25.9.18

#735

Se o choro
fosse um rio
havia estio e monção.

24.9.18

Manifesto contra a eternidade

Que importa a eternidade
a cápsula sem vidro
o vento irredentista
um oráculo que não sabe ler?

Quem se importa com a eternidade
se a finitude a desengana
e nem como legado
(mesmo fora das convenções)
somos imprescritíveis?

A quem importa a eternidade
no bálsamo fugaz das luzes fátuas
na verborreia flácida dos desmentidos
na volúvel fachada de catedrais por fazer?

Onde não está a eternidade
se não nos lugares inteiros
nos corpos sem exceção
no embelezamento dos dias por porfiar
nos segredos que se guardam
na parede fria e cada vez mais gasta
das veias por dentro?

Denuncie-se a eternidade
o logro batismal
o colóquio sem verbo
o ajanotado jardim sem rega
a deletéria força que tudo exaure.

Quem quer a eternidade
se o tempo a confirmasse
e deixasse de ter validade
por excesso de existência?

#734

Tomara
um lugar exíguo
e tu, na sede da grandeza tua, 
curadora de meu devir.

23.9.18

Desmedo

No pronome do medo
acolho os seixos molhados
que sobram da maré.
Sobram as universidades de erros
as sementes que dispensam água
logros inspirados no olhar treslido.
Arrematem-se os metros quadrados
de baldios à espera de fermento
e não se baixe a escala do mapa
no porfiar da matéria acesa:
aos medos enquistados
desatam-se os nós.

22.9.18

#733

Nem todas
as viúvas
são negras.

21.9.18

#732

Perdeu serventia 
a demanda dos anátemas 
que são consumição.

Convocatória

Guarda este lenço
com as palavras sem ermo.
Lança no sol precoce
o desenho dos meus lábios.
Habita no regaço
onde medra o nutriente singular.
Perpetua este instante
no fermento ávido das mãos.
Sonha com os fecundos versos
na véspera de serem desposados.

#731

No bojo da emboscada
abainhada com insalubre vinagre,
de que lado estás?

20.9.18

Aguarela

A estátua consuma
as folhas rasteiras
no umbral do outono.

Não serão as réstias do tempo
no módico latejar das veias
por as velas se desembaraçarem do vento
em golpes fortuitos, 
precisos
exclamados por um braço forte.
Sobre a almofada da madrugada
ouço os gatos vadios
o rumorejo da maré-baixa
as lágrimas que assentam na areia,
o orvalho liquefeito,
as mãos endurecidas
pelo âmago dos seixos deixados pela maré.
Dou aos ouvidos as preces insistentes.
Pode ser que a pele se acostume
e a chuva vespertina cuide do resto.

Não cicio as palavras
sem as folhas por perto
na lombada estreita do livro promitente.

Sem o encanto das cotovias
nos seus estroinas voos rasantes
adormeço sem contar.
Sinto o corpo sacudido
e não é se não o sismo interior
que traduz as inquietações
que as traduz em forma de sonho.
Se chegar a manhã
na teimosia do nevoeiro baço
oxalá estejam prontos os versos
no esconderijo do pensamento;
oxalá sejam digeríveis
na combustão dos braços que se entrelaçam
sem a demora das lágrimas 
reservadas em favos que condensam 
toda a doçura;
das lágrimas que secaram
num parêntesis dos olhos 
que deixaram órfã a bulimia dos sentidos.

Ao amanhã
não digo nada:
quero-o inteiro
imune às profecias
servo do espontâneo esvoaçar
digno de uma coreografia de peritos
insuspeitamente demiúrgico.
Desse amanhã
conservo a memória não atribulada
e reescrevo o oráculo que teimava
na persistente mentira de si mesmo.

A estátua 
indiferente
remoça a claridade intimidada
lavrando o nevoeiro contumaz
em promessas de futura chuva.
Será inverno,
então,
e eu sem arrependimento.

#730

Incubo
a empreitada forasteira
imerso no suor do sonho.

19.9.18

Caravelas

As altas árvores
carnívoras da sombra
congeminam o furto da atenção
o rastreio das almas procedentes
e levantam os travões aos devaneios. 

