13.2.19

Dialética

O comboio
cavalga sem siso
esculpindo os carris férteis.

O cavalo garrano
toma a fonte como apeadeiro
desenhando sua língua espirais na água.

O marinheiro
atravessa o cais
desapoderado de seu elemento.

O escultor
amacia o granito
para nele assentar moldura radiosa.

O mendigo
dorme no pontão
à espera que o tempo não seja madraço.

A bailarina
chora no palco vazio
na agonia da solidão.

O cão danado
foge em correria
da loucura dos anciãos.

O paciente
admira a sala de espera
contra a frieza da doença.

O armador
despenteia as páginas do livro
revoltando-se contra a abastança herdada.

O joalheiro
antecipa a luz vívida
na encruzilhada preciosa.

O rapaz 
estroina sem remédio
não sabe o que é dormir à noite.

A costureira
atira o olhar para o firmamento
costurando os sonhos audazes.

O cobrador
pendura-se na estribeira do elétrico
avivando os ecos da infância.

A lareira
desembaraça-se de cinza
e na casa respira-se conforto.

#917

De memória
apanho as sílabas
pausadamente entoadas
na saliva que as aprova.

12.2.19

Acerto

Foram estas as braçadas
que abriram o caudal ao corpo
dantes imóvel na cortina de pesares
dantes sedentariamente militante. 

Não operei nenhum milagre

(estou capaz de jurar
que não caminhei sobre as águas)

o perpétuo dançar não me é caucionado
e, seja como for,
não foi para coreografias 
que se deu meu nascer. 

Prefiro dizer que não fujo das águas
independentemente de sua tempera
e salinidade;
pode ser desmesurada a medida,
contraporão desconfiados em sua metódica 
ciência:
perguntarão se me atiro
até aos mares invernalmente iracundos
se não temo a morte que sussurra
na báscula que atiça as ondas mortais. 

Respondo
por inversa ordem das demandas. 

Sim
a morte é do que mais temo
o pior dos maus.

E sim
quem pode dizer nunca ter sido posto à prova
e quase todos os dias
por mares terrivelmente tempestuosos
que desmentem o bucólico rosto da existência?

#916

Nos contrafortes do peito
onde as águas se amansam
a nitidez desenhada numa silhueta.

11.2.19

#915

Nunca entendi
por que chamam “vampiro”
a quem faz controlo antidoping.
Talvez seja melhor a trapaça.

Dois urros aos preletores da pedagogia

É a petição
que se oferece ao mote:
o arranjo das palavras diagonais
com incidentes de sintaxe
e uns quantos lapsos ortográficos;
mas o pior
é a mensagem,
ininteligível
– por vezes gongórica, 
só para disfarçar a ausência de ideia. 
Não é por acaso. 
A leitura foi atirada para um canto
onde
– de acordo com os argonautas da modernidade – 
vegetam os misantropos. 
Que interessa 
se engenheiros têm uma escrita pueril
se plumitivos 
tropeçam na ortografia e na gramática
se há tanta gente a tresler o idioma maternal,
se os juízes empossados
(lídimos decantadores da pedagogia)
ajuramentam o grande malefício
de ensinar aos petizes o idioma
sob o labéu do erro penalizado?
Não será também por acaso
que tão insignes mestres da pedagogia,
a eles chamando a coroa no périplo
dosprimus inter pares,
sejam apanhados, 
e tão frequentemente,
no logro do pobre idioma.

#914

Componho o crepúsculo
o esconderijo como asilo
enquanto me devolvo a quietude.

10.2.19

Embargo

Do embargo da alma
a cortina evaporada
sal que não salga
a enseada dos estouvados boémios
o arreio atrelado na gravata de doutores
e um escrito com três frases
a jura de um candeeiro para noites
num remoinho retirado ao caudal veloz.
Do embargo da alma
um instante esgotado
a recusa das maldições
o suculento verso à procura de leito,
um papel singelo
humilde.

#913

Sou eu 
que empurro o vento
na vigilância selada com saliva.

9.2.19

#912

Vergonha é culpa
(Antígona):
o eclipse da humanidade,
ou a sua cegueira.

#911

Vinha mesmo a calhar
(o 911).

Caiado

Por dentro do segredo
a melodia
anestesia em forma de favor. 

Por parte do ensejo
o chamamento
refúgio sem portas visíveis. 

Por adesão à farsa
o jogo
tribunal longe da justiça. 

Por compromisso da maresia
o castelo
notário à míngua de papéis. 

Por fuga do hodierno
a centelha
luz desmaiada no recobro do olhar. 

Por vontade sem freio
um livro
paisagem que colhe substantivos. 

Por armadilha esperada
a cautela
provisão disfarçada de advertência. 

Por causa de tudo
uma ideia
santuário de todas as dúvidas. 

Por deferência das interrogações
o bálsamo
apetite do irrecusável.

