4.12.17

#393

Regulamentos, mais regulamentos
emolumentos
jumentos
para tudo acabar em lamentos.

Inaugural

Sem a aquiescência dos bravos
porventura
domadores do vento belicoso
novos impérios na embocadura da noite
em comezinhas conspirações
contra monstros não sagrados
falsos sacristães de coisa alguma.
Em sindicância desarmadilhada
intemporal perda de juízo
às mãos de escantilhões enferrujados:
adivinha-se a intempérie
no apinhado céu de nuvens sem ermo.
Todavia
às escuras
contra a tabuada das letras avisadas
vozes guturais deixam murmúrios venais
um quinhão sem posse
ou a terra em hasta sem senhorio
à espera das esperas
nua
pura.
O rendilhado das mãos
é o tear onde se cantam os desejos.
Noto com precisão
no arrotear dos pássaros no céu luminoso
e os archotes empunhados pelo sol
a espada quente que os frios corpos precisam.
Não me convençam das quimeras
nem paredes-meias com labirintos esotéricos:
a palavra-passe é nada
um tremendo, impassível nada
a franquia máxima na terra dos nadas
– a posse emudecida.
Contra os oráculos apodrecidos
tenho um sal profícuo
segredo mal guardado
(não importa)
em desarranjadas ruas à espera de história.

#392

Na ementa das possibilidades
ingenuidade
para derrotar o mundo como ele é.

3.12.17

Portanto

Ouço
o ciciar do vento estouvado
nos degraus dementes
da noite couraçada:
tiro as cortinas das varandas frias
e espreito no canto do olhar
o segredo de uma estrela efémera.

Ouço
os cantos rendilhados
de sereias sem rosto:
desconfio dos prementes pedidos
da comiseração arrematada
dos cultores das estrofes assentadas
por defeito meu e só meu
ou incapacidade de propósito.

Não ouço
o rumor abraseado nas paredes malquistas
o clamor sentido das almas penhoradas;
prefiro a pele desbotada à espera de cor
a tela imperfeita no profícuo pesar
e as palavras bondosas que se ouvem
no desmaiado entardecer.

2.12.17

#391

Quase um nada
a espuma do mar
atravessando minha pele.

1.12.17

Emparcelamento

Estas vielas suadas,
cordas rombas no estertor da voz
alimento baço no arrumo das asas,
descem vertiginosas
sobre o dorso do dia.

Não temos medo.

Os corpos adestrados em multidões meãs
sabem medir as irregularidades do chão
e nele se embebem,
seus habitantes diletos.

Estas vielas suadas
monumentos sem alfândegas
contra os truísmos militantes
e os rostos imaculadamente iguais
oferecem-se:
cascatas pródigas
sobre o pedestal
onde repousam nossos pés.

#390

Mais podem que uma maré
as cores escondidas das sombras
na vez de bíblias sem palco.

30.11.17

Queda livre

Braço longo
afunda-se no poço sem fundo
a resgatar o corpo perdido.
Ou:
bondoso o braço pendido
atraiçoado pelo juízo compassivo
sem saber que do fundo do poço
em trevas sem quimera
há apenas um medonho alçapão
e o corpo é arrastado atrás do braço pendido
deposto
no ergástulo venal
onde se aninha
o lodo calcificado do fundo do precipício.

#389

O frémito incandescente
na jugular desassossegada
sepulta os nós atados.

29.11.17

Dobra

O sangue vazio
arrebatamento venal
de fio a pavio
no lúgubre canal.

Tirada furtiva
em escada gasta
mais ao jeito da estiva
na albarda casta.

Fuga adiada
cavalo errado
em página estonada
no entardecer apurado.

O selo invisível
candeia desmaiada
da palavra comestível
à mão amparada.

Proeza audaz
no corredor estouvado
migalhas do povo sequaz
sem o dobro perdoado.

O epílogo infinito
merecimento ajuizado
sem toga nem guito
no trejeito atordoado.

A manhã consequente
sem luz colhida
no tempo já ausente
na trova dantes vivida.

