[Crónicas do vírus, CCLXI]
Continua
a aprendizagem
do desmedo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Não peçam à lua
para ser o covil da noite
a constelação perdida
onde se aformoseia
o olhar dos decessos.
Não peçam aos tumulares príncipes
para abdicarem de seu reino
não peçam
que a diáspora dos vivos
é má recomendação
tortura soez
a quem da vida já teve seu quinhão.
Não peçam aos ardinas
e aos sinaleiros
e ao homem que reparava guarda-chuvas
e aos mineiros
para saírem do atoleiro dos idos tempos
não peçam
que o tirocínio dos hodiernos tempos
seria sacrificial
um punhal deixado a sangrar,
e sem limite de tempo,
na sua memória sem tempo.
Não peçam aos eruditos
citações em latim
evocações dos gregos filósofos
não peçam
para glosarem as costuras
de um mundo a desmodo
antes que apanhados sejam
a delinquir numa revista mundana
ou nos carnais meandros do hedonismo.
Não peçam aos estroinas
pacientes leituras em letra miudinha
retiro ao invés de boémia
palavras com o aval de poemas
o medo da morte
a devolução da História
para fora das páginas dos calhamaços
um boicote à frivolidade perene\
não peçam
o oblíquo pesar
que os extrai ao mundano adejar.
Não peçam
se não o que pedido puder ser
ou acabamos todos,
em contramão
e à espera do frontal choque,
até sermos despedaçados
pela boca iracunda
de uma tempestade castrada.
[Crónicas do vírus, CCXXXIX]
É de fiar
no fiado na posteridade
– eis a encíclica dos mandantes.
O copo meio cheio
antecipa
o meio vazio por desenhar.
Não se diga
do feito por fazer
que feito está
que os mandatários incisivos
cuidam de o destratar.
Se a fuligem não fosse um restolho
ou à varanda do entardecer
não se estreitasse o ocaso
dir-se-ia que o projeto se afidalga
na desistência do fulgor.
Dir-se-ia
no veludo da fala com esmero
que não foi por mal,
nunca foi por mal:
à última hora
a evocação da força maior
o distrate de toda a responsabilidade
o eco perdido na garganta granítica
onde
a esforço
se torna caudal
o rio ainda pueril.
Qual é o diâmetro
da nossa fragilidade?
É o medo
que embalsamamos
no mecenato da loucura.
Qual é o cianeto
do nosso abismo?
É o telúrico ritual
que bebe nos costumes
em incontroversos verbos.
Qual é o bónus
da nossa grandeza?
É o testemunho desembaciado
as sílabas terçadas em murmúrio
o colossal empenho em dias soturnos
o marasmo que derrotamos
em vigílias que não disfarçamos
antes que
a fragilidade
o medo
a loucura
o abismo
e a moral
sejam nosso ergástulo.
O busílis da questão
não se confunde
com fusilis
nem com fuzis
e muito menos
com fusíveis.
São os fungíveis,
aparentados,
os logros de cepa torta.
Fugidios,
os sentidos adulteram-se
numa lava que parece igual
e o não é:
o basalto em que devêm
cuida de exibir as diferenças.
E esse
é o busílis
de todas as questões.
À venda
a venda que sentencia as trevas.
A venda
assim orquestrada
venda-se
pela menor das licitações.
À venda que veda
o maior dos perjúrios
o bem oximoro
mercancia sem bolsa de transações.
À venda
que à venda está
que traga pecúlio zero.
E ao menos
depois da venda
a venda desembaraçada
e o ubere pronto para o manancial.
[Crónicas do vírus, CCXXXV]
O teatro
do excesso de confiança:
brincar com o fogo
sem ser época de incêndios.
Disto
um piano
e as botas armadas
antes
que os fusíveis
se encomendem às trevas
e rasteiro
seja o adeus
em convocatória senil
e em rocha
se endureçam as lágrimas
que furtivas seriam
se estivesse de chuva.
Daquilo
ou as peças de xadrez
todas entontecidas pelo viés
no amanhã
que se fragiliza no compasso
rastreado
no denodo das seitas
ergástulos
que dizem etecetera
depois das modas jogadas
em simétricas páginas sem linho.
