27.4.20

#1527

[Crónicas do vírus, XCIII]

Só sabemos que o mar 
é um mapa do seu tamanho 
e o penhor sublime 
do desconhecido.

#1526

[Crónicas do vírus, XCII]

Agora
que dizer "não sei"
é a melhor sabedoria
tantos ostentam certezas
ou talvez 
o estertor da sobranceria.

26.4.20

Salitre

Não é mito
saber a alma enrugada
o fio leve do entardecer
sobreposto ao rosto enevoado
e da sílaba arrancada ao dente de leão
fundir as quimeras
em palavras juradas.

#1525

[Crónicas do vírus, XCI]

A desconstituição
alistou-se
pela porta do cavalo.

#1524

[Crónicas do vírus, XC]

A metamorfose
já não pertence
apenas
ao dicionário.

25.4.20

Dilúvio

As bandeiras sem chão
chegam ao sabre dos estetas:
não se diga adeus
que em seu dia
não cabe uma véspera. 

As páginas elogiadas
bruxuleiam na temperada manhã:
não se jure o ontem
que em sua heráldica
não respiram palavras façanhas. 

As árvores primaveris
traduzem sílabas sem freios:
não se levantem os versos altivos
que em sua métrica
não combinam as estrelares origens.

#1523

[Crónicas do vírus, LXXXIX]

Ainda foram a tempo
de impedir
o desaniversário.

24.4.20

#1522

[Crónicas do vírus, LXXXVIII]

O calor humano,
em liquidação.

O perpétuo ciciar

Eram olhares estranhos 
as avenidas vazias 
à espera de dia 
tornando-se as suas próprias esperas
entre a paragem do tempo
e a mordaça dos mastins.
Juntei as pedras avulsas 
mas não esperei
que as pedras falassem:
as paredes estavam vazias 
sem quadros 
mudas 
e a pele guardava o silêncio.
O vento irrompeu do nada 
pôs a vegetação a falar
a única fala  
que roubou o silêncio.
Era um tímido esgar 
o furtivo espelho esquecido,
uma banalidade.

Dizias:
não há problema 
a maldição distraíra-se 
e por fim
os ingénuos comeram à mesa.

Dizias:
bem me parecia 
que os males perpétuos
eram uma entorse ladina
uma conspiração contra si mesma.

Ao vagar das horas 
impérios com armaduras 
desfaziam-se em puídas estrofes
que nem de si diziam
loas que se vissem. 

#1521

[Crónicas do vírus, LXXXVII]

Ao menos,
em casa
ninguém se perde.

#1520

[Crónicas do vírus, LXXXVI]

Não é o fim do mundo;
é um ponto e vírgula.

23.4.20

Telúrico

O fumo parece ter boca
e por ela 
esvaziam-se os mudos pesares.

Não sabia
da feérica noite sem paradeiro
dos humanos pudores à porta
das páginas armadilhadas.

O dia já não tem crina.

Sobre os contrafortes da luz
projeto uma vírgula sopesada:
sobro eu
na vigília das palavras mortas
cadafalso de mim mesmo
sem tempo para o ocaso.

O fumo parece ter boca
e pela boca
angariam-se os tresloucados poetas
os árbitros sem toga
sílabas altivas no penhor das calendas
até que o mosto seja o magma hesterno
até que
as estátuas não sejam insolventes
na poeira ampla
que o cometa deixa em cauda.

Afinal 
não era o fumo hediondo
a macerar sem tradução;
era a poeira
de um cometa devolvido à maresia
donzela fleumática no cerzir do idioma
enquanto pelo sono
os demais colhiam os frutos maduros.

#1519

[Crónicas do vírus, LXXXV]

Democracia a fingir
na capitulação da política.

#1518

[Crónicas do vírus, LXXXIV]

Demolição
com efeitos
duradouros.

22.4.20

Os agiotas do saber

Do coldre
tiram a fita métrica
para as medidas do conhecimento,
os agiotas do saber.
Esbofeteiam tanta erudição
nos rostos dos humildes
no tirocínio da sobranceria 
sobre os mais fracos.
Entre pares
concursam na métrica da sapiência
biltres que pavoneiam a vaidade de casta.
Sonham com o olimpo da cátedra
ou com a confraria que cimenta uma elite
ou com o domínio da derradeira palavra
na passerelle onde, 
infames, 
desfilam os grotescos esboços 
de superior instrução.
Deixem-nos convencidos
que dormem sobre os louros
e uma unânime encomiástica:
já reza 
a lei geral da descompensação
sobre a relação inversa
entre a ostensiva sabedoria a rodos
e a avareza da alma.

