24.4.19

Fundo de maneio

Ouço o outono:
a chuva dança no telhado
e do mar vejo apenas uma silhueta.
As vozes agigantam-se 
na embocadura da maré matinal
cantam estrofes sem ordem
e esperam 
que seja servido o doce entoar das velas.
Não que seja aniversário:
as velas são dos navios em espera
sem saberem
quando se cansa o mar iracundo.
Entretanto
a manhã dissolveu-se nos preparos da tarde
e um cauteleiro cego apregoa a sorte
que, por madrasta ser,
não apadrinha ninguém.
Os pés das árvores observam,
indiferentes,
o voo rasante das andorinhas
a sua coreografia estouvada.
Ouço o outono
e não é um pranto o que o outono ordena
que seja chuva abundante
em tardes disfarçadas de melancolia.
É o seu fundo de maneio;
não vá a primavera 
tomar o rosto do inverno.

#1016

No campo escondido
cicatrizes sob o restolho,
o húmus da vida.

23.4.19

#1015

Não dispo o verbo
e nas sílabas sentado
com procuração do escrivão do medo.

Poesia renhida

Poesia renhida.
O armazém transborda
de flores caiadas.
Terás um garfo à altura
do trono que desocupaste?

O arlequim boceja
entre o aparato vicejante
da flora exemplar do jardim zoológico.
Quem se ocupa
dos encargos imorredoiros
das arcaicas tradições que pintam o céu?
Quem tem uma pista
desarmadilhada no intenso tráfego dos bichos
sem dedilhar as cicatrizes lançadas ao chão?

A espada está embainhada
e os falcões dormem no ninho improvisado.

Quem são os ascetas inverosímeis
os calçadores de ameias
os tutores da medula que não se gasta,
os poetas renhidos?

Não interessam identidades.
Os berços sem alma
valem tanto como as comendas lustrosas.
O verniz em camadas
não consegue esconder a medula em sua raiz
e os contumazes ébrios 
seguem escoltados na sombra 
como se se escondessem da vergonha alheia.

Transitam os vendilhões de arcada em arcada
os furtivos passos em volta
deixando escrito nas nuvens encorpadas
o veludo em que se antecipa seu nome.
O sol consequente
cuidará de revelar o avesso das nuvens
entretanto dissolvidas.
Deixar-se-ão, então,
os templos vazios
a sua coniforme base estilhaçada
pelos sismos costurados 
em palavras mordazes.

As mesmas 
que são servidas
na poesia renhida.

#1014

Fui ver o avesso da página
e colhi 
um miosótis amanhecido.

22.4.19

Consentimento

Ao correr da escrita
sem interrupções nem arestas vivas
o dédalo instruído para acolher as palavras
e o teatro composto com o silêncio apessoado.
Aviva-se a centelha furtiva
por sua vez esbulhada ao sótão do futuro
em vez 
de se desembaraçar dos empoeirados vultos
dos latidos em rumorejo
rimando com o ribeiro que transita em contramão
ao vê-lo através do retrovisor,
parado sobre a ponte arcaica.
Tudo se basta num instante.
Tudo se resume à lágrima enxuta
pela mão providencial
a mesma mão que foi ao mar
e trouxe a maré composta
ou uma amostra da maresia olvidada,
ou então,
um grama de sal contendo um litro de lágrimas.
Não sei se chegam as palavras bolçadas
os lírios decadentes ainda coloridos
os braços inertes e o corpo pusilânime
a cama desfeita na emancipação do sono,
as palavras desarranjadas no papel amarrotado
a voragem das ideias 
que parecem um curto-circuito;
há vozes obscuras
vozes sem correspondência de rosto
ou sequer de vulto
que segredam 
incessantemente 
que sim.
E eu chego 
com o que me dizem que chega.

#1013

Deixam-me nomes
na norma exaurida
e eu sondo o crepúsculo estiolado.

21.4.19

#1012

A tocha antes do rastilho
a chama depois do desejo.

20.4.19

#1011

Passaporte ou salvo-conduto;
não interessa
a menos que tenha caducado.

19.4.19

#1010

Abotoados os sentidos
em sentido
no proveito da desordem.

18.4.19

Braço de prata

Adivinho a noite. 
Inteirado do estado inconsciente
demando à sombra o pecúlio restante
a argamassa que se estratifica
no inútil arranha-céus. 

(Que estulto nome
que convencionaram para o longilíneo edifício:
alguém acredita
que arranha o céu,
ou que sequer perto esteja de o alcançar?)

