18.1.18

#444

Eurípides
ao saber do rapto de Zeus
não terá dito a Europa:
alemanhizem-se.

17.1.18

#443

Ó sociedade anónima das multidões
e eu, pária.

Gravidade zero

Um silêncio avassalador
na planície branca e tortuosa.
As vozes anciãs
incessantemente trémulas
incessantemente estremunhadas
um lugar onde tudo se liquefaz
nos sonhos insubordinados.
As frases
vêm despidas do sentido das palavras.
As pernas querem caminhar
e não se movem
não se conseguem mover.
A boca insinua um esgar
à procura de uma palavra
uma palavra que seja
na colheita necessária ao malogro do silêncio.
Mas só há silêncio
e a boca intempestivamente contrafeita
e o corpo inteiro a transbordar
e, todavia, anestesiado.
Operários ungidos de alvura
mexem no corpo.
A leveza toma conta das veias
e um sono sem noite
candidata-se a pesadelo tonitruante
a pesadelo que rasga as baias do silêncio.
A brancura
(dormente como é a brancura)
empresta o palco lívido,
devora a vontade
– desfaz a vontade a um zero absoluto.
Na forma de autómato
à mercê
do volúvel encadeamento de estados
e de palavras de outros
e de coisas alheias
e de lágrimas-veneno.
Até a paisagem caiada se estilhaçar
numa tempestade de cores.

#442

Dizer-se de alguém
que é amigo da onça
é cominar à onça uma injustiça.

16.1.18

#441

Dei ao oráculo
o trespasse das terras idas
e adivinhei o eclipse do oráculo.

Pacto

Padeço destes azimutes
o azevinho com casta malvasia
e a maldade outra que é insónia.

Estes que são comezinhos anteparos
onde ocultos murmuram vilões disfarçados
na madrugada sem avistamento.

Deitam-se as cores ímpares
e os nomes sem árvores-bastião
na fogueira onde colhidas as rosas se avivam.

Digam-me os nomes das cores
e as cores dos nomes
enquanto espero pelo comboio melífluo.

Digam-me
que não encontro enganos nas avenidas
e uma rosa-dos-ventos gasta é razoável.

Padeço do sintomático azevinho
no desencontro dos azimutes afeiçoados
e em véspera entrego-me ao sono desimpedido.

#440

No labirinto da memória
perdidos os reféns
como peixes emalhados.

15.1.18

#439

O acrobata
diligente na cambalhota das ideias
sem o rosto perder a bússola.

Métrica

No meio de um nada
as mãos estruturadas desviam as cortinas
uma fileira de árvores varridas pelo vento
e a penumbra dos girassóis deitada no chão.

O costume açambarcado
contra os estouvados feitores da insubmissão:
protestam:
não se cuida dos rostos despojados
nem se tira o sal às palavras
nem sequer às malditas.

Um maestro deambula
sozinho.
O olhar perdido
desembainhando a melancolia dir-se-ia perene
vendo o cabisbaixo maestro
como se fosse ao chão
atirar as cinzas em que se consome.
No frugal encontro do dia
à mercê do majestoso quadro à janela
a falésia bordejada pela maresia
enquanto espera pelo luar jurado.

Não esperem pelo espartano coalhar das violetas
não esperem que a alegria venha a tiracolo
de personagens datadas:
antes esperar pelas esperas sem passagem
turvadas pelo avesso das veias
cotejadas com as musas sem rosto
capazes de estrofes sem fim,
de esperas sem fim.

No cabo com varanda para o largo mar
de onde apenas o mar se tem por paisagem
respira-se um ar infinito:
dir-se-ia
a caução para a entronização nunca esperada.
Como se o sítio fosse o marco geodésico
onde exorcizados se dissipam assombrações.

Tiro do lúgubre passeio dos desapossados
o paradigma do tempo desnatado.
Cobro, por isso,
o dobro às extremidades ciciadas pelo vindouro
desmentindo-o no suor do corpo.

#438

Until further notice:
unlock your hands
as a bequest to the blossom moon.

14.1.18

Espelho partido

Em sabendo,
em modesto predicamento,
da poda a metade
(e talvez em arredondamento por excesso)
não quis soltar o freio à língua. 
Manda a prudência
(e a honestidade intelectual)
que não sejam labirínticos
os meandros da voz não tutelada
na não parcimoniosa verve sem estribo. 
Bom conselheiro
é o silêncio,
em preparos destes.
Não fica enodoada a figura
por indecoroso espaventar 
de uma ciência que por esteios não ter
não é ciência,
apenas a facúndia proverbial
de presunçosos que dormem
no ninho das mal afiveladas almas.