#1517

[Crónicas do vírus, LXXXIII]

Mudam-se os tempos:
ninguém entra num banco
sem máscara.

#1516

[Crónicas do vírus, LXXXII]

Quando voltar a boémia
o jugo das pessoas-objeto
se as máscaras impedem de ver 
o fundo da alma.

#1515

[Crónicas do vírus, LXXXI]

Conciso.
Com siso.
(Em défice,
por estes dias plúmbeos.)

21.4.20

O vade-mécum

O grande sonho
era dar à estampa

(por assim dizer,
que ninguém dá 
graciosamente
o corpo ao manifesto)

um vade-mécum.

Só a conceber a empreitada
passou as sopas de tempo.
Já no dealbar da travessia
quando pressentia
os vapores da decadência
à estampa deu

(por assim dizer
e etecetera e tal)

o vade-mécum.

Não cabia em si de júbilo

(e não era 
por extravasar das medidas
que os prazeres da mesa
com a sedentária forma de vida
ditaram a obesa estatueta 
em que se tornara)

com o vade-mécum calhamaço
em harmonia
com a dimensão corpórea que lhe cabia.

Nunca chegou a saber
que não houve vivalma
das muitas
que despenderam renda na obra
a ler o vade-mécum 
de uma ponta à outra.

Não se importaria
se fosse dado a saber
desde o túmulo que o recolhia
que por vade-mécum
usava uma paronímia,
uma inconfessável paronímia, 
para aos outros encomendar 
um sibilino 
“ide à medra”,
destinatário impessoal
na pessoa da humanidade.

#1514

[Crónicas do vírus, LXXX]

Quando resistir
passou a ter a casa
como trincheira.

20.4.20

#1513

[Crónicas do vírus, LXXIX]

nonsense
disfarçado
de teoria credível.

Asas a meio

Nas horas em que oras
peroras no pudor em que te penhoras
na colisão dos coldres coligidos.

Não oras nas horas
nem nos dias diuturnos
pária partido em partes parcas
exílio do exequente emir
em férteis fazendas fartas
régulo das régias remissões.

Nas falas formidáveis
arrancas ruelas sem arremedos
benze-as com o batom benquisto
em páginas puídas por pilatos
que sabem do sabre que salivam.

Nas desoras não oras
com a tinta tingida por timbre toado
e nas vascas vestes o vesúvio
desamarrando os deslimites que te devolvem
e desovas as sovas que destronaste.

#1512

[Crónicas do vírus, LXXVIII]

Teoria da conspiração (epílogo):
a doença distribui alucinação
em doses equitativas.

19.4.20

#1511

[Crónicas do vírus, LXXVII]

Teoria da conspiração (2):
a doença é de esquerda
e proibiu a páscoa.

#1510

[Crónicas do vírus, LXXVI]

Teoria da conspiração (1):
a doença é de direita
e quis sequestrar abril.

Estilhaços de um paraíso fantasiado

Por ajuste direto
nos contratos arquivados
sem diligente ato notarial
os regentes combinam 
as mercês.
Não se diga de terra assim
que se confina ao mofo da corruptela
por viés de consideração
ou manifesto cânone de má-fé:
os regentes fazem-se pagar
pelos prestimosos serviços à turba
e da turba se há de esperar
reconhecimento e genuflexão 
– ou silêncio, na pior das hipóteses – 
sob pena de perjúrio ser perpetrado.
Até porque
se pudesse
a turba amesendaria no lauto manjar
onde se combinam as prebendas
onde as esconsas combinações têm palco
com subterrâneas criaturas por testemunhas.
Por ajuste direto
as baias da corruptela
a que por decência
ou provável delito coletivo
(por participação em proveito próprio
ou cumplicidade por inação
ou inveja por não serem coatores)
todos são compadres.

#1509

[Crónicas do vírus, LXXV]

A distância
até ao tempo certo
é a paciência.

#1508

[Crónicas do vírus, LXXIV]

A nomenclatura da normalidade
espevita o povaréu.
(A destempo?)

18.4.20

#1507

[Crónicas do vírus, LXXIII]

Nem todos os terramotos
aparecem no sismógrafo.

O invasor sem rosto

O sangue
cortado ao meio.
Uma linha indivisa.
O radar à procura de sombras,
a maior das estultícias.
“Não te esqueças de viver”
a capa do livro
em forma de mnemónica
como se aos lúcidos
houvesse na camada do tempo
um esquecimento sobre o viver.
Os lustres desfilam 
num pano hasteado
contra o plano inclinado
e o esquecimento geral de tudo,
ou como se tudo se consome
no instante de um fósforo
sem paradeiro.
O caudal espera.
Espera pelo sangue
devolvido ao seu uníssono.