3.2.19

Ferrolho

No banquete dos servos
a mão pesada do suserano
disfarçada de benevolência:
malquisto mundo este
viciado em viciantes dependências
imprimindo no rosto dos súbditos
a marca de água do eterno agradecimento
por de tresmalhados rebanhos se eximirem,
ordeiramente à ordem dos senhores;
para as moedas,
e como tinta-da-China do apascentar,
os rostos de suseranos
imortalizados em sua benevolência.

No banquete dos servos
coalesce a pútrida contrafação dos homens.
Entre esgares que são máscaras
e a indulgência da insciência
crepita a autoridade dos senhores
sob o beneplácito da autocracia invisível.

Oxalá a história servisse
para a emancipação dos homens.

#903

Não é um espelho;
é um biombo
que anestesia os nomes dos rostos.

2.2.19

Medalha

Estremecimento:
o sísmico estilhaço
em repetições que desmaiam
e o vago céu tomado por bruma
espera a noite.
O contrabando não se faz por menos.
O copo vago,
vazado de um golpe só,
deixou a sofreguidão falar
e a boca tomou o sentido.
Já não havia espera para nada.
Por enquanto.

#902

As mãos que não choram
mitigam o mar tumultuoso.

1.2.19

Peito

Bato no peito farto
bato como quem à porta bate:
poderá ser a safra das interrogações
e só um peito generoso
será caudal capaz da função. 
Bato no peito pétreo
bato como que serve arrependimento;
não sei de que culpa se explora
mas sei da dor que a percussão bolça. 
Bato ao peito outro;
pode ser o vitral da atenção
um rumorejo sem jura
ou apenas o diadema das almas somadas:
o estipêndio da ternura
pois não é agressão que se aviva:
é um gesto aveludado
os dedos pincelando os poros
salivando o desejo sem freio. 
Bato ao peito farto
e a boca entoa a consulta da alma
nos vocábulos que surdamente 
tomam conta dos corpos. 
Bato ao peito pétreo
a bandeira de um desejo desarmado,
à espera do peito outro
como santuário da demora.

#901

Considerava pleonástico 
um jornal se chamar “de notícias”.
Depois conheci o Correio da Manhã.

#900

Não juro hinos.
Não venero bandeiras.
Não me inclino diante de dignitários.
Execro os exércitos.
A liberdade não aceita contaminações.

31.1.19

#899

Deito sal na ferida
não sei se para a suturar
ou para castigo de dor.

Caducidade

Uma roda viva
para ver se uma lotaria me unge
e eu, magnânimo,
trato da igualdade dos desiguais.

Uma pétala perdida 
sobrevoa a paragem do autocarro
estaciona à frente dos passageiros em espera
à míngua de audiência.
Estão todos distraídos
a pétala correndo o risco de ser esmagada
se o autocarro cumprir o horário.
Que alguém dê pela presença da pétala
e a salve de tão terrível caducidade!

Ninguém abdica do lugar
na paragem do autocarro.
Ninguém dá pela presença da pétala.

E ela, lacrimejando melancolia
(ou seria uma gota da chuva que começava?)
como se seu pranto ciciasse aos ouvidos
e ela, triste por já não habitar
na árvore frondosa que dela se desprendeu.

Sorte 
que o autocarro estava em atraso
e a pétala foi salva por um golpe de vento,
a sua lotaria num acaso. 

#898

Medida de efeito equivalente:
o rosto nu
desafiando-se ao espelho sem rugas.

30.1.19

A fúria demitida

A dedução escrita na ardósia:
a fúria cabeluda
não é alimento que se veja.
É como submeter o crânio
à centrifugação de uma máquina de lavar
a centrifugação velozmente dolorosa 
– e a cefaleia prolongando-se para além do sono
na sucessão de dias condoídos.

Em vez da cabeluda fúria
e para desapalavrar o iracundo estado
antes ferroadas de abelhas em barda
uma colher de sopa de mostarda de Dijon
uma ópera bufa 
malparida por músico amador
a literatura dos gurus das almas
a esfusiante e, todavia, ardilosa alegria
irrompendo dos gurus das almas.

A dedução
escrita na ardósia
na rima dos violinos
na fervura do mar gentio
no insubstituível cais
onde repousa o pensamento.
O colo firme
onde se dissolvem os males inteiros
(fúria incluída).

#897

Este apoteótico amanhecer
o mel tingido de uvas
e um perene conforto no regaço.