Bolinha vermelha no canto do ecrã

Ah, os zeladores da moral
heróis de gesta como só ela há!
Passeiam superioridade moral
honrando os demais com lições gratuitas
– para aprendermos
a ser gente de melhor jaez,
assim à sua medida.
Eu, anti-herói inato,
incorrigível dissidente de coisas destas,
confesso:
a maldade insubmissa;
as muitas drogas que consumo;
a promiscuidade irredutível;
o desamor que semeio;
os pobres que olimpicamente ignoro;
os animais que maltratei;
o hedonismo poltrão;
a ira sem remédio.
Daqui me ofereço
à lapidação dos arautos da bafienta moral
(moral pior do que a das sacristias,
por se esconder em sotaina canhestra)
em extático desejo de ser apedrejado
pelo deleite da antítese
da moral por eles sopesada.
(Não sou eu, mas podia sê-lo.
Sem aceitar os libelos
dos vigilantes desta,
ou de qualquer outra,
moral.)

#388

No absoluto segredo
decaio
dócil mensageiro do silêncio.

28.11.17

#387

Comovida
como a vida
como, vida?

Carne viva

O rendilhado da desrazão
orquestra o ocaso repetido
e as mãos frias
tremeluzentes
são o ópio de um rumor incessante.
Dizem o que dizem
astronautas pardacentos do desdizer
peritos no tresler
poltrões ascetas do simulado.
Não quero saber das portas abertas
nem dos atrevidos pescadores de almas
ou dos trovões desmedidos;
por entre as pútridas passagens
nos interstícios dos dias oprimidos
encontro o ouro entre os dedos secos
e deito-o no papel espraiado
no papel que devora
as palavras à boca de cena.
Não peço licença aos deuses
para ser quem sou.
Não trago trela em mim
que das peias congemino altercação
e gritos suficientes para as desmembrar.
Olho sobre o ombro da manhã
mesmo onde o nevoeiro embacia
e juro
contra as juras todas
canto, se preciso for
atiro o corpo desenfreado contra os mastins
no destorpor deslaçado das ferragens inertes.
Sei que às horas ímpares
chegam os murmúrios do vento
e eu retenho na funda alma
a sublime lição neles entranhada.

#386

Que as árvores azedem
no púlpito outonal
antes que seja dezembro.

27.11.17

#385

A porta em segredo
o rumor extático
a corda sobre o tempo.

Taluda

Doses certas de qualquer coisa
no naipe pedido para a visita adiada
bolsos rotos no fundo fundido
a aleatória roda.

Que digam as palavras avulsas
pendentes de versos prometidos.
Que prometam a roleta sem russos
vigários das estrofes amansadas.

Tudo o que eu quero
é deitar os olhos no mar acetinado
levá-los no seio da nau ao alcance do olhar
sem saber onde ter cais
sem saber das sereias que ao mar se prometem.

Às vezes
espreito nos contrafortes do tempo
só para ver se é a sorte grande
minha, taluda diletante.

26.11.17

Molduras sem fotografias

Molduras nuas
à espera de serem ocupadas
com fotografias,
espalhadas pelas paredes,
as descarnadas molduras
todavia
objeto de bondade singular
à espera
que quem delas dá conta
empreste às molduras vazias
imaginadas fotografias
com a licença de um atento olhar.

25.11.17

#384

O cú de Judas
não tenhas como desonroso lugar
não vá sobre ti abater-se
a vergonha da descortesia.

24.11.17

Perguntas às perguntas

Posso trazer na mão suada
a janela dos tresloucados?
Posso dizer não
aos engenheiros da coragem?
Posso ensinar
o leite azedo em lume brando?
Posso tirar do jogo
os reis e as rainhas?
Posso ir ao dia
no mais descarnado de mim?
Posso beber
à espera da estouvada madrugada?
Posso desaprender os pactos?
Posso alinhar as pedras frias
no rio sem margem?
Posso cantar os versos arrependidos
na miragem dos campos sem mapa?
Posso apenas verter no chão quente
as impróprias incógnitas?
Posso traduzi-las
em equações adormecidas
em portas sem número
em corpos desossados
em livros sem rosto
em dedos espontâneos
em cálices frágeis
em camas sem remorsos
em dias sem adiamento?

#383

Teria da misericórdia
um olhar estilhaçado
uma baça noção.

23.11.17

Tomar partido

Tomo partido
no esdrúxulo desaviso dos alquimistas
às avessas com o siso maroto.

Tomo o partido
contra as cozinhas enfumadas
e cozinheiras datadas, obesas, vetustas
e parto do cais alquebrado
antes que a noite pregue uma partida.

