8.3.20

#1421

Consolado
Con su lado
Consulado. 

Janela sobre o rio

A curva do rio
retém os minutos,
deseja ao tempo
que seja refém 
da sua suspensão. 
Ontem 
era o rio soalheiro. 
Hoje 
o rio bendiz a chuva,
que não apetece demorar. 
A curva do rio
indiferente
pereniza uma certa ideia de deificação
e os olhos testemunham
barcaças indeléveis 
de um torpor lisérgico.

7.3.20

Ensaio da coragem

Tapei o luar
com a voz húmida.
Sem as trevas a adejar
havia uma janela calma
o andaime onde os jardins mentais
se antepunham
em cascatas de uma luz ímpar
o musgo onde as mãos se saciavam.
Se à manhã fosse devolvido o cais
seria como um cimento que dá forma
e o dia ganho 
em vez de angústia
Seria 
como moeda atirada à sorte.
Atirada à sorte:
faltava saber do seu paradeiro,
Para que a moeda 
não ficasse órfã.

6.3.20

Do embargo

Não sei do embargo
das lágrimas sem curso
dos verbos estilizados
do caudal sem sombra
da matéria fecunda hasteada
do jogo onde se terçam os desejos.
Do embargo
com que sou entronizado
num lugar sem terra,
as quimeras desenhadas 
numa tela sem amperes
num lugar
onde se desembainham os rostos
em miragens que se não gastam
em maresias que aterram em meu colo.

Digo do que disse
o mesmo que hei de dizer
quando o tempo a haver
for tido como prenda da memória.

Digo o que digo
o que for sem o embargo da prevenção
e invento a gramática a dedo
meticulosa
irreparável
maravilhosamente devastadora.

Já sei do embargo
de tudo a que ao embargo se dá
e não dou ao coldre
a menor impressão de medo
a menor impressão
do arrependimento de ser o que vim a ser:
ao abate 
entrego as memórias sem paradeiro
os apeadeiros a que não fui
as palavras que fiquei por dizer
esta ociosidade dilacerante
os adiamentos sem agenda
o eu que não quis ser.

Não me cabe
o embargo 
de ser embargo de mim mesmo,
descategoria operativa
nos quintais férteis, 
ávidos,
povoados pelas árvores de fruto
e por sua maré odorosa. 

#1420

Os rios
não secam
nunca.

5.3.20

#1419

Venho no silêncio
vento sem apeadeiro
voz no avesso de um verso. 

Tribuna

Amanhece
o que entontece
na ausente prece 
do homem que não esquece. 

Empalidece
o que apetece
no palco em que acontece
e no peito enfurece. 

Agradece
onde anoitece
e espera que amadurece
o verbo que enaltece. 

Entretece
o rosto que entardece
e a pele que enrijece
no amanhã que estremece. 

#1418

Passei na morada da tempestade
e disse ao oráculo 
que ficava entregue ao oblívio. 

4.3.20

#1417

Amante
é a palavra mais vilipendiada.
(Pois se amante
é aquele que ama.)

Coiote

O pobre coiote
sempre derrotado
sempre espalmado
ou tisnado pela dinamite 
ou eletrocutado por uma aleatória trovoada

(sorte a dele: 
em crédito 
tinha mais do que sete vidas)

faminto,
incapaz de aprisionar o pássaro. 
O pobre coiote
no papel de caçador
sem arcar com o estigma da maldade,
metáfora intransitiva da desrealidade:
ao contrário das fábulas contadas aos infantes,
e em contravenção do imaginário da sétima arte,
nem sempre tudo se reduz
à binária lente dos bons e dos vilões. 
Essa 
é a melhor metáfora da aprendizagem
dos infantes

(e mnemónica dos pós-infantes):

Num teatro sem vilões
uma personagem é castigada 
com um deserto de sorte. 

#1416

Os azulejos gastos,
fotografia
da decadência (todavia) estética. 

3.3.20

#1415

[Variação do #1414]

O que vi eu 
(nesta terra)?
Um lugar formigado
de “porteiras com botões de punho”.

Simultâneo

Ajuízo
em plena letargia dos ascetas
o lúdico rimar de sacerdotes sem sinecura
o paradeiro único
na luz estrelar que bordeja a enseada.

Não tiro as armas de lugares empenhados
e aos versáteis maestros
algemo a vontade pútrida.

De vez em quando
nado na maresia encantatória
devolvo rugas e angústias e a madurez
aos armários sem serventia
um feitiço não pedido
contra os olhares devastadores
inquisitoriais
eles próprios o nome de uma mordaça
entretanto
evaporada por dentro do mar intempestivo.

Apeadeiro não sei ser
para agrado dos estultos 
que se fazem ao luar do farol 
que apascenta os timoratos.
Ensinam-se
as estrofes pendidas sobre as flores
as que trovejam sílabas fundas
antes que o ocaso leve vencimento
sobre as espadas embainhadas 
– e do tudo 
sobre um nada
dilacerante.

#1414

O que vi eu?
Um mundo sem maestro
à procura de pauta.

#1413

A dissolução
não traz a dissolução.