8.2.19

Moldura

Calculo de cor
a altura da tua pele
o cais em que vejo as cores
num destino sem mapa
se não a bússola em minhas mãos. 
O estremecimento não cora
à espera das armas iguais,
enquanto tribunos no mais elevado altar
somos penhores das joias singulares
no pleito onde entregamos os corpos
em mares agitados num frémito sem horizonte
e as bocas que se cruzam
no suor intemporal. 
Corremos os apeadeiros
em incalculáveis paisagens ditadas pelo olhar.
A submissão da voz
desembaraça o silêncio que fala mais alto
e os sonhos já não são sonhos
porque os traduzimos em cada dia nosso. 
Cresce uma espada sem dor
manual impecável sob a lareira meã
cresce
pelo que de ti há de tanta água em minha boca
no mapa que tateio
o corpo que quero, 
ávido de o querer:
não serão vãos os predicados;
a bem, percorrendo os teus centímetros
a cartografia que aprendo de cada vez
mesmo sabendo-a de cor.
Juntamos a noite ao peito faminto
e se as bocas não se perdem
continuamos feitores da empreitada
uma coreografia em papeis suaves
uma paleta das cores que inventamos
uma marca registada
singular.
Do amanhã
sabemos ser nosso caudal
a bissetriz onde se fundem os corpos nossos
um amanhã que se faz hoje a cada minuto.
Cuidamos do incenso
que se insinua nas veias:
não o deixamos decair
pois somos os curadores das fogueiras válidas
em prosa elegantemente deitada
nas folhas arrancadas ao céu da boca.
Pétalas frondosas emergem dos poros
enquanto dançamos a dança verossímil
compondo as pautas ufanas 
no amparo das velas dispostas
os corpos transidos
a certa altura, 
exangues,
no imodesto verso que te dou
à troca do tanto que me completas.
Se um deus houvesse
tenho a certeza que daria a aprovação
ao império impróprio 
que juntamos com as mãos feitas 
no sangue vínico. 
Os sonhos já não são sonhos
porque os traduzimos em cada dia nosso.
No amanhã que se faz hoje 
a cada minuto.

#910

Os braços murados
desaprenderem de neles abraçar
um corpo outro,
e nem assim lágrimas.

7.2.19

Intrépido

Entrei no vértice do fogo
sem o medo prescrito
apenas a vontade em rima
talvez
com uma loucura inesperada. 

Estes cometimentos
uma certa bravura inóspita
o fermento de uma rebeldia desatada
é mister que se abraça ao corpo
mesmo sabendo da rua sem saída
do eco persistente 
a matraquear a advertência
, contudo, dissolvida. 

É como ir a jogo preparado para perder
e mesmo assim
a ele atirar-me de cabeça
resoluto.

Sei sempre que, pelo caminho,
enquanto jogo os dados da imprevisível demanda,
e o ar rarefeito prova a acrobacia estulta,
pergunto um punhado de vezes:
o que tenho a perder?
Em perdendo o jogo
não perco ao que ia,
apurando o cálculo das probabilidades. 

Sabendo que nada tenho a perder
(pois perder é já mais de meio caminho)
não aceito tergiversações
nem me intimido 
com o resultado das probabilidades.

Em releitura do acontecido
intuo não se tratar de caso de loucura.
Não há memória
que no dicionário das palavras recitadas
intrepidez coabite com loucura.

#909

Emprestem-me uma venda
para do mundo sem lacerações
uma aguarela ser tela do olhar.

6.2.19

#908

Como pode uma guerra ser civil
se todas as guerras são incivilizadas?

Alma

A alma cheia. 
Mistério com fundações 
que devolve a hermenêutica do ser
no abastado leito onde se dilui a fadiga. 
Os parêntesis não contam;
ou, em dando seu inventário como próprio,
inauguram a quimera escondida
na volúvel espessura das palavras. 
Enche-se o poema
e os versos guturais são a viável mão
que segura o corpo inteiro. 

A alma inteira. 
Transfiguração do medo em paisagem domada
transbordando de sentidos na foz achada. 
Não se cumpre o calendário,
perdida a noção do tempo. 
Agora sei da canção que ecoa no pensamento
sei-a singular
povoada pelo luar de cetim
que se oferece às flores,
excecionalmente não recolhidas em si,
para apreciarem o cenário. 

A alma funda. 
Vertida sobre o orvalho demorado
por dentro do olhar sem peias
destinando às árvores
as mesmas raízes em que se funda,
a alma funda.

#907

Ziguezagueando. 
Como uma serpente. 
Não precisa de coluna vertebral.

