima predileta. 
Um dia
orquestrou sua vingança:
haveria
de sequestrar o abastecimento de água
jurar-se informático pirata
e tirar os sentidos à rede elétrica
contaminar com os piores vírus
a rede informática
para que as pessoas se sentissem
outra vez
como nos medievos tempos:
sedentárias sem remédio,
espalhando o caos
subtraindo as interiores bússolas
que conferiam sentido às pessoas. 
Não revelaria a identidade do crime
(que muito prezava a liberdade)
nem pediria resgate. 
Só queria
por um dia inteiro fora
os modernos devolvidos à medieval era
como paga
de o terem inundado com tanta,
e pungente,
modernidade. 

27.6.17

#236

Não sabemos
ouvir a nossa voz
somos mudos
aos ouvidos nossos.

Maratona

O refrão
na fábrica dos sois matinais.

Tira-teimas
entre lenços fartos das varinas.

A manhã
refém do nevoeiro baço.

Os toiros
sem hastes limadas, predadores.

O penhor
das esvaziadas concavidades da lua.

O leitor
dos mares de atalaia.

Tinta da China
em cima de desenhos fracassados.

Uma jura
sem testemunha.

O punhal
desafiado.

O punhal
esventrado no seu teor.

A véspera
dos lagares lavados.

O navio
desenhando o mar visível.

A tempestade
perfeita.

O abraço
no desembaraço das almas.

26.6.17

#235

Será estultícia
ou filosofia de algibeira
dizer
que a morte é uma consequência da vida?

Terramoto

Aparte os desvios tardios,
a vigorosa árvore,
fecunda,
emoldura o sorriso sedento
no rosto gentil que espera.

Aparte os gritos sentidos
as vozes cavernosas
irrompendo da baía das palavras
onde se ensaiam as varandas feéricas
as lembranças dos rios caudalosos
as lembranças do tempo cheio:
o tempo
de que ainda não temos medida.

As pedras duras
não são embaraço:
tecemos as teias que correm
nos corredores paralelos
onde a vertigem dos olhos famintos
estreita as paredes até se poderem abraçar
com as mãos caçadoras.

As pedras duras
esmioladas entre a mansidão das palavras
e nós,
alquimistas supremos,
cuidamos do trono que pertence
às mansas palavras.

25.6.17

#234

No limite
sem esporas
o oráculo vazado
e o corpo feito mar imenso. 

24.6.17

Alquimia

Se a partida aquece
no ponto frágil de um ocaso
desapartam-se as teias
e os ossos dão de si,
alcáçar.
Nos pontos perdidos
da constelação abundante
sobram
as lágrimas fingidas
os desacertos malhados
a sede imensa nos versos femininos.
Para depois
no esbulho da luz tresmalhada
deixar em banho-maria
as magníficas previsões
o tabuleiro onde se cozinha
a incerteza.

23.6.17

O sonho por dentro do sonho

Sitiado nas veredas áridas
onde só as pedras esparsas,
estendidas no chão ao acaso,
resumem a sombra do dia:
sinto
ser penhor de um sonho
ou que o sonho
em sua altivez
em mim encarnou
e deixou em herança
esta esquizofrenia diletante.
Repouso nas arcadas do tempo lento
num interstício apalavrado ao vento
e descubro
no fundo do vale
um riacho que prospera depois da nascente.
A sede bastante
pedia água fresca
que validava o desejo atual.
Em vez disso
em austera demanda
mantive o passo estugado;
não,
a pressa não me fazia refém
e mesmo que a luz se esgotasse
(mercê do inverno macilento)
não eram essas
as faces rosadas da voragem.
Contraía os músculos maxilares
e pedia ao coração o oxigénio todo
que era larga a jornada por diante.
E depois percebi
que o sonho não deixava entender
onde se fundia
o sonho como o que sonho não era.

#233

Já sabemos
o que falta saber
(epílogo da sabedoria).

22.6.17

#232

Emudecido vigésimo de alma
que chegavas
para mitigar as impurezas
do chão gasto pela bruma cinérea.

Sextante

Não é da impressão de apocalipse
nem da tempestade que se abraça ao horizonte
ou das preces infundadas de beatas anãs.

Não é das flores que não medram
nem dos mares incolores e baços
ou das pestes desembainhadas por mastins.

Não é do murmúrio melancólico
nem das trevas enroupadas
ou dos probos com esqueletos no armário.

Não é da boca quente
nem das frágeis palavras que nela estalam
ou dos pastos à míngua de irrigação.

Não é da ousadia tardia
nem do culto esotérico
ou dos padres sem sotaina e sotaque.

Não é da valentia desassisada
nem da demência sem cura
ou dos preâmbulos sem eira.

É da ciência com chão
onde se deitam os corpos ávidos
e irradia o conhecimento sentido.

É do sol escorado
onde se aprendem as prosas
e prospera a fonte fresca.

É das paredes caiadas
onde se desenham sonhos
e cevam os amanhãs acetinados.

É dos olhos profundos
onde repousam os ossos cansados
e se devolve a matéria bruta do ser.

21.6.17

Urbi et orbi

Pressentimento indulgente
na cascada onde,
despedaçados,
peregrinam os tresloucados.
Pressentimento
que oráculos anónimos
travam os desejos sem esteio.
Nas fímbrias de uma janela
no bardo negro do lume disperso
os jovens envelhecem:
endurece-se-lhes a pele
endurece-se-lhes a alma
capitulam.