[O hábito não faz o monge]

2.3.20

Certidão de envelhecimento

A nortada abençoa os corpos trémulos. 
O sal incorpora-se,
torna os corpos fortalezas preparadas
tirocínio contra os rombos fáceis
e ladrões sem medida dos escrúpulos. 
A meias
a fatura convidativa
é um penhor hasteado que sobe à maré
investe no seu epílogo como farta recompensa. 
Não se congeminam adiamentos. 
A rosa na mão 
intervém a favor dos desejos
convoca a chama árdua que resiste ao vento
e no desassossego da tempestade não desisto,
não desisto das ruas apinhadas
dos jornais sem desenho de catástrofe
das preces ditas pelos outros,
a seu favor,
em meu esconjurar de demónios. 
Abandono os noturnos sons guturais
e preencho as palavras com ouro interior
lágrimas asseadas
trovoadas intempestivas e balsâmicas
o estorno de um eu 
aprazado para memória futura. 
Concebo as alvíssaras diuturnas
no mais puro anoitecer mudo. 
E jogo-me 
às excêntricas avenidas que desafiam o mar,
inteiro,
peão que seja,
de atalaia aos julgadores sem remorsos.

#1412

Contra as interjeições
a favor da extinção do gongórico,
um manifesto pela fala apurada. 

1.3.20

#1411

Dia raro, o de ontem.
Uma parcela
em mil quatrocentos e sessenta avos.

Tear

O basalto não tingia as mãos.
A heresia da vergonha,
essa sim, conseguia-o,
uma emboscada sem número atribuído.
Na varanda da tarde
uma madeixa de vento arrefecia o rosto.
O avesso tornou-se um vulto habitável
e por outras linhas se lia a pauta,
reescrita no paradeiro atempado.
Já não dizia
“só tenho as mãos”.
Agora
as mãos são à prova de balas
e nem o basalto deixa marcas.

#1410

Sou
do que sei
sem saber
do que sou.

29.2.20

#1409

[Dead Combo, em despedida]

As guitarras desenham palavras.
E transfiguram as palavras
no sortilégio de um poema.

28.2.20

#1408

Vago o lugar.
Vago, o lugar.
O lugar vago.

Portas giratórias

Armadilho a escotilha
o refinado senso das imagens pressentidas
e combino com a fartura
uma conferência de estados
para neles as almas se tornarem paradeiros. 

Podem não acordar sobre as vidraças
onde repousam, 
em escrita cuidava,
os pontos cardeais do negociado;
podem desencontrar-se 
em apeadeiros divergentes;
seguir-se-á a porta giratória
o falível inventário da vontade
possivelmente
um arcano lugar sem mapa. 

Os penhores afidalgam-se
pressurosos
no balcão de onde anteveem o deleite. 
Estiolam as rugas 
e em seu favor
concorrem às incinerações que desafogaram
as chuvas gastas de antanho. 

As portas giratórias
escondem uma constelação de espelhos
um harmónio que se desdobra sobre si mesmo
a metáfora dos disfarces que desfilam
no dorso de uma culpa mal fingida. 
É essa a serventia
das portas giratórias.

#1407

O modo de ser
o medo da serventia
mudo de silêncios. 

27.2.20

O palco onde as nuvens são chão

As nuvens
esconderijos vagos
uma vaga nave para fingidores
contrariados pela condição terrena
que os importuna.

Nas nuvens
anestesiam as consumições
e aproveitam para da paisagem se fazerem
cartógrafos
na hipótese de estarem credenciados
e se não houver oposição das autoridades.

Às nuvens
vão os sonhadores
os arquitetos da palavra
os conhecedores do nada
os madrigais que se entretêm 
a dedilhar paisagens
os tímidos iconoclastas que sabem ser um logro.

Das nuvens
os timoratos bolçam as comendas
distribuindo recomendações por deus e imediações
antes que sejam presas 
das redes emalhadas por pescadores impérvios
mas sempre depois do pequeno-almoço continental.

Por volta das nuvens
quando for hora
dirão os aposentados da paciência
que dela se revigoram no veludo das nuvens
desarmadilhando
as complexas questões existenciais
destituindo
a verossímil verdade sem ancoradouro.

Até às nuvens
a chuva em ato devolutivo
evaporação às arrecuas
sem decair na fantasia do tempo refeito
numa herança alardeada
os corpos têm-se em revoadas
incansáveis
antes que sejam açambarcados 
pela temível, irreparável divindade
saída na tômbola.

#1406

O rarefeito verbo
em vez da disputa
terçando o poema altivo.

26.2.20

Plano invertido

Reservei
em talha dourada, 
sumptuosa,
as memórias do futuro. 
Alguém sussurrou
o logro que tirei do alçapão
em vitrais exuberantes
por onde era coada a imensa luz da tarde
talvez
o incandescente pesar que adornou o logro. 
Não sabia
que não me eram devidos créditos
sobre o tempo ainda ausente
e reforcei a linhagem 
do tempo herdado por mãos próprias
pois a lucidez adverte
que penhores não devemos ser 
de estamentos ausentes
se não queremos perder as rédeas
do tempo de outro modo prematuro. 
Insisti:
emoldurei as memórias do futuro
no avesso da memória
e sem saber da sua cor
soube
ao menos
que não estava amordaçado pelo instante. 

#1405

A lente sem rosto.
O perímetro descarnado.
O truísmo rival.

25.2.20

Reparação

Colo ao peito este magma.
Em terra sem vulcões
sou eu que amanheço vulcão
e do corpo tumultuoso
sei da lava que não espera
a crisálida que espreita sem cessar
no apronto do dia sem fronteira.
Oxalá fossem assim as palavras:
uma radiosa constelação embebida
na aventura do dia
o desembaraço das ideias 
que sulcam o pensamento.
E dos braços enfeitados de ternura
um beijo se abeirasse
em forma de dádiva sem mesura.

#1404

Desta latitude, a concessão
que dou de concessão ao futuro.
E esta é a minha conceção.