De resto
são as distrações do costume:
uma polémica entre duas públicas figuras
o sorriso setentrional de uma starlette
o fogo de vista no fingimento reinante
a maré alta tabelada depois da maré baixa
uns inquisidores que açambarcam os costumes
a arraia-miúda, irrelevante
o contorcionismo de estetas inveterados
o suplício das atrizes
a súplica de mendigos e outros órfãos
a publicidade risível
os galanteios de forasteiros
(sem terem tempo
se não para as impressões superficiais)
o denodo da administração pública
as praias estranhamente desertas
(ou não fosse um soalheiro dia de inverno)
a batota fulminante
as batalhas terçadas na violência das palavras
a desonestidade intelectual
a farsa impante dos melhores sacerdotes
(mas nem assim rejeitados)
os penhores por um degrau de reconhecimento
toda esta multidão de meretrizes do pensamento
vendida a preço de saldo. 

Mas não se passa nada. 

Toda a gente dorme o sono dos justos. 
Desenganem-se os meirinhos da insatisfação
que ou é de seus pergaminhos insuportáveis
ou de um clamoroso erro de juízo. 
Já não há pedras no chão
para alguém ser chamado à pedra;
em todo o caso,
se as houvesse,
seria pouco misericordioso
frequentar a plateia
de onde se veria 
uma metade a fugir da pedra
e a outra a imitá-la na função. 

Não se passa mesmo nada. 

Ainda bem que extinguiram as pedras
e nos passeios qualquer um se pode deitar.

#1009

Falávamos do dilúvio, 
a validação da ravina
onde medrava o desespero 
que não era nosso.

17.4.19

Os anões mentais

O ritual
de fortunas madrastas
é um golpe seco
nos avarentos tomadores do futuro.
Não são 
se não meã condição
num ensimesmar mendaz
a cortina gasta corrida
sobre o céu sem costuras.
Ensaboam-se nesse ritual
como se fosse essa 
a única higiene que sabem.
Uma bíblia adeja a sua silhueta;
não é aura que pesponta
as fronteiras de si mesmos:
em boa hora se considere
que não é meã sua condição
por se tratar de autêntico nanismo.

#1008

Que juro se paga pelo que juro
se nem eu sei o que juro?

16.4.19

Xisto

Este o carrossel 
que me escolheu para cascadeur
Só uma ínfima parte de mim
aquela que rima com loucura
quase sempre domada pela hibernação. 
Não preciso de encorajamento
nem sei do equipamento à medida. 
De mim se consta
que alinhei por caminhos delimitados
e jamais transgredi nos deslimites. 
Não dou o braço a torcer. 
Quem de mim assim se pronuncia
não tem de mim
sequer
uma ínfima fração de meu relógio. 
Não se joga a circunstância
(ou apenas não concorre minha vontade)
de segredar
onde é o carrossel de que sou
cascadeur.

#1007

A régua e esquadro
no céu desenhado
o rastilho de avião apressado
para o tempo não morrer adiado.

#1006

Não foram perdidas
as madrugadas penhoradas
na fuga dos vultos noturnos.

15.4.19

Dispersos

Primeiro ato
I
Raça tresmalhada
no casino dos loucos
em mesas dardejadas por balas perdidas.

II
Em contratos selados
os mastins açaimados e seus donos 
com os dentes cariados na ufana pose iracunda.

III
Sem saberem o devaneio
os impecáveis sacerdotes conversam
no pulcro, acetinado balcão das virtudes.

IV
A rapariga tímida
não se intimida com os beócios ululantes
em vampíricos dizeres de sua tóxica condição.

V
O desarranjo do sono
não culpa a lua acesa
a não ser que haja lobos por perto.

VI
O homem passeava o kilt escocês
sóbrio como não é consuetudinário
a caminho de uma solenidade que não confessou.

VII
O marasmo era a soma da inércia
e todos estavam contaminados pelo silêncio
em acidental peregrinação pelo vazio.

VIII
Admitidas na sociedade secreta
celebravam com diamantes vertidos no vinho
à medida que a luz se deitava nos segredos.

IX
Imaginou-se ator
perdido no palco de sua confeção
e conseguiu ver até de olhos fechados.

Segundo ato
X
Era uma amostra de enredo
e as teias sobrepostas
embaciavam o entendimento da audiência.

XI
Já não era véspera de boémia
e elas usavam aspirinas como manobra
esperando ordens para espiar em nome da pátria.

XII
As nuvens imateriais
ofereciam-se antecâmara de um limbo
mas não passava de pesadelo suado.

XIII
Perdeu-se no labirinto
e as nódoas no kilt escocês
não disfarçavam a heresia dss Guiness.