5.2.19

O desvalor da modernidade

Invento um modernismo. 
Apetece um modernismo
um que seja só para mim
(não é egoísmo). 
Um modernismo sem espelho
que não silabe em preconceitos
a primeira e a última hora
escrito na efemeridade de uma hera outonal
efémero como são as modernidades.
Nem que seja asneira
ou atavismo pela lente alheia;
que é o que menos importa
(a modernidade,
que não estou em dia
de ser desagradável para os outros).
Deixo o pensamento em roda livre
à procura do paradeiro da modernidade:
é assim tão importante
sermos tutelados pela modernidade?
Há os que se projetam na posteridade
os que conservam pergaminhos conservadores,
atados ao pretérito
(seu casulo contra a modernidade).
O pensamento voga para a distração
esquecendo-se da pergunta de partida. 
Ainda bem que assim foi. 
A demanda pela modernidade
é um pastiche sem serventia,
um psitacismo imberbe.

#906


Os votos de bom apetite
são cortesia 
ou um convite à obesidade?


4.2.19

#905

(Poema económico)

Tempos sem inflação
esgotam do vocabulário a carestia.

Manta de corpos

Corpos amontoados
nus
uns dormindo
outros entretecendo-se uns nos outros
outros ainda dormitando
outros em contemplação
outros partindo em demanda de um corpo par
outros tocando-se
outros falando através dos poros
outros desembainhando o desejo
outros vestindo um agasalho
outros sacudindo o suor
outros ensinando
outros estrofes da sua grandiloquência
outros desmatando o ubere da decadência
outros desenhando outros
outros entronizados num clamor triunfal
outros bebendo na seiva resultante
outros perfumando com suas bocas
outros desistindo do marasmo
outros em declinação, intoxicados
outros em êxtase, intoxicados também
outros dedilhando a pele tremeluzente de outros
outros nos outros
outros saindo de outros
outros em amparo de si mesmos
outros cinematográficos
outros decadentes e mesmo assim a jogo
outros no jugo de outros
outros âncora em espera
outros promitentes de cesuras 
outros timoratos do deleite
outros aprisionados no preconceito
outros desenhando silhuetas
outros iracundos
outros defenestrando fantasmas
outros recitando o sol invernal
outros desaguando na indolência
outros arremedos, na indulgência do medo
outros sarcófagos sem saberem
outros impecavelmente belos
outros banhados em artificialidade
outros iguarias em altruísta pose
outros suplicando pares
outros querendo solidão
outros em tirocínio
outros na vulgata da adulação
outros experimentando
outros sem medo da idade
outros à compra de tempo
outros no invejável Némesis
outros atirados ao precipício
outros exangues
outros elixires intermináveis
corpos
todos
sem a decomposição dos síndicos
e até estes
contra todos os prognósticos
corpos.

#904

Da massa seminal
o amparo da noite sem armas,
o dardo tranquilizante.

3.2.19

Ferrolho

No banquete dos servos
a mão pesada do suserano
disfarçada de benevolência:
malquisto mundo este
viciado em viciantes dependências
imprimindo no rosto dos súbditos
a marca de água do eterno agradecimento
por de tresmalhados rebanhos se eximirem,
ordeiramente à ordem dos senhores;
para as moedas,
e como tinta-da-China do apascentar,
os rostos de suseranos
imortalizados em sua benevolência.

No banquete dos servos
coalesce a pútrida contrafação dos homens.
Entre esgares que são máscaras
e a indulgência da insciência
crepita a autoridade dos senhores
sob o beneplácito da autocracia invisível.

Oxalá a história servisse
para a emancipação dos homens.

#903

Não é um espelho;
é um biombo
que anestesia os nomes dos rostos.

2.2.19

Medalha

Estremecimento:
o sísmico estilhaço
em repetições que desmaiam
e o vago céu tomado por bruma
espera a noite.
O contrabando não se faz por menos.
O copo vago,
vazado de um golpe só,
deixou a sofreguidão falar
e a boca tomou o sentido.
Já não havia espera para nada.
Por enquanto.

#902

As mãos que não choram
mitigam o mar tumultuoso.

1.2.19

Peito

Bato no peito farto
bato como quem à porta bate:
poderá ser a safra das interrogações
e só um peito generoso
será caudal capaz da função. 
Bato no peito pétreo
bato como que serve arrependimento;
não sei de que culpa se explora
mas sei da dor que a percussão bolça. 
Bato ao peito outro;
pode ser o vitral da atenção
um rumorejo sem jura
ou apenas o diadema das almas somadas:
o estipêndio da ternura
pois não é agressão que se aviva:
é um gesto aveludado
os dedos pincelando os poros
salivando o desejo sem freio. 
Bato ao peito farto
e a boca entoa a consulta da alma
nos vocábulos que surdamente 
tomam conta dos corpos. 
Bato ao peito pétreo
a bandeira de um desejo desarmado,
à espera do peito outro
como santuário da demora.

#901

Considerava pleonástico 
um jornal se chamar “de notícias”.
Depois conheci o Correio da Manhã.