8.12.17

Fio e pavio

No avesso do horizonte
sem as cortinas corridas
mapa desenfreado nas avenidas largas
e um olhar compulsivo.
Desconto das palavras ditas
a gramática datada
os espiões contumazes
os insultos sem prazo de validade
as veias incandescentes do dia.
Não digo nada.
Sei
que nos contrafortes escondidos
onde as mãos se entrelaçam com o tempo
e os copos se esvaziam no lúcido apetite
há pontes abertas
lírios irrompidos
e rios vorazes
– um pouco
como um sentinela
que recusa a rendição.

#398

Língua viperina,
não
língua morta
língua de trapos.

7.12.17

#397

Leme sem homem
legenda sem palavras
em homenagem ao silêncio.

Da confiança

Aos arquitetos do mundo
o papel selado
a vontade franqueada
aos ventos por eles domados.
Porventura
confia-se nos arquitetos
em desrazão de seus predicados.
As pessoas não se perguntam
apenas confiam
cegamente.

Nos compêndios
instrução a condizer:
quando ensinam a confiar
não se incomoda a confiança
nem o tutor que assim ensina.
E seguimos pelas veredas falsamente belas
ordeiramente
acriticamente
paradamente
nas arcadas das letras não duvidadas
pois são pungentes as dores
quando à confiança se tira o chão exigido.

Alguém questionou os arquitetos
alguém
alguma vez
percorreu as páginas dos seus pergaminhos?
Acreditemos nos arquitetos
porque nos dizem que sim
apenas porque sim.

Acreditemos.
Como podíamos acreditar
num louco fermentando saliva
(talvez melhor critério de confiança)
num drogado sem remédio
numa meretriz fria
num edil corrompido
numa barata-tonta das revistas sociais
no anónimo padeiro
(que cozinhou o pão do pequeno-almoço)
em viúvas melancólicas
em druidas disfarçados de carpinteiros
em farsantes noctívagos
ou em toda a gente
na confiança em democrático golpe
para ninguém se tomar pela exclusão.

Confiemos.
Confiemos tudo
desde a indumentária que trazemos
(sem vergonha da nudez)
aos tesouros mais recônditos
à inteireza da alma profunda.

Um dia
acordamos a tempo
de sentir a confiança
um logro.

6.12.17

SOS

A combustão do dia
sentido o marejado olhar
no estuário das lágrimas secas.
A doca vazia
dita as regras do jogo:
mandamos à sorte
as flores que vêm às mãos
à espera dos juros
e de um competente júri
em adivinhava chuva congeminada.
Todos temos uma Califórnia adiada
o mapa desbotado
prantos sussurrados
prados sedentos
uma moeda atirada ao ar
à espera de um sortilégio.
Não podemos acabar o dia
sem dele sermos curador.
De nós
os férteis vales
inventores do riso desarmante
do acaso musical
dos corpos uníssonos
da noite domada
na indiscreta janela perenemente aberta
à alvorada terçada.
Pois não sabemos escrever
as palavras malditas
as palavras serôdias
as palavras contristadas.
Só sabemos escrever
as palavras
puras.

#396

Dizem:
corremos atrás do tempo. 
E eu digo:
somos arestas inertes
no desperdício do futuro.

#395

O dantes murcho caudal
agora transborda
pujante seiva em veias hasteadas.

5.12.17

Do peito meu

Dou meu peito seco
enxuto de sangue
do sangue penhorado
de onde não havia serão
nos primórdios da desrazão
no limbo do prazer
altar das possibilidades sem prazo.

Dou meu peito descarnado
os véus removidos
sem ancestrais medos
nem comoventes regras a esquadro
sem esperas militantes
sob o jugo da íris vigilante
no opúsculo da filosofia servida.

Dou meu peito suado
trono impecavelmente desassisado
entre as ondas remexidas do mar
entre estrofes estouvadas
em telas lisas com as cores todas
sem a estepe da noite
num luar medido a passo meticuloso.

Dou o peito como ele é
cabaz ora vazio ora imenso
viveiro de paradoxos
dicionário irrepreensível
olhos não contumazes
juiz só do peito próprio
contra prognósticos sombrios.

Dou ao peito
fragmentos do mundo inesperado
nas frondosas janelas entreabertas
no compasso estrepitoso da manhã
em rimas desmedidas
em jogos pueris
em sentenças apoderadas.