Se as altas árvores
se justapõem ao sentido pesar
onde funéreos vultos perseguem os mitos
somos
pelos desembaraços vadios
as combustões por todos os lados
e não deixámos colonatos em pé
no estipêndio das almas não contorcidas
na vertigem dos cais que mais parecem 
precipícios. 

Das altas árvores
mais altas do que montanhas escarpadas
o povoamento dos anéis artesãos
e eu 
de sentinela
dando corda ao fogo de vista
empunhando bandeiras sem cor
deitando aos mares tiranos
as caravelas por acabar.

#729

Os olhos da manhã
combinam a rima avulsa
com a claridade estremunhada.

18.9.18

#728

O artífice da farsa
ou o farsante do artesanato:
quem sai de vencido 
no tirocínio da mitomania?

Moinhos

Estes moinhos
o ventre da paisagem.
Por onde
o vento se desenha
na curvatura da manhã.
O lugarejo
imensa fortificação
concebe os limites da caução.
Os moinhos
emprestam-se à paisagem
na contrafação desejada.
Penhorada a origem
sobra o chão alcatifado 
com a pedra dura.
Nada fica ao acaso.
Junta-se o rebanho
o cão que o apascenta
e o pastor distraído.
O pastor que se encanta
por mais que sejam as vezes
no rebordo dos moinhos.
As pás vagarosas
tiram talhadas ao vento.
Sente-se o murmúrio
a voz acastanhada das fazendas
no arritmado pulsar dos moinhos. 
Num moinho
alguém contaminou a obra: 

“goste-se ou não
a aldeia inteira 
vigia os forasteiros
para gáudio dos nativos.”

Sinais dos tempos
ou apenas o poema 
fremindo o carmim das palavras
na metáfora
que costura a contracapa da má profecia?

Os moinhos
indiferentes
estugam o compromisso com a paisagem.
Ela não seria a mesma
se cerceassem os moinhos pela raiz.

#727

O verso lapidar
uma aguarela minimalista
a frase sem arestas.

17.9.18

#726

O mexilhão
é metáfora depreciativa
ou a virtude do marisco?
(Pois se o povo é o mexilhão...)

Chocolate negro

Nos termos do mandato:
enfarpelando fatiota de cerimónia
num apessoado estatuto
a eloquência a bolçar das veias
o aparato da importância subindo ao nariz
e a batuta hasteada no tempero da ralé.
Um educador.
Exemplar.
Gosta de saber que é exemplar.
O soporífero que ampara o sono.
Eis que desfila
donairoso
entre as plumas dos pares
mas ele
primus inter pares
dúctil referência
reverenciado como convém
aos penhores das medalhas de si mesmos.
Faz lembrar aquele cão
nos desenhos animados 
(Muttley, julgo ser sua graça)
que levitava de êxtase
de cada comenda pespegada ao peito.
Quando aterrava
nem a anestesia das medalhas
aplacava o fragor da queda.
Do canto aqui recolhido, 
uma sugestão no epílogo da generosidade:
organize-se lauto repasto em sua honra
movam-se as influências
(as possíveis e as fora do alcance)
para engrossar o numeroso exército
dos agraciados no dez de junho. 

#725

Destronadas as maiúsculas
sobrou 
o epicentro da miragem.

16.9.18

#724

Proíba-se
a demência das proibições
que as crescidas gentes
dispensam trelas e freios.

14.9.18

Centrípeto

Declaro-me 
plenipotenciário dos afonsos sem trono
confrade de trovas desalinhavadas
maestro dos mergulhadores em doca seca
artesão à prova de matéria-prima
zelador de águas-furtadas
criador de luas estanques
fiador das palavras gastas
oráculo embaraçado pela miopia
testamenteiro de segredos desacorrentados
lídimo asceta do compêndio da maresia
sonhador de sonhos sem limites
curador de galerias sem vento
marégrafo dos pontos cardeais
albatroz voando sobre as cordilheiras
paramento descosido da fé
mercador de lugares-comuns (hélas)
desmaterializador de ceticismos e catecismos
angariador de silêncios leves
calculador de danos e de sua reparação
segurador de almas
amanhecedor incorrigível
argonauta na paleta avulsa
artífice da ternura
penhor do desejo
indiferente às lotarias juramentadas
credor da paciência geral do mundo
viajante e amante
(não necessariamente por esta ordem).

