21.3.19

#971

As palavras que digo 
são as que escrevo
mas não escrevo
todas as palavras que digo.

#970

Chora os chacais
e chama a charada.

20.3.19

#969

Um tiro no escuro
uma bala encravada
nos contrafortes das probabilidades.
Uma bala não desperdiçada.

Propulsão

Por dentro da memória futura:
um lago desidratado
a névoa que se insinua na colina
a identidade sem vestígios
e o aparente algoz
hibernado. 

Conto os números
por distração. 

Conto as pessoas
enquanto desfilam à minha frente
e o café arrefece,
à espera de molhar os lábios. 

Não há notícias de tempestade. 

Evocações distantes,
perdidas no poço fundo da desmemória,
transfiguram o espaço em que se move
o tempo. 

Não há notícias do tempo
na sua indolência futura. 

O marégrafo constitui-se espectador,
ele que se esperava fosse ator;
a tirania do vazio
ocupa-se das empreitadas assinaladas
e os netos dos netos podem esperar
uma multiplicação do vazio. 

Não há notícias de tempestade:
o tempo corre pela cronologia arrastada
e os desenhos na ponta do dedo
dizem que as sombras se dissolveram
no seu movimento exíguo. 

Para fora da memória futura:
esvazio o armário
e fico à espera 
que as quimeras sejam adiamento 
perpétuo. 

#968

Da desobediente alma,
curativo meridional
em colheita nunca tardia.

19.3.19

Arte

Preces inacabadas
ou monumentos em ruína 
– nunca soube 
que metáfora se alinhava
no diadema das considerações.
E talvez estivesse no fulcro do mundo
a fáctica convulsão arrojando-se
contra o meu rosto
e eu,
simples erupção
vulcão modesto sem ninguém assustar.
Devo dizer
que não fora esse meu propósito; 
e que,
insisto,
sempre me foram indiferentes
as dores e as bebedeiras de júbilo
os disfarces e os rostos marcados
os ossos corroídos ou as atléticas esfinges
a decadência ou a opulência
que outros reprimissem ou ostentassem.
De todos os males, 
o menor:
não sou adestrado em preces
e não tenho medida de monumentos em ruína.
Há algo em mim
(sussurra uma voz interior
de que não conheço o timbre)
que me chama para outros quadrantes
destes que são incógnitos no diapasão que sei.
Outras páginas
outras paisagens
outros teares de imberbes palavras
outros cometimentos
outros lugares
outros mares com diferente salitre
outros ângulos do mesmo olhar
outros lagares onde a alma se refreia 
– uma anestesia, 
uma hibernação, 
uma coisa assim parecida.
Sei, contudo,
que tantos outros
(estes e outros outros que subam às paredes)
são a desmedida da medida que sou
e retorno às costuras de mim
no deleitoso palco em que sou eu
sem o embaraço da diferença
de um eu que não cobiço ser.

#967

Entrego-me
literal
e no sopé de mim mesmo,
curador do teu desejo.

18.3.19

Geiser

Arrumada a aritmética dos sentidos
agora sei dos vestígios do sol
antes de ser evaporado no entardecer.
Registo o voo dos estorninhos
os decibéis da coreografia
e de todas as metáforas palpáveis
escolho a que reputo de improvável:
as arestas do céu
minadas pelos rastos dos aviões apressados
moratória não divina,
apenas o sepulcral silêncio
em cima da carne crua

o peito sem amarras. 

Não me apetece regressar à aritmética. 
Os sentidos estão inventariados. 
Tenho uma página
à espera que seja seu síndico.

#966

Em tempos
tinha o Jornal de Notícias como pleonástico.
Hoje, com o império das notícias falsas,
é um vocativo.

#965

E depois havia os sonhadores,
os que não se conformam
com o dia em forma de vulto.

17.3.19

#964

Não tinha nada a dizer
às finas tapeçarias
esquecidas no lúgubre sótão.

16.3.19

Corpo refúgio

Tenho em minha posse
as posses que de que sou penhor
quando sou refugiado
no castelo sem terra
e exerço,
para meu grande deleite,
o dever de abraçar ao corpo
o corpo teu que é meu refúgio.

#963

Sem a sede do teu corpo
seria nómada apenas com um deserto.

15.3.19

Ditado

Empenho um adeus
no vale verdejante
onde as romãzeiras são sombra
e destino aos céus
o vulto enigmático 
do discurso sem armadura.

O poema é transitório.

Dos dentes do coiote
sobra o sangue perdido da presa.
Contingências da natureza,
a sua bruta feição
irreprimível
mas abismal ao olhar desprendido.

O mar sentido
porto de amaragem dos argonautas
decide sobre a pele ávida.
Ao menos ele,
o mar sentido
ancoradouro seguro
mesmo quando se enovela
em vagas medonhas.

Não temos mão na natureza.

#962

Nunca admirei o super-homem.
Os heróis
põem-me em pose de desconfiança.

14.3.19

#961

Não sei
se não soubesse
que não saber
é a melhor sabedoria.

Clorofila

Remendo
no penhor das ondas ruidosas
os estragos da maré
o extravio da maresia. 

Remedio
na estafeta que atravessa a noite
o fantasma a desmodo
a praia atribulada nos estragos da invernia. 