E do peito retenho
o sal vistoso decantando ao suor
matéria sensível
rosário de juras sem firmamento
implacável rival dos desmerecidos
rosto aberto ao desafio do mundo
rosácea inteira na falésia longínqua.

Do peito lego
talvez sem pedido algum
um módico de mim
a indiferença total
o fado sem trono
a aventura sem freio
gastronomia do conhecimento.

#394

À desamão
a transfiguração das coisas
na contrafação das palavras
sem solidão por parapeito.

4.12.17

#393

Regulamentos, mais regulamentos
emolumentos
jumentos
para tudo acabar em lamentos.

Inaugural

Sem a aquiescência dos bravos
porventura
domadores do vento belicoso
novos impérios na embocadura da noite
em comezinhas conspirações
contra monstros não sagrados
falsos sacristães de coisa alguma.
Em sindicância desarmadilhada
intemporal perda de juízo
às mãos de escantilhões enferrujados:
adivinha-se a intempérie
no apinhado céu de nuvens sem ermo.
Todavia
às escuras
contra a tabuada das letras avisadas
vozes guturais deixam murmúrios venais
um quinhão sem posse
ou a terra em hasta sem senhorio
à espera das esperas
nua
pura.
O rendilhado das mãos
é o tear onde se cantam os desejos.
Noto com precisão
no arrotear dos pássaros no céu luminoso
e os archotes empunhados pelo sol
a espada quente que os frios corpos precisam.
Não me convençam das quimeras
nem paredes-meias com labirintos esotéricos:
a palavra-passe é nada
um tremendo, impassível nada
a franquia máxima na terra dos nadas
– a posse emudecida.
Contra os oráculos apodrecidos
tenho um sal profícuo
segredo mal guardado
(não importa)
em desarranjadas ruas à espera de história.

#392

Na ementa das possibilidades
ingenuidade
para derrotar o mundo como ele é.

3.12.17

Portanto

Ouço
o ciciar do vento estouvado
nos degraus dementes
da noite couraçada:
tiro as cortinas das varandas frias
e espreito no canto do olhar
o segredo de uma estrela efémera.

Ouço
os cantos rendilhados
de sereias sem rosto:
desconfio dos prementes pedidos
da comiseração arrematada
dos cultores das estrofes assentadas
por defeito meu e só meu
ou incapacidade de propósito.

Não ouço
o rumor abraseado nas paredes malquistas
o clamor sentido das almas penhoradas;
prefiro a pele desbotada à espera de cor
a tela imperfeita no profícuo pesar
e as palavras bondosas que se ouvem
no desmaiado entardecer.

2.12.17

#391

Quase um nada
a espuma do mar
atravessando minha pele.

1.12.17

Emparcelamento

Estas vielas suadas,
cordas rombas no estertor da voz
alimento baço no arrumo das asas,
descem vertiginosas
sobre o dorso do dia.

Não temos medo.

Os corpos adestrados em multidões meãs
sabem medir as irregularidades do chão
e nele se embebem,
seus habitantes diletos.

Estas vielas suadas
monumentos sem alfândegas
contra os truísmos militantes
e os rostos imaculadamente iguais
oferecem-se:
cascatas pródigas
sobre o pedestal
onde repousam nossos pés.

#390

Mais podem que uma maré
as cores escondidas das sombras
na vez de bíblias sem palco.

30.11.17

Queda livre

Braço longo
afunda-se no poço sem fundo
a resgatar o corpo perdido.
Ou:
bondoso o braço pendido
atraiçoado pelo juízo compassivo
sem saber que do fundo do poço
em trevas sem quimera
há apenas um medonho alçapão
e o corpo é arrastado atrás do braço pendido
deposto
no ergástulo venal
onde se aninha
o lodo calcificado do fundo do precipício.

#389

O frémito incandescente
na jugular desassossegada
sepulta os nós atados.

29.11.17

Dobra

O sangue vazio
arrebatamento venal
de fio a pavio
no lúgubre canal.

Tirada furtiva
em escada gasta
mais ao jeito da estiva
na albarda casta.

Fuga adiada
cavalo errado
em página estonada
no entardecer apurado.

O selo invisível
candeia desmaiada
da palavra comestível
à mão amparada.

Proeza audaz
no corredor estouvado
migalhas do povo sequaz
sem o dobro perdoado.

O epílogo infinito
merecimento ajuizado
sem toga nem guito
no trejeito atordoado.