#437

Paradeiro demandado
de apeadeiro em apeadeiro
na sombra das avenidas sem nome.

13.1.18

#436

A voz,
estremecimento
em véspera dos sonhos.

12.1.18

#435

Desta praia sem vento
uma concha estilhaçada
e ao longe, a falésia.

Tirania

Desde apóstolos a visionários
a simples peregrinos
de asas abertas ao prefácio do futuro
cozinhando em lume brando
o inefável dizer
na presença de um exército de seguidores. 
Assim são as almas
empenhadas na febre sem medida
levitando numa nuvem de Juno
onde as mãos nada tocam. 
Também não precisam:
“a fé move montanhas”,
terçam a seu favor
e, sem demora do precipício que foge à lucidez,
juntam-se numa impecável organização,
diligente nas regras e na hierarquia,
e empurram,
com a força toda
(mais a ditada para a ata do sobrenatural),
à espera de verem a montanha mover-se. 
(Só não se sabe
se é a montanha que sobre eles desaba.)

11.1.18

Inteiro

A casa ordenada
pela ordem que quisermos:
as flores arqueadas sobre a janela
os copos pendidos no alpendre
o mar vertido pelas mãos nossas
as paredes aquecidas por beijos
um mapa-mundo
– o meu corpo-lugar
espelho do desejo
onde proibidos são os freios;
e as páginas não esquecidas
as palavras que não ditam adiamentos
as juras não sufragadas
a claridade estendida no vagar do céu
onde tomamos lugar,
suas exclusivas estrelas.
Apertamos os corpos
contra as tábuas maduras do tempo
e as mãos
como se percutissem nas teclas de um piano
desenham os versos tirados ao fundo da alma.
Os versos que devolvem a nada o ouro.

E somos de uma altura magnífica
– se quisermos: deuses de nós mesmos –
na improvável paleta de cores
no murmúrio encantador
na música que costura os violinos
na macia pele que há em nós.

Já sabemos o que é o nada
por sermos arquitetos do tudo.

Na enseada alisada pelo sol poente
deixamos uma nesga do olhar.
Os lençóis sem rumo
identificam os corpos trespassados
na combustão etérea.
Resgatamos as nossas assinaturas
como se precisa fosse a voz altiva
um pedaço do peito franco,
entreaberto,
como as janelas se abrem,
ímpares,
ao delicodoce desassossego que trava o torpor.

#434

Invejável
o estatuto das árvores
pacientemente imóveis 
à espera de irem para lugar algum.

10.1.18

Mar

O mar telúrico
sanatório de imagens murmuradas
viveiro das manhãs sem medo.

O mar demiurgo
império sem adjetivos
arca de segredos sem confissão.

O mar heurístico
dádiva para a alma
cura espontânea para o dia destravado.

O mar transido
ondas sobrepostas no alpendre da combustão
firmamento garantido no penhor dos deslimites.

O mar-peito
aquário sem escotilha
chave tatuada na pele corajosa.

#433

Quero ser rio a transbordar
caudaloso frémito
indomável e sem dolo.

9.1.18

Vernacular

Ó Babilónia,
sem lugar
régulo bastardo das cinzas esfaimadas
tirano estouvado à míngua de água
iletrado marçano à vista desnorte
conceção farsante dos milagres meãos
baleia mirrada dos mares exíguos
livro só de capa feito
alçapão de ti mesmo
capo madraço de forças exauridas
pirata atlântico e mendaz
sefardita loquaz nos pesadelos de outros
pianista embriagado (e não é por néones)
guarda-livros de biblioteca sem paradeiro
cão açaimado por furiosa bocarra
soba trepando a árvores resvaladiças
tenente decadente à procura do caído dente
vulto estulto na voragem da vertigem:
ó sacripanta deslustrado
mastim adiado
periquito desossado
viandante perdido
profeta de latrinas gramaticais
penhor de anéis de latão
míope caução dos miseráveis:
tu
ouve-me
a-ten-ta-men-te:
desfaz os pergaminhos inanes
numa química solução
função digestiva em seu final
putrefacta
indiligente
improfícua
imprestável
(a não ser como tronco
para tua cabeça
repousar,
a preceito).

#432

Não falam, as rosas,
no tinteiro vivo das vozes:
escolhe-as o silêncio atrevido.