#723

(Referendo sobre o equinócio)
Muda a hora
ou fica a hora muda?

13.9.18

#722

O dente fundo
é o que deixa 
a última impressão.

Desenho

Não atiro a pedra.
O lago sem ondas
é retrato preferível.
Os nenúfares
não precisam de naufragar.
Os cisnes
estão imersos em seu sono. 
O silêncio
é uma ilha valedoura.

Não escolho a ira.
A penumbra está gasta
sem consulta.
À noite prometi
o ouro do consolo.
Da pele
conservo a alvura.
Retenho
as palavras sem arestas.

Não transbordo os remorsos.
A culpa extinta
adormece no dorso da memória.
Não tenho
vultos em espera de exorcismo.
Às sombras contumazes
arremato existência.
Às águas malsãs
ergo dique.

Desenho a manhã
no púlpito das mãos.
As palavras segredadas
são a combustão do enredo.
Aos olhos férteis
a convocatória da reinvenção.
No silêncio profundo
as palavras adivinhadas.

Desço ao chão
da maré enxuta.
Combino estrofes
no parapeito da maresia.
Murmuro o amor
no corpo tremeluzente.
Esqueço
o devir por selar.

Sou penhor
do refúgio da alma.
Não me escondo
da felicidade.
No suor trespassado
construo a cidade esperada.
Com a docilidade
das palavras sussurradas.

12.9.18

Adia-se o adeus

Adia-se o adeus.
A casa-tribuna não arde
e nem o colostro se perde
na elegia dos pares.

Adia-se o adeus.
O testamento sem páginas
cobra do tempo
o viveiro das aldeias de pedra
e nem caminhos iridescentes
pontuam a destempo nas folhas vitrais.

Adia-se o adeus.
No imorredoiro amplexo da vida
sem o temor angustiante
sem os contumazes patriotas das trevas
sem esculturas esventradas pela ferrugem.

Apenas se adia o adeus
porque a palavra se esgota no seu sentido
e a marmórea tela agasalhada
ensina
que a palavra adeus é vazia
um deserto sem lugar assinalado
a vertigem sem fundo.

Adia-se o adeus.
Porque não há mister
de adeus dizer
e do adeus não sobram 
as saudades fundidas.

#721

Atreve-te
na incendiária centelha
o desejo que não conhece freios.

11.9.18

Tiro falhado

Não ocasionais ocasiões
párias são paridos
por suas não recomendáveis ascendentes.
Os feios nomes
afeiam as ascendentes:
que inominável injustiça
ao considerar
no mais fundo da análise
que piores são os párias pergaminhos. 
É voz corrente:
o opróbrio abate-se sobre as mães
sem culpa formada
nos párias que assim se formaram
em intenso e individual tirocínio. 
Partisse o ultraje o portal dos párias
e esconjurassem as mães do malévolo legado
e lugares assim compostos
seriam tributo à equação da equidade.

#720

O voo picado
sem remorsos do precipício
chamamento sem arestas.

10.9.18

Verbo falso

Armadilha-se o verbo
no logro de uma máscara
o sal ungindo todo o fingimento.

O verbo treslido
é a remitência dos vultos
e as absolvições são cortina baça.

O chão minado
disfarçado de piedoso paraíso
dá de si quando não tem remédio.

Dizem: 
o verbo não precisa de armaduras
precisa de um enfeite mirífico.

E das armadilhas povoarem a gramática
já ninguém sabe do idioma
tudo parece ininteligível.

Salva-se o fardamento das palavras
o celofane que disfarça a escória
uma sinuosa estrada torpedeada por beócios.

#719

A pele em escamas
sem rede de segurança
desalentadamente à mostra
na janela inteira.

9.9.18

Imaterial

Um remédio sem remédio.
O nevoeiro sem prazo.
O sorriso no canto da boca.
A porta entreaberta.
O gato preguiçoso.
A bússola perdida no cais.
A precisa delimitação do espaço.
O néon timorato.
A voz rouca que é tumulto em cena.
A criança com o olhar perdido na aurora.
Um balão sem oxigénio.
A fábrica dos sonhos sem paradeiro.