29.1.19

Sorvete de inverno

A litania dos escorraçados
os vultos seráficos açoitando o riso
por dentro das nuvens
onde tudo é chumbo
onde nada se avista.

À margem
uma frase escrita à pressa
a caligrafia imprecisa
o eco forte de um sino válido
na maré sem estribeira, transbordando.

À luz clara
uma loa sentida
a juba do tempo açambarca o verbo
e todos vítimas de todos
na anulação matemática da culpa.

Que serventia, a convocatória dos escorraçados
se todos se embebem na purulenta sede
e amarelecem na palidez gasta
vestígio de nada
no contragosto de tudo?

Desfaçam os paredões hasteados
contrariem os pederastas da razão
tirem o fio de prumo às raízes fundas
no caldo mestiço dos verdugos
em contemplação dos rios sem rédea.

#896

Domesticada a época
sei que a portagem se abre
aos inspirados uivos da matilha.

28.1.19

Meia-idade

O rosto visível
na sombra dos versos
chama a voz a desmedo
nas sílabas que se desprendem da boca.
Sem a ferrugem do gasto
na mão das palavras casuísticas
e, porém, acertadamente temporais,
esboça-se uma dança sem par
o colóquio antes da tarde
no sopé do peito ufano
autor dos versos escondidos.
Fossem os sufrágios da mesma têmpera
as manhãs um riso sem fim
e as rosáceas não murchassem com o frio;
fosse a jura como a maldição
e as campas sem corpos
a tinta perene, na recarga da caneta,
e os pulmões não cessassem a função;
fosse o labirinto o escol da modéstia
e os furtos, distrações sobre a maldade
as vestes nunca gastas
e os pirómanos transfigurados fogueteiros
à passagem dos comboios fantasmas
nos apeadeiros perdidos
nos rios sem nascente por demarcar
e as guitarras uníssonas ciciando o silêncio
contra o jorro dos geiseres pespontados
no olhar insaciável.
Creio ser pouca a ambição
se segredar que quero tomar posse
do mundo inteiro,
dar à sua volta quatro voltas inteiras
e atar a angústia esmaecida 
nos contrafortes da loucura  
como é privilégio dos argonautas sem sono.
Quatro
as voltas ao mundo
sabendo tua mão gémea da minha.
E depois
na mealha do matinal vento quente
segredar ao teu ouvido
um punhado de palavras quiméricas
antes de sabermos por onde entrelaçar os corpos
e na bica dos suores
escrevermos as estrofes vadias
os preparos do despreparo
a loucura em que fermenta inveja
as orações sem deus outro se não nós mesmos
as mãos juntas
cúmplices
as bocas desenhando-se uma na outra
e toda a fome descontada no singular amor.
Com tudo à mão de semear
as armas que não precisam de guerras
as armas com que terçamos os opúsculos fartos
património que só nós sabemos
tutores das almas que apetecer.
Bebo uma gota do suor
na curvatura levemente ruborizada 
do teu dorso
e sei-a do sabor do meu.

#895

O campo de lava,
rugas que mapeiam a pele do pescador
envelhecido sob o acinte da maresia.

27.1.19

Criação

Apanho a rosa murcha
um vestígio do chão desordenado.
As pétalas caducas desprendem-se
ungindo as minhas mãos.
Cobro da tarde soalheira
o êxtase perdido nas migalhas da luz.
E depois
sopro no ombro da noite
à espera que seja mensageira.
As costas das mãos estão suadas.
Bebem o inverno timorato
e inocentam as árvores nuas
desprotegidos cadáveres 
à espera de um fôlego.
Oxalá se aqueçam os corpos frios
na fogueira que a minha boca acende.

#894

Identidade (também)
por antítese
dissemelhança do que me despraz.

26.1.19

#893

O osso sangrado
a inviável inocência
despedaçada nas breves ruínas.

25.1.19

Torto por linhas direitas

As calendas
o processo reescrito
oximoro vestido sobre o corpo
as regras viradas do avesso 
– e a exceção entronizada regra.

Não sei se
um módico de filosofia do direito
ou um mais geral entendimento do rosto político
é dilema hermenêutico
de quem assim transige
e muda a cor da exceção
para lhe dar o sabor de regra.

#892

Tirando o siso da equação
a matemática volta a respirar.