8.1.18

Desapalavrado (o interior)

O apeadeiro sem paradeiro
limalha rejeitada no caudal seco
fotografia a preto e branco
da paisagem a preto e branco.
Fugiram,
as pessoas,
no desolador teatro sem espetadores
nem sequer atores:
sobram as peças enferrujadas
em seu ranger ciciado pelo vento.
Sobra o silêncio
o estridente silêncio.
E até o vento tem a cor embalsamada
no amontoado gutural de desperdícios.
A um canto
uma floreira resiste.
Os jacintos frondosos hasteiam um sorriso
contra a implacável congeminação dos ascetas
o rio caudaloso que recua para a nascente
as trovoadas devolvidas às nuvens-bigorna
a vontade sitiada.
Não contam os lamentos:
não há vozes para os recitar.
E até as teias de areia são escombros
no infértil apeadeiro.

#431

Tirei o arnês
e do salto no vazio
gritei a imensa sede de tudo.

7.1.18

#430

Em velocidade furiosa, avançamos
arruinando
os contrafortes do tempo.

Dinastia

Arruma-se o limbo disfarçado
numa gaveta improvisada:
não será impulsiva a ideia
a menos que troveje em seu dealbar.
A fotografia desbotada
contradiz a luz clara
de um dia soalheiro consecutivo à tempestade.
A lente desembaraçada
emoldura a imagem pura.
Um retrato furtivo refaz-se
e a incerteza reduz-se à hibernação.
Talvez sobejem asas leves
e um véu que dispensa a transparência
e as palavras doravante sejam musicais;
um acorde arrastado
na pauta reescrita.

6.1.18

Irremédio

A filigrana extinta
ou apenas rarefeita
comutada em arqueológicas demandas
por olhares treslidos
de nostálgicos sem remédio.
Atira-se um pau para o porvir
o pau de braço dado com melíflua substância
e eles
teimosamente
de olhar firmado no retrovisor
assim memorizado
deitado para trás das costas.
Ainda houve quem
(em pura maldade bondosa)
ensaiasse o boicote do arqueológico evento.
Iam perecendo
os nostálgicos sem remédio
tomados por uma apoplexia gongórica.
(E os maldosos bondosos,
arrependidos da trapaça.)

#429

O chão sem arestas
onde, promissoras,
sementes se intuem
à espera de uma colheita.

5.1.18

Dever de protesto

Protesto o protesto sem causa
apenas porque apetece
ou apenas pelo dever de não dizer sim
só por ser sim
ou então
por não aceitar embainhada 
a espada diligente da crítica.
A crítica:
pois não se é dotado de perfeição
e a crítica mede o estatuto da imperfeição. 
Dirão,
em protesto contra meu protesto:
se é inata a imperfeição
descabida é a crítica
seja a contundente crítica
ou apenas a crítica pela crítica
(de como quem fala só para não estar calado).
E eu protesto
contra o protesto ao meu protesto:
desembaracem-se as vetustas teias
o penhor da comiseração;
nessa colher serve-se
não uma medida de indulgência
nem a generosa mão estendida
em demanda de recíproco tratamento,
não a salvação que esconde um fingimento,
apenas a punitiva fraqueza
o soporífero remédio da mediocridade. 
Por isso, sim:
devo uma fortuna à critica
e não deixo em hibernação o protesto
quando da voz interior
se congemina o clamor da insatisfação
(ainda que módico,
ainda que módico).

#428

Resistência a desistir
por não desistir da resistência.

4.1.18

& poema, Lda.

O véu transparente
arroz apanhado no restolho do vento.

A cortina sem embargo
penhor do silêncio forte.

O astuto mel silvestre
sementeira da voz contundente.

A cintura cinzelada
música desembainhada no rio venal.

As mãos atiradas à parede
tinta voraz das vozes augustas.

Os pássaros calados
desenho do firmamento visível.

O desejo sobre as fronteiras
válida escritura na gramática dos corpos.

Um gato espreguiçado
no telhado soalheiro da casa deserta.

O próximo chapéu
esteira estendida no alpendre apodrecido.

Sereias sem corpo
piscina estiolada no vapor do entardecer.

O sexo em rebuliço
oposição aos tamancos sonoros das madrastas.

A indisciplina esquartejada
limo boçal dos sacerdotes indistintos.

A perda feita órfã
nos barcos que ganharam à maré.

O tabuleiro sem regras
dados queimados na fogueira do eclipse.

O poema circunstância
súmula das semânticas cobradas.