Capitulam, talvez:

o pressentimento não é loquaz
e o silêncio na roda da gente
intui um amanhã sem paradeiro.

#231

Contrariedade.
Contra a idade.
Contraria a idade.
Contaria a idade.

20.6.17

#230

God is not good.
A missing letter
dooms the self-fulfilling prophecy.

Estorvo

Olhos marejados
no algoritmo das dúvidas
sem as certezas que descompõem,
martírio.
Diziam:
era na profundeza do lago distante
que vinham ao corpo
as candeias acesas
as ameias estudadas no prefácio do júbilo.
Não julgava
ser a empreitada de tanta acessibilidade.
As águas densas
as margens alcantiladas
o lodo viscoso, escorregadio
o ar pesado que descia das montanhas
– tudo conspirava contra as facilidades.
Não fazia mal.
Fora instruído no vagar das contrariedades
e no sopeso de as contradizer.

19.6.17

Peso-pesado

Vitrina sem estátua.
Estátua sem corpo.
Corpo sem cicatrizes.

Beijo sem rosto.
Rosto sem rugas.
Rugas sem idade.

Leis sem Estado.
Estado sem dor.
Dor sem analgésicos.

Lições sem professor.
Professor sem ciência.
Ciência sem escolas.

Pesar sem lágrimas.
Lágrimas sem chão.
Chão sem mangas.

Sotaina sem cura.
Cura sem credo.
Credo sem rituais.

Mar sem maresia.
Maresia sem manhã.
Manhã sem estertor.

Mercado sem moeda.
Moeda sem suserano.
Suserano sem poder.

Luto sem mortes.
Mortes sem sofrimento.
Sofrimento sem viúvas.

Cancela sem fronteira.
Fronteira sem terra.
Terra sem lugar.

Atleta sem desporto.
Desporto sem vitória(s).
Vitória(s) sem orgulho.

Viagem sem mapa.
Mapa sem limites.
Limites sem preconceito.

Vinho sem cerimónia.
Cerimónia sem confrades.
Confrades sem motivo.

Espada sem guerra.
Guerra sem exército.
Exército sem generais.

Bazófia sem pança.
Pança sem cerveja.
Cerveja sem estroinas.

Talheres sem restaurante.
Restaurante sem amesendação.
Amesendação sem gastronomia.

Pureza sem ética.
Ética sem gente.
Gente sem avental.

Livro sem páginas.
Páginas sem cais.
Cais sem musgo.

Palavras sem dificuldade.
Dificuldade sem esforço.
Esforço sem vento.

Corcunda sem médico.
Médico sem arrogância.
Arrogância sem estilo.

Vaidade sem coro.
Coro sem voz.
Voz sem prumo.

#229

Se a rainha vai nua
e a rainha é
_______________
(preenchimento ao cuidado do leitor)
eu passo a adepto da monarquia.

#228

E no avanço do mar
(ressalvadas as devidas dúvidas)
mestres de certezas apocalípticas.

18.6.17

Herança

Uma herança
em forma de gancho
pendurada
sobre o tempo desandado
num murmúrio delongado

(como se fossem prantos de viúvas).

A herança arqueia-se
pesa sobre as costas dobradas
espalha os vidros estilhaçados
na honra vetusta desaguando no nada.

Vem isto a propósito
do mesmo nada
em que desemboca a herança recebida.
Somos o património
que em nós cresceu.

Deserdamos as heranças
e não somos indignos
de quem as legou.

17.6.17

Cegonhas na igreja

As asas recolhidas
segredam os voos crepusculares 
o paciente jogo da rima com o vento
a pose elegante quando
planam 
desenhando os corpos adelgaçados
no palco que é o céu. 
Repousam
nos ninhos que tomaram conta
da torre da igreja. 
As beatas
quotidiana visita da casa
ensaiam leitura cabalística:
terá sido a divindade suprema
a legar o quadro bucólico
que encima a igreja. 
Não sabem as anciãs
que as cegonhas
não voam para os lados de deus. 

16.6.17

Geração

Dos socalcos diurnos
os olhos ávidos de paciência
não capitulam
não podem atar as bainhas
ao olvido das nuvens
que arrumam um lugar. 
Talvez esboce singelo sorriso
sem esgares sibilinos
sem a palidez de um sonho frio
sem a estrada inclinada cheia de armadilhas. 

Contemplo o ocaso
onde os pássaros tardios se esquecem do dia
e as montanhas se fundem na solidez da noite. 

O desembaraço dos castelos inertes
compõe o lago que só existe no olhar,
naquele olhar que ensanguenta a terra noturna
no sangue não lívido
que lhe dá de beber. 

Sou o campo maior
a luz diáfana que trespassa a noite
a fronteira que resguarda a bondade
o sonhador que tira os freios 
às líricas portas dos sonhos indomáveis
o esteta sem território
vindicando das sereias o sorriso lapidar
sem estorvos 
sem despentear 
se não as complexas rodas 
que são leito do adquirido. 

Não quero mais nada
a não ser
tudo 
(e é tanto,
incomensurável)
que às minhas mãos
vem em dádiva.