22.2.18

#482

Seja baça a lente
e as palavras treslidas
confiáveis são as intuições?

21.2.18

#481

Sobre a lenha fria
despenha-se o corpo furtivo
no rumor de sua grandeza.

O corsário desarmado

Sinto-me corsário de mim mesmo:
trono visível das ideias
que depois se evaporam
na sua negação.
Corsário:
as roupas do avesso
as horas vividas em contramão
as palavras vertidas em antónimos
sem purgas malsãs
apenas o furibundo artesão das escolhas.
Corsário:
mas não farsante
na inviolável descerteza de tudo
penhor dos penedos perenes
fautor das mais frágeis escadas
no estertor dos compêndios sem audiência.
Conheço os rostos sem nome
e sei que dos nomes vertidos
sobram fingimentos
personagens
apenas personagens
(e as personagens são ardis)
inverosímeis enredos no escol estulto.
Serei corsário.
Ao menos,
corsário.

#480

Demissão.
De missão.
De missa.
Demi (comme en français).
São.

20.2.18

#479

Tumulto em erupção
e eu tatuo a indiferença
tanto o céu sereno por teto.

Violino


A corda sem água
abraça os pastores. 

Na cumeeira da onda
medram flores exaltadas. 

O coldre sem mãos
é provimento da pólvora seca. 

Nos arbustos hostis
mel desenhando um sortilégio. 

A cura estudada
nos néctares matinais. 

Na saia gasta
uma poeira nómada. 

O estridente trovão
na clareira sem mapa. 

No porão inundado
o sangue da tempestade.

Os vitrais desenhados
na controversa espada sem bainha. 

Vilões denodados
terçam contra a bondade inata. 

Lenços noturnos
vogam na combustão das palavras. 

Na demissão arrefecida
o desejo em forma de segredo. 

A garrafa no sopro da maresia
em mundos inteiros à mercê no areal. 

A madeira estouvada
e o bando sem quartel. 

O colo carregado
na prolixa sensibilidade. 

O embaraço encomendado
na singular loucura. 

Um grito à espera
do mote vencido.

#478

O parto do orvalho
as gotas escorregando
vagarosamente
sobre o dorso do dia.

19.2.18

Amostra

Verto no copo alto
esta maré que transborda
dos círios de braços abertos.
Nos abetos há musgo infante
e eu sei tomar as asas de um pássaro
bebendo a paisagem com olhos desaforados.
Pudessem as molduras sair do sítio
ganhar tempo ao tempo
para as crianças serem perenes.
Pudessem as fronteiras escutar a música
precipitando-se contra si mesmas
no aceite de serem farsa.

E da boca quente
em sílabas não contadas
as palavras-âmago
servas
entoadas sozinhas
no cruo silêncio da noite.

O ritmo acelera no contrarrelógio
mais depressa do que o tempo
e as horas são o pavio de nada.
Nas guitarras distantes
atiro os dados à sorte
sei soletrar de trás para a frente
o compêndio desatualizado
onde estão sânscritos versos,
mitómanos.

Oxalá aprendêssemos:
os oráculos
refutam-se em suas profecias.

#477

Escolhe uma palavra
e poetiza-a.
Redesenha-a.

18.2.18

#476

Confisco as flores
demissionário o punho:
sou um ariete faustoso.

Fusão

O espólio em estilhaços
no corpo do forasteiro,
minados os campos em redor.
“Sou candidato ao futuro”,
protestou de mão dada
com sonora sonoplastia.
“Prefiro as orquídeas de cores fundidas”,
ouviu em refutação.
E o palco desmontou-se
na avidez das bocas famintas.

17.2.18

#475

Condomínio.
Com domínio.
Condo mínimo.
Com do mínio.

16.2.18

Valsa

É uma valsa?
Ouve:
perdi a vergonha
e ganhei juízo,
o juízo da lucidez
na sedutora balsa da ilusão.

É uma valsa?
Tens a certeza:
dormimos ao mesmo tempo
e açambarcamos as palavras
as palavras que bebemos
na lareira aberta pelos nossos olhos.

É uma valsa?
Mesmo:
na indiferença dos vetustos
raiando neles o sol da sabedoria
já não os sobressaltos.

É uma valsa?
São teus pés:
mnemónica diretora
regaço cingido ao meu peito
o sangue aplacado.

É uma valsa?
Se dizes que sim
não sou ninguém para opor.

#474

Hoje
apetece-me
dizer o seguinte:

15.2.18

Viável

Ter na haste
o sabor do tempo
na variada seara promitente.
Ter no bolso
sementes de sobra
na indulgência arrematada.
Ter no modo
critério assisado
na assinatura perene da história.
Ter nas preces
as telúricas palavras
na indomável fatia do mundo.
Ter na mão
as rédeas do impossível
na congeminação dos sonhos em sonho.

#473

Este é o magma de que sou feito
medula fecunda
o cais de onde sou inamovível.

14.2.18

#472

Um fósforo emaciado
acende chama timorata:
a noite encontra seu eclipse.

Interrogatório (?)

E se fosse esta a arena
onde as cartas se jogam
na mudez do orvalho matinal?

E se as ondas abertas
não se fundissem na véspera do areal
invadindo (alegoricamente) as janelas?

E se frondosas sereias
lograssem as distantes montanhas
recolhendo dos arbustos frutos silvestres?

E se a lua comprida
se mascarasse de aurora boreal
e as espadas diuturnas aguardassem veludo?

E se as crianças emancipadas
não fossem obedientes
nem aos seus próprios vultos?