XIV
A alcateia ouvia-se ao longe
e os aldeões lacraram as portas
hibernação imperativa para silenciar os lobos.

XV
A rapariga sonha com a vingança
a liquidação de um erário descultural
no desterro dos marialvas.

XVI
Um eremita foi a tempo da dissidência
e provou o proibido alqueire
não descansando enquanto não tresmalhou outros. 

XVII
Os bravos com mastins a tiracolo
imaginam-se bravos de verdadeira cepa
mas ninguém conhece uma coragem para amostra.

XVIII
Tropas nefandos
regurgitam as balas ao acaso
não contando com o efeito bumerangue.

#1005

Não é líquido que aconteça.
Nem sólido, ou gasoso.
Não vai acontecer,
digam lá de uma vez por todas.

#1004

Um rasgado elogio
é diferente de um elogio rasgado?

14.4.19

Pontes

A geografia das pontes.
O epicentro de onde irradiam 
as convergências.

As pontes 
deviam ser património da humanidade.

Todas.

Por os véus cerrados que se estilhaçam
e se há estilhaços que são bónus
este é o viveiro dos exemplos condensados.

Nas pontes
tornam-se opacos os calabouços
onde dantes se ferviam oposições
e as mãos dão-se
como exemplo de um corpo inteiro
não dando aval a pendências sem fundo.

As pontes são concórdia
sem oprimirem interrogações.

#1003

Um emaranhado de imagens:
paisagens sobrepostas
no corpo tatuado por vozes sem dono.

13.4.19

Codificação

Código postal:
desde a aliança com o vazio
faz-se a estrada no crepúsculo
contra a letargia sepulcral.

Código morse:
desde a noite estilhaçada
faz-se à estrada do lamento
a favor do sonho entorpecente.

Código de segurança:
exceção sem regra
faz-se da estrada gente com lustro
no desembaraço que não deve à vergonha.

#1002

A língua inglesa é admiravelmente otimista.
Dizem que estão “unwell
(à letra: “não bem).
Nós, brutamente,
dizemos que estamos mal.

12.4.19

O véu sobre o medo (subtração)

Dizia:
“não sei como é morrer” 
– e deixava à porta os ramos sortidos,
colhidos da investida furiosa contra
os impérios resguardados do mal.

Continuava:
“não sei como hei de morrer” 
– e armava os braços contra a lucidez
e em vez de comprar navios de porte
contava os que entravam no porto
sem, contudo, quererem cais.

Dizia, vezes sem conta:
“não acredito que vou morrer”.
Em sua defesa
inventariava um ror de perguntas
órfãs de refutações:

“como sei que morri
se não consigo ser testemunha 
da morte minha?
Como é a morte
se do desprendimento de tudo
se impossibilitam os sentidos?”

As aliterações que se jogavam 
no desarranjo de tudo
prefaciavam o santuário que queria seu;
a morte não sentida
deixara de ser uma inquietação.
Não era perene esta inquietação
(isso era uma certeza):
a crer pelas últimas notícias
a morte é uma interrupção.

“A morte deixara de ser uma inquietação” 
– convencera-se.
E nem assim
o medo cessou de ter sua maré
quando a ideia da morte 
subia podre à boca de cena.

#1001

Tara perdida,
imprestável
e ainda assim fecunda.

#1000

Sinto-me uma parcela de mim
mas às vezes
o meu todo não chega 
para o que sou.

11.4.19

Mão-de-obra

Não é emergência
o grito da cria
no úbere maternal.

Não é emergência
a chuva esforçada
no intervalo invernal.

Não é emergência
o lodo imprestável
na pia abismal.

Não é emergência
o farol bastardo
contra a haste sacrificial.

Não é emergência
a fala muda
no cemitério batismal.

Não é emergência
a prece chorosa
no resgate conventual.

Não é emergência
a voz furtiva
no palco matinal.

Não é emergência
o voto impeditivo
no clamor sacramental.

Não é emergência
o entardecer agravado
na véspera do ato final.

#999

“Os direitos do homem desnaturado”.
Ou os direitos desnaturados do homem?

10.4.19

Opúsculo

A que jogo jogamos
quando os dados são o avesso da lua?
Talvez arrumemos a barricada
a fábrica intensa dos sonhos 

– a fábrica que fabrica sonhos intensos – 

e ficamos a saber dos sortilégios em cadeia
e das inverosímeis escadas sem abismo.

A que jogo jogamos?

Oxalá os lúdicos instantes tivessem inflação
para agarrar os demónios pelos cornos
(têm-nos, não têm?)
e reduzir o marfim a quimeras
com que daria de comer aos miseráveis.