A manhã consequente
sem luz colhida
no tempo já ausente
na trova dantes vivida.

Bolinha vermelha no canto do ecrã

Ah, os zeladores da moral
heróis de gesta como só ela há!
Passeiam superioridade moral
honrando os demais com lições gratuitas
– para aprendermos
a ser gente de melhor jaez,
assim à sua medida.
Eu, anti-herói inato,
incorrigível dissidente de coisas destas,
confesso:
a maldade insubmissa;
as muitas drogas que consumo;
a promiscuidade irredutível;
o desamor que semeio;
os pobres que olimpicamente ignoro;
os animais que maltratei;
o hedonismo poltrão;
a ira sem remédio.
Daqui me ofereço
à lapidação dos arautos da bafienta moral
(moral pior do que a das sacristias,
por se esconder em sotaina canhestra)
em extático desejo de ser apedrejado
pelo deleite da antítese
da moral por eles sopesada.
(Não sou eu, mas podia sê-lo.
Sem aceitar os libelos
dos vigilantes desta,
ou de qualquer outra,
moral.)

#388

No absoluto segredo
decaio
dócil mensageiro do silêncio.

28.11.17

#387

Comovida
como a vida
como, vida?

Carne viva

O rendilhado da desrazão
orquestra o ocaso repetido
e as mãos frias
tremeluzentes
são o ópio de um rumor incessante.
Dizem o que dizem
astronautas pardacentos do desdizer
peritos no tresler
poltrões ascetas do simulado.
Não quero saber das portas abertas
nem dos atrevidos pescadores de almas
ou dos trovões desmedidos;
por entre as pútridas passagens
nos interstícios dos dias oprimidos
encontro o ouro entre os dedos secos
e deito-o no papel espraiado
no papel que devora
as palavras à boca de cena.
Não peço licença aos deuses
para ser quem sou.
Não trago trela em mim
que das peias congemino altercação
e gritos suficientes para as desmembrar.
Olho sobre o ombro da manhã
mesmo onde o nevoeiro embacia
e juro
contra as juras todas
canto, se preciso for
atiro o corpo desenfreado contra os mastins
no destorpor deslaçado das ferragens inertes.
Sei que às horas ímpares
chegam os murmúrios do vento
e eu retenho na funda alma
a sublime lição neles entranhada.

#386

Que as árvores azedem
no púlpito outonal
antes que seja dezembro.

27.11.17

#385

A porta em segredo
o rumor extático
a corda sobre o tempo.

Taluda

Doses certas de qualquer coisa
no naipe pedido para a visita adiada
bolsos rotos no fundo fundido
a aleatória roda.

Que digam as palavras avulsas
pendentes de versos prometidos.
Que prometam a roleta sem russos
vigários das estrofes amansadas.

Tudo o que eu quero
é deitar os olhos no mar acetinado
levá-los no seio da nau ao alcance do olhar
sem saber onde ter cais
sem saber das sereias que ao mar se prometem.

Às vezes
espreito nos contrafortes do tempo
só para ver se é a sorte grande
minha, taluda diletante.

26.11.17

Molduras sem fotografias

Molduras nuas
à espera de serem ocupadas
com fotografias,
espalhadas pelas paredes,
as descarnadas molduras
todavia
objeto de bondade singular
à espera
que quem delas dá conta
empreste às molduras vazias
imaginadas fotografias
com a licença de um atento olhar.

25.11.17

#384

O cú de Judas
não tenhas como desonroso lugar
não vá sobre ti abater-se
a vergonha da descortesia.

24.11.17

Perguntas às perguntas

Posso trazer na mão suada
a janela dos tresloucados?
Posso dizer não
aos engenheiros da coragem?
Posso ensinar
o leite azedo em lume brando?
Posso tirar do jogo
os reis e as rainhas?
Posso ir ao dia
no mais descarnado de mim?
Posso beber
à espera da estouvada madrugada?
Posso desaprender os pactos?
Posso alinhar as pedras frias
no rio sem margem?
Posso cantar os versos arrependidos
na miragem dos campos sem mapa?
Posso apenas verter no chão quente
as impróprias incógnitas?
Posso traduzi-las
em equações adormecidas
em portas sem número
em corpos desossados
em livros sem rosto
em dedos espontâneos
em cálices frágeis
em camas sem remorsos
em dias sem adiamento?

#383

Teria da misericórdia
um olhar estilhaçado
uma baça noção.