24.1.19

Logo

Admito as lágrimas
no largo que é seu lugar
não sem advertir os dias lunares,
que convocam lobos famintos,
que se pressentem vozes radiosas
versos de poucas falas
as sílabas compostas no tear arcano
sem notícia da ferrugem
nem a oposição de comezinhos oradores. 
Na conta corrente
raspo o salitre desprendido do mar
e os navios em espera são testemunha,
notários involuntários 
por sua envergadura ser sobranceira 
à minha demanda. 
Não noto a presença de marinheiros
(devem estar algemados ao sono);
naquele momento
sou o único marinheiro em redor
com a vantagem
de não responder perante comandante nenhum.
Hei de fazer com este salitre
um tesouro inteiro
e dele darei conta aos trovadores vindouros.

#891

O crédito malparado
paga multa de estacionamento?

#890

Subo pelo vento
heurístico impulso
na montanha não crepuscular.

23.1.19

Mergulho

Trago o uniforme em dia
não apareça, sem marcação, vistoria
e eu apanhado em falso. 
Era assim, dantes,
quando era impressionável
pelas impressões de fora. 
Agora
tenho a ideia de ser juiz de mim mesmo
não à espera de veredictos de juízes de fora. 
Trago, se preciso for,
indumentária não cuidada
ao acaso dos humores que se sopesam
na virtude do momento,
andrajos se preciso for
(descontado o exagero). 
O espelho estilhaçado fez os demais obséquios:
gratifico o desleixo
uma possível medida da liberdade
o inenarrável prazer de celebrar
o ar respirável que circula em minhas veias
sem estorvos e contaminações
sem olhar às coisas 
se não através do meu olhar. 
Há quem diga
em pungente tom censório
que se trata de egoísmo lesivo
possivelmente uma aproximação à sociopatia. 
Devidamente registado. 
O sono 
continua a ser safra meridional,
o astuto sinal da medida que conta
na equação que vem nos (meus) livros.

#889

Quando se pede tempo de empréstimo
não chega a vontade ao entardecer,
sitiada por adiamentos que definem o nunca.

22.1.19

O vinho

Conferência de imprensa. 

Um ruído de fundo
o vinho em espera
tomando forma. 

Burburinho.

O orador entra em cena. 
Nervoso. 

Os dedos trémulos tingem as folhas;
talvez a mnemónica fique estrábica
e a mensagem, adulterada,
seja treslida. 

Ou não. 
Uma dupla negativa anula-se
e a prédica é não intencionalmente percebida.

Os ouvintes
na sala e no refúgio das televisões
sempre têm o vinho
ainda em espera
não capaz de azedar 
no sufrágio dos contratempos. 

Findada a tumultuosa prédica
não há demandas. 

Estão todos
com o sentido no vinho. 

De pior cepa não será
por temível que seja 
a mistela servida.

#888

Não percebo por que é pejorativo
lavar a roupa suja. 
Os costumes
detestam a roupa lavada?

21.1.19

#887

Vingo a alma do tamanho dos mares
e um pequeno tudo tenho
em erupção no peito:
o bálsamo do amor.

Virtudes

Do leilão de apóstrofes
não se livram os apóstolos.
São as tendências da moda. 
Os apóstolos 
teimam na altivez
e discorrem, demoradamente,
sobre as virtudes da virtude. 
Arregaçam as mangas
e no conciliábulo de imperativos categóricos
ensaiam certezas à prova de bala. 
Fazem apostas entre si,
os apóstolos,
para estancar a hemorragia das ideias,
tão fecundos nas hipóteses de virtude
que candidatam ao lugar cimeiro
das virtudes. 
Digladiam-se uns com os outros
quando as lentes 
depuram virtudes em oposição. 
Outros corroboram-se mutuamente
na linhagem das mesmas virtudes,
apenas misturadas 
por divergências de pormenor ou de estilo. 

Oxalá
uns e outros
não tivessem de esbarrar
nuns exilados
uns reprováveis mastins que desalinham,
categóricos desmilitantes de tudo
que indeferem virtudes 
– indeferem as virtudes. 

Por um momento
até os apóstolos divergentes
convergem numa batalha farta:
dar luta sem quartel 
a esses desapoderados
essas más influências
demoníacas paisagens que convidam
à insurgência. 

Não contavam
com a heresia das virtudes
e sabem do sono hipotecado
só de saberem destes hereges. 
Num salto no tempo
temem a anomia
e, quais santidades vilipendiadas,
unem-se em aliança virtuosa. 

Meio caminho já foi andado
para o deserto das virtudes. 
Que não há de ser
degredo
(em negação dos virtuosos).