Redimo
no apaziguado lacre da lareira
os foles perdidos na gélida desmemória
a retórica febril no pensamento exacerbado.

#960

Parte de mim
crepúsculo adiado
e a outra parte
rumor projetado no devir.

13.3.19

Profecia de adágios

O que ri por último
tira a barriga de misérias.
Fino como um alho
consegue meter o Rossio na Betesga
sem embandeirar em arco.
Nem às paredes confessa
o riso louco do que ri por último
não vá o cobrador dos impostos
redigir auto de incumprimento.
Não são desculpas de mau pagador:
o sol na eira
e a chuva no nabal
agradam a gregos e troianos.
Acertados os que dizem 
não serem grátis os almoços
e ele, desistindo de ser cigarra,
amofina-se como formiga:
assim como assim
todos gastam coiro e cabelo
e a ninguém se lhes leva
a brancura da alma,
que a não há mais branca,
como a demanda de agulha perdida num palheiro.

#959

Tanto sangue derramado
em guerras perdidas no tempo
e o mar continua azul.

12.3.19

#958

O ritual
ou prémio de consolação
no conciliábulo dos eremitas.

Do nada se traz nada

Não sei o que é nada
pois se o nada se resolve no vazio
e do vazio não se traz cor à água
o nada é um indeterminável,
um todo nada.
Se no nada fosse possível nadar
o nada não era um nada assim definido
era uma água qualquer
respirando um algo
nos antípodas do nada.
Mas se ao nada as coisas se devolvem
são ausência em si mesmas
matéria devoluta
dissolvida no ar invisível
como acontece com o nada
e no nada ninguém nada.
Não há conhecimento
de quem tenha emoldurado o nada
ou de quem dele faça retrato
pois o nada é nada
(não é nada, como arbitram os desatentos)
e como nada que é 
esconde-se na cortina do inverosímil.
O nada é nada
não existe,
indemonstrável.
Que seja terminantemente recusado
que o nada é a negação do que existe
pois o contrário de um lado
não se reduz ao seu oposto.
O nada não é nada,
para não configurar a sua negação.
O nada como nada,
dupla negação,
transfigura-se num algo.
E não há notícia
que uma ausência 
seja o seu oposto.

#957

A linha mestra,
antologia.
A linha.
Mestra.

11.3.19

Oximoro

Do lobo
tirou a rebeldia
o isolamento dos fugitivos
a consciência da desrazão.
Apostou as moedas
na contrafação da franqueza:
pior não seria a deceção
desse conta da aposta arrematada.
Na derrota
o insidioso desvario
dos habilitados pela vitória.
Ele há pelejas vãs
que não adianta bulhar
e muito menos triunfar.

#956

Metamorfose da manhã:
a noite empalidecida
perde lugar na plateia dos sonhos agitados.

8.3.19

Aplauso

Que fale o jasmim
nas cores que irradia
no telhado da primavera.

O dedo erguido
não é denúncia:
desenha a silhueta das nuvens
com a mesma precisão de um ariete
e traz ao conhecimento
as sílabas escolhidas 
(adivinhe-se)
a dedo.

Depois da manhã
o soalheiro entardecer 
confirma o diadema engalanado:
os tiranetes
estão condenados ao degredo,
mais cedo ou mais tarde,
ou a humilhante defunção 
às mãos dos que outrora foram presas.

Que fale o jasmim,
ao menos,
a contramaré deste palco hediondo
o sedoso campo 
por onde os corpos se habilitam
na anestesia da obnóxia condição 
que é o periférico a tudo.

Que fale 
o jasmim.
As palavras de silêncio
apostilha arqueada sobre o texto robusto
a milésima de segundo
que faz a diferença.

#955

Por que quimera
se faz das tripas coração?!

#954

Olhou o espelho
estilhaçado. 
Não sabia
que despedaçada era a alma.

7.3.19

#953

O coração
como um rápido
em rio não domado
sabendo-se na tua presença.

A dança dos aspirantes

Por estimativa
a fila extensa de servis
o séquito
pretendentes a sinecura
uma qualquer que seja,
desde que sinecura
assim ordena a pulsão pelo poder
o poder como obscena edição de si mesmos
talvez
um mal resolvido complexo
com a autoridade filial. 
Por estimativa
alpinistas sem regra
inescrupulosas almas 
disfarçadas de punhos de renda
amesendando com os mandantes
no investimento para memória futura
na paciente espera
pelos frutos que hão de pender
da promissora árvore da Janus. 
Os corredores são os das influências
onde o demais pertence ao retrovisor esquecido
e apenas contam
a deferência
as imperativas genuflexões
o elogio fartamente adjetivado
as solidariedades de casta
os favores em branco
mais a paga e a contracapa dos favores
a teoria dos jogos em forma de rumor
os golpes palacianos.
Medram na sombra
no sonho requentado de um holofote a preceito
pano de fundo dos figurões
quando espevitam câmaras de televisão
coiotes implacáveis
que não se regem por lealdades
a não ser com os que tomam o leme.
Matam para não morrer.
Nem desconfiam
que são os primeiros sacrificados
no banquete das vaidades vaporosas do poder.