16.3.19

Corpo refúgio

Tenho em minha posse
as posses que de que sou penhor
quando sou refugiado
no castelo sem terra
e exerço,
para meu grande deleite,
o dever de abraçar ao corpo
o corpo teu que é meu refúgio.

#963

Sem a sede do teu corpo
seria nómada apenas com um deserto.

15.3.19

Ditado

Empenho um adeus
no vale verdejante
onde as romãzeiras são sombra
e destino aos céus
o vulto enigmático 
do discurso sem armadura.

O poema é transitório.

Dos dentes do coiote
sobra o sangue perdido da presa.
Contingências da natureza,
a sua bruta feição
irreprimível
mas abismal ao olhar desprendido.

O mar sentido
porto de amaragem dos argonautas
decide sobre a pele ávida.
Ao menos ele,
o mar sentido
ancoradouro seguro
mesmo quando se enovela
em vagas medonhas.

Não temos mão na natureza.

#962

Nunca admirei o super-homem.
Os heróis
põem-me em pose de desconfiança.

14.3.19

#961

Não sei
se não soubesse
que não saber
é a melhor sabedoria.

Clorofila

Remendo
no penhor das ondas ruidosas
os estragos da maré
o extravio da maresia. 

Remedio
na estafeta que atravessa a noite
o fantasma a desmodo
a praia atribulada nos estragos da invernia. 

Redimo
no apaziguado lacre da lareira
os foles perdidos na gélida desmemória
a retórica febril no pensamento exacerbado.

#960

Parte de mim
crepúsculo adiado
e a outra parte
rumor projetado no devir.

13.3.19

Profecia de adágios

O que ri por último
tira a barriga de misérias.
Fino como um alho
consegue meter o Rossio na Betesga
sem embandeirar em arco.
Nem às paredes confessa
o riso louco do que ri por último
não vá o cobrador dos impostos
redigir auto de incumprimento.
Não são desculpas de mau pagador:
o sol na eira
e a chuva no nabal
agradam a gregos e troianos.
Acertados os que dizem 
não serem grátis os almoços
e ele, desistindo de ser cigarra,
amofina-se como formiga:
assim como assim
todos gastam coiro e cabelo
e a ninguém se lhes leva
a brancura da alma,
que a não há mais branca,
como a demanda de agulha perdida num palheiro.

#959

Tanto sangue derramado
em guerras perdidas no tempo
e o mar continua azul.

12.3.19

#958

O ritual
ou prémio de consolação
no conciliábulo dos eremitas.

Do nada se traz nada

Não sei o que é nada
pois se o nada se resolve no vazio
e do vazio não se traz cor à água
o nada é um indeterminável,
um todo nada.
Se no nada fosse possível nadar
o nada não era um nada assim definido
era uma água qualquer
respirando um algo
nos antípodas do nada.
Mas se ao nada as coisas se devolvem
são ausência em si mesmas
matéria devoluta
dissolvida no ar invisível
como acontece com o nada
e no nada ninguém nada.
Não há conhecimento
de quem tenha emoldurado o nada
ou de quem dele faça retrato
pois o nada é nada
(não é nada, como arbitram os desatentos)
e como nada que é 
esconde-se na cortina do inverosímil.
O nada é nada
não existe,
indemonstrável.
Que seja terminantemente recusado
que o nada é a negação do que existe
pois o contrário de um lado
não se reduz ao seu oposto.
O nada não é nada,
para não configurar a sua negação.
O nada como nada,
dupla negação,
transfigura-se num algo.
E não há notícia
que uma ausência 
seja o seu oposto.

#957

A linha mestra,
antologia.
A linha.
Mestra.

11.3.19

Oximoro

Do lobo
tirou a rebeldia
o isolamento dos fugitivos
a consciência da desrazão.
Apostou as moedas
na contrafação da franqueza:
pior não seria a deceção
desse conta da aposta arrematada.
Na derrota
o insidioso desvario
dos habilitados pela vitória.
Ele há pelejas vãs
que não adianta bulhar
e muito menos triunfar.

#956

Metamorfose da manhã:
a noite empalidecida
perde lugar na plateia dos sonhos agitados.

8.3.19

Aplauso

Que fale o jasmim
nas cores que irradia
no telhado da primavera.

O dedo erguido
não é denúncia:
desenha a silhueta das nuvens
com a mesma precisão de um ariete
e traz ao conhecimento
as sílabas escolhidas 
(adivinhe-se)
a dedo.

Depois da manhã
o soalheiro entardecer 
confirma o diadema engalanado:
os tiranetes
estão condenados ao degredo,
mais cedo ou mais tarde,
ou a humilhante defunção 
às mãos dos que outrora foram presas.

Que fale o jasmim,
ao menos,
a contramaré deste palco hediondo
o sedoso campo 
por onde os corpos se habilitam
na anestesia da obnóxia condição 
que é o periférico a tudo.

Que fale 
o jasmim.
As palavras de silêncio
apostilha arqueada sobre o texto robusto
a milésima de segundo
que faz a diferença.