E se as letras de um alfabeto diferente
fossem desenhos impressionistas
por dentro da tela rasgada que fere os olhos?

E se a noite emudecesse
e só sobrassem páginas brancas
à espera de escrita?

A sagração do amor

O amor
fábrica de cumplicidade
fervendo na erupção dos sentidos
um amor
sino centrípeto na casa
combustão em degelo noturno.
O amor
às nossas mãos
na entrega ímpar
em empolgantes coreografias
com a lua por testemunha
na varanda sobranceira ao palco do mundo.
O amor sereno
o amor insubmisso
o amor matricial
deixando às estrofes seu hino
deixando ao desejo sua estirpe
deixando à uníssona voz seu lacre.
O amor fértil
o amor sem algemas
o amor semente
multiplicando por mil
a colheita que vem às mãos
na sagração do dia.

13.2.18

Sonhos tiranos

Não deixo os sonhos falar.
Não os deixo ter rédea.
Não quero a pilhagem sem aviso.
Não quero um palco cheio de espinhos.
Não quero a jugular da vida apertada
por mordomos sem rosto.
Sonhos sem gramática
apenas sonhos alçapão
precipícios vorazes
polvos famintos
em tentáculos desdobrando-se no corpo transido.
Não quero estes sonhos
os sonhos suados
no coração latejando em silenciosa ira.
Os sonhos indomáveis
não convidados
e que amesendam no leito frio
na desprotegida nuca imersa no sono
sua vítima sem direito de resposta.
Os sonhos cavernosos
em vozes repetidas num murmúrio intransigente.
Sonhos tiranos.
Pois os sonhos não se negoceiam
não admitem uma vírgula à esquerda
ou um parágrafo a destempo
ou um verbo em forma modificado.
Sonhos
punhais sem licença
pedindo a carne
pedindo ajuda a um cálice oxidado
onde se vertem lágrimas
na equação do sobressalto.
Refém dos sonhos
às vezes com medo do sono
por medo dos sonhos pelo sono levitados.

#471

O dique
cais seguro
onde as águas irreprimíveis
amansam.

12.2.18

Margem de erro

Por pequena margem de erro
sentado na margem do rio indomável
escuto as águas caudalosas
destroçando as pedras amontoadas.
Por pequena que seja
a margem de erro,
erro –
e não se discute 
se o erro é credor de indulgência
ou se tem de contar no cálculo das insciências.

Será a margem de erro
cláusula elástica
ou caução para o desrigor?

A partitura baça não ajuda
e até um tiranete boçal
não arriscava ripostar
ficando deserta a demanda.
Use-se o acaso;
a métrica conveniente;
um critério avulso, por assim dizer;
que o desrigor quadre com desregras.

Até que a margem de erro
deixe de habitar
os pesadelos dos estatísticos.  

#470

Torres pedras, torres velhas
cópia de cópias
matrioska de originais.

11.2.18

Tradução

Tradução:
a impressão não se estriba
na memória adestrada.
As facas dançam no limbo
sem atores por limite
sem segundos sentidos
ou parábolas imprecisas;
dançam
e ninguém lhes desenha os movimentos.
Tradução:
talvez sejam sinais sem fumo
nuvens ausentes de chuva
um saxofone molhado e,
portanto,
emudecido
um poema de silêncios.
O descontrato selado em papel de água
contraria os medos trespassados
os alpes contidos nos bolsos do querer
uma peça do jogo abandonada à ilharga.
Tradução:
tradução sem tresler;
macias sejam as palavras escolhidas
nas horas que se ensinam
em decálogos silvestres.

#469

Máscara
a culpa sem freio
fingimento sem palco.

10.2.18

#468

Não cederás à armadilha
do discurso gongórico.
Não serás
como os farsantes que o bolçam.

Parteira

Ó árvore justa
que fitas o céu
béu béu, béu béu
dita o que a melancolia custa.

Ó arquiteto erudito
que olhas a terra
berra, berra
a injustiça desde o teu púlpito.

E tu, simples mortal
afocinha no chão
ão ão, ão ão
admite teu valor venal.

9.2.18

#467

Do mais poético
em tempos derradeiros
uma rapariga, em enlevo, apregoar
“I love my life”.

A vitória

Não são falsos passos
nem sombras emaciadas
ou ventos sulfurosos:
se há dádiva por recolher
ela medra em mim
na recusa dos contratempos
na antítese da rocambolesca encenação
que apenas adia o dia. 

Emagreçam as sombras
outrora vestígios em demanda de exorcização.
Desvitimizem-se
os diligentes engenheiros dos prantos
cubram-se de ouro farto
os olhos incansáveis
as luas caiadas de pureza
os bolsos tingidos com a plenitude singular. 

Tomara o pretérito
ter sido leito de tamanho desassombro. 
E as costas preparadas
em montada sem espera
dissolvendo os lamentos tortuosos
como se fosse 
uma magnólia abrindo-se à luz clara
e as mãos 
subissem ao sol em generoso devaneio. 

Já não sei o que são sombras. 
Regozijo.

O desaviso das tempestades
cuida dos limites,
tecnicamente despromovidos a chão fértil
onde as flores sorriem até à noite. 
As cavernas estão arcaicas
já não esteios malsãos
já não
revés excruciante. 

A colher artesanal
tirou a espuma inútil
do moinho do tempo. 

Às sombras
encomendou-se jazigo. 
O museu da memória
não transige com o esquecimento
e fingir é um ultraje contumaz. 

#466

Nota de rodapé:
o divino fermento
da distração amoedada.