Não tomo partido
da gratuita noção do tempo
nem dos arautos da estultícia
ou dos fazedores de circos radiosos.
Não tomo o partido
pelas veigas prometidas
pelos sorrisos contrariados
pelos embustes que refrigeram
em maré contrária da maré fácil;
não tomo partido
se não
nas coisas que as mãos minhas podem domar.

Agilizo as palavras
(as, julgadas, palavras certas)
e intuo a empreitada gorada.
Antes não tivesse tomado partido
quando o partido foi tomado
ou
tivesse tê-lo como cúmplice
quando evitado foi.

#382

Que não se diga
longe;
antes se diga
entrelinhas.

22.11.17

#381

Do outro lado da janela
nevava
pequenas folhas de árvores
(em outonal comprovação).

Nómada

Viagem
solstício
aprendizagem
gosto
estuário
avidez
entardecer
maré
combustão
uníssono
viagem
cobertura
saber
sabor
ancoradouro
aguarela
tirocínio
infinito
perseverança
viagem
mundo
nuvem
nómada
braços
avenida
museu
moeda
síntese
viagem
multidão
idiomas
corpos
suor
gelo
viagem
constante
avidez
projeto
aeroporto
boreal
fortaleza
chuva
diadema
trânsito
rio
avidez
pele
mesa
viagem
margem
música
páginas
sentinela
erupção
viagem
viagem
avidez
viagem.

#380

Desnatado o dia
fica o pôr-do-sol
desmaiado.

21.11.17

Gratuito

Apregoam-se predicados consentidos
como cães fieis em fios de seda,
diuturnos.
Os castelos sem estribo
montados nas nuvens
sem peso
sem gordura
tácteis.
Nas fivelas do tempo
componho música sem estrofes
e ao sonho vêm as álgebras miríficas
os subsídios perenes
paredes texturadas nas rugas das mãos
um olhar poltrão;
pois a noite demora-se
e os corpos pedem água.

Apregoam-se flores garridas
como gatos investindo marradinhas,
ternurentos.
Na embocadura do rio
onde as traves se ajeitam contra os demónios
colhem-se frutos maduros
e a boca enche-se de proveito.
Desenganam-se os virtuosos:
as impurezas traduzem a perfeição
e os corpos não capitulam
na seiva mélica do amor.

Apregoam-se rimas avulsas
os pássaros ruidosos,
insistentes.
O rio ao fundo
rumoreja
e as pernas ávidas sentam-se
quando o banco enferrujado pede companhia
e do peito bolça a irreprimível bondade.
As pessoas dizem:
“não sei, não sei”
na certeza mais segura que lhes sobe à boca
terçando as armas
contra os apoderados das firmezas.

Os cães famintos erram nas ruas vindouras
em trote apressado
contra os endoidecidos vizinhos das ruas vazias
contra o estio forçado.
E eu digo:
oxalá ainda vamos a tempo
de apanhar o tempo entre os dedos
sem desistir das juras
sem legar o peito às cicatrizes fundas
sem o engodo das trevas
sem fantasmas a adejar
esquartejando as janelas abertas
sem posse das coisas em sua inutilidade
sem letras fartas e ininteligíveis.

Só conta
o abraço dos corpos
o enlevo da noite
a macieza da pele adornada
o desejo
um beijo-conforto
émulo do sono em sonhos invejáveis.

Apregoam-se as fadas
quimeras sem nome
e do mais fundo do ser
levamos ao fim do mundo
(se preciso for)
a lava profunda
a terra humedecida com lágrimas
nutriente da noite sem fim;
levamos tudo de nós
e não queremos nada em troca.

#379

Na rede da estultícia
autoproclamados eruditos
pescados pelo rabo da histeria
(sem perderem face e vergonha).

20.11.17

Declive

Eis o descritivo do instante:
a árvore sentada na boca do amanhã
em sucessivos tossicares envergonhados
dando mangas à tinta permanente
e espaço a páginas dantes encerradas.

Assobia
o velho cabisbaixo
contra a habitual, ausente sorte:
“se ao menos tudo fosse diferente”
repete,
em oratória cabalística
à espera do tempo benigno.

As rentes mãos lavam os pesares
impedem as perfeitas cicatrizes
no pano gasto das purificadas asneiras.

Não há de ser grande a demora:
pergunte-se à manhã
(a uma qualquer manhã)
se tem palavras que cheguem
para contar os beijos que faltam.

#378

Sei ser desta maré
(apesar dos estilhaços)
o sortilégio em espera.