#955

Por que quimera
se faz das tripas coração?!

#954

Olhou o espelho
estilhaçado. 
Não sabia
que despedaçada era a alma.

7.3.19

#953

O coração
como um rápido
em rio não domado
sabendo-se na tua presença.

A dança dos aspirantes

Por estimativa
a fila extensa de servis
o séquito
pretendentes a sinecura
uma qualquer que seja,
desde que sinecura
assim ordena a pulsão pelo poder
o poder como obscena edição de si mesmos
talvez
um mal resolvido complexo
com a autoridade filial. 
Por estimativa
alpinistas sem regra
inescrupulosas almas 
disfarçadas de punhos de renda
amesendando com os mandantes
no investimento para memória futura
na paciente espera
pelos frutos que hão de pender
da promissora árvore da Janus. 
Os corredores são os das influências
onde o demais pertence ao retrovisor esquecido
e apenas contam
a deferência
as imperativas genuflexões
o elogio fartamente adjetivado
as solidariedades de casta
os favores em branco
mais a paga e a contracapa dos favores
a teoria dos jogos em forma de rumor
os golpes palacianos.
Medram na sombra
no sonho requentado de um holofote a preceito
pano de fundo dos figurões
quando espevitam câmaras de televisão
coiotes implacáveis
que não se regem por lealdades
a não ser com os que tomam o leme.
Matam para não morrer.
Nem desconfiam
que são os primeiros sacrificados
no banquete das vaidades vaporosas do poder.

#952

A vertigem da classe média
que por aspirar a ser alta
tomba na ruína
(sem aos baixos estratos se despromover).

6.3.19

Aquário & biblioteca

Descobri um aquário
sem água.
E o que pode
um aquário sem água
se está à míngua
de seu vital elemento?

Era depósito de livros.

As lombadas amontoadas
comprimindo tanto as vidraças
que até pareciam balofas,
incapacitados os livros de respirar
como se exige
das páginas deles expostas.

Três dias depois
um clarão ateou o juízo:
as bibliotecas
são aquários colossais
onde corre o fecundo manancial
de seu conteúdo.

#951

Não contem comigo
para fraturas expostas
e equações em forma de diatribe.
(Hoje.)

#950

As cicatrizes
dispostas como camuflado
contra o mundo.

5.3.19

Diligência

Diz-me 
do fundo das palavras:
que é feito dos pesares
agora que a angústia está ausente
e da saudade sobra o império perdido?

Digo-te
com a possível simplicidade
que o castelo protege a memória vulnerável
contra os síndicos da comiseração
os cães danados que deitam o dente
assim que podem
os dandies que especulam sobre a estética
e mordem em arrevesadas investidas
no sol posto onde tudo se consome na carestia. 

Dirias
que não te abates
no verso intemporal
nem cuidas das ciências sem método
ou de prolixos fazedores de farsas. 

Dir-te-ei
caso seja caso para o dizer
que as manhãs são juízes corretas
e nem o nevoeiro é cortina bastante
no involuntário arquear das pálpebras gastas
desmentindo categóricos imperativos. 

Disseste
em rima com a caudalosa trovoada
que não coincidimos com as varandas pueris
e das tardes soalheiras
resgatamos os corpos transidos
contra a indolência perfunctória. 

E eu disse
sem qualquer objeção oferecida
que não deixamos pela metade
quando sabemos a inteireza das coisas.

#949

Satélite ou colónia
não conseguia escolher a bissetriz
e padeceu no logradouro da sujeição.

4.3.19

#948

Entre anestesia e emboscada,
ou um sonho que duvida.

Conjugação

Todos os verbos
são poucos na maré diuturna
no pressentimento do passado
nas bocas sedentas dos apóstatas.

Todas as formas congruentes
as rimas improcedentes
os solavancos das noites versadas
os antagonistas sem rival
todas são escassas
na lua embaciada. 

Todos os dedos
são poucas estrofes
no vagar do outono
nas janelas debruçadas sobre o rio
nas intempéries que não se intimidam
todos os refrões
são matéria gasta.

Todos os medos
são poucos na vertigem dos ousados
no penhor da lucidez
nas tílias que dão extensão à avenida
no idioma prévio
nas fotografias a preto e branco
que emolduram marinheiros desembarcados. 

Todos os cedos
são poucos no caldeirão de maestros
no ritmo das sílabas docemente soletradas
sem a recusa do devir
no antepassado irrepetível
da palavra incansável 
contra o dogma do silêncio.

#947

Estão no etecetera
as entrelinhas 
que confere desembaçar.

3.3.19

Clepsidra

Dizem: 
temos de escrever o futuro;
somos infecundos 
se o passado preterirmos. 
Eu digo: 
temos de ser notários do presente. 
Dos dedos, 
soerguem-se as estrofes 
que o hoje veneram. 
O único rosto do tempo 
de que temos oráculo. 
As pálpebras não emaranhadas 
na amálgama dos tempos fantasmas.

#946

Nos areópagos circenses
não se esgota o capital da ridicularia
(essa moeda em alta).