Dito isto
afoguem-se as palavras excessivas
em malvasias fora de prazo
escanhoe-se a militância
a favor do tempero
misturem-se os opostos
a coreografia dos diferentes
armadura
contra a tribal pertença
em baias estreitas de impura rejeição
antes
que o centeio podre seja mantimento
e do restolho
rastejem os párias sem absoluta causa
os nefandos, imberbes
(mesmo que senis)
mastins da pose castrense
antes
que lhes caiam os dentes
e se afoguem no tanto salivar
em que se destilam
tão ufanos
tão insanos.
Entranha-se
este visco pútrido,
a banha sem cobra,
que desfila na fala dos insignes
como se deles fossemos devedores
e seu sangue fosse de ouro
e as nossas veias
esgoto de seus dejetos.
A lapela não enjeitada
fornece vistoso miradouro às comendas
que os galões ou são ostentados
ou sobram para o residual conhecimento
e estes estéreis pais de todos nós
definham se lhes for omisso
o reconhecimento.
É como se vivessem para fora de si
(e fora de suas comarcas)
e eles a varanda
a que os demais devem repetidas genuflexões
pois na sua carência ficaríamos devedores
de um atraso de civilização.
Ufanos e jactantes
ensaboam-se em prosápia colossal
que de sumo verte um nada,
sentados na volumosa pedra estatutária
de onde dizem dimanar seu escol.
Os tolos restantes,
cerces de pontos cardeais,
ou apenas vulgarmente distraídos,
idolatram as relíquias
e contribuem
(sem saber, talvez)
para o legítimo retrocesso.
[Crónicas do vírus, CCXXXII]
Ó povo paradoxal,
ontem heróis banhados em milagres
amanhã peticionando contra a sem-razão.
[Crónicas do vírus, CCXXXI]
Como pode lugar tão ínclito
ter como missão
a autocomiseração pela trela?
Qual é o feminino de mulherengo?
(Não conta como hipótese
mulherenga
sem desajuizar que também as há.)
Acordei com esta dúvida existencial.
(Também não entram no rol
desqualificativos
que rasuram a honra
de uma amazona carnal.)
Dei comigo
preso à obstipação vocabular.
(A menos que seja minha incúria
e o idioma conheça daquela
palavra passaporte no feminino.)
Arrisquei uma ideia:
homenrenga.
(Pois são tangentes os direitos
e ninguém acuse de libertinagem
as homenrengas da praça
se é de aplauso a convivência
com os mulherengos com linhagem
sem nunca serem enredados
no labéu da promiscuidade.)
Vem aí o futuro
e tu estás à espera
que se faça pretérito?
Desarrumas os vitrais
onde se emolduram
as léguas do tempo
no inviável sarcasmo do teu oposto
a que deitas mão
quando mais o denegas.
Não sabes
da bitola em que se liquida
o corpo presente
o indomável motejo que diriges ao arcaico.
E repetes:
vem aí o futuro
e tu sabes
que é já no ontem parafraseado.
Pois o futuro
quando o agarras
enquistou-se no passado.
Amolecem os mercadores
antes que sobejem as invetivas
ou o marasmo sem chave de segurança.
Os nós atam-se na fortaleza
e somos nós que os desembaciamos
com a ajuda de uma matinal neblina,
o sucedâneo da massa consistente,
que tem mais poderes do que uma batina.
Não é lavra ser engenheiro
nem os planos exigem matemática forense:
projeta-se o entardecer
no relvado de que é sobranceira a varanda
e a pauta fornece a música
sem critério.
Oxalá não seja tarde
e que as engrenagens
não sucumbam à ferrugem
para ser marinheiro em praça forte
e do livro empunhado
legar
em voz exata
um poema nada homérico.
[Crónicas do vírus, CCXXV]
O termostato da esquizofrenia
nunca esteve tão fervente:
nada está bem
mas tudo parece que sim.
O manifesto em marcha-atrás
a alcachofra acabada de gratinar
(depois de recusado o acesso
ao armazém dos escuteiros)
batinas exigindo beija-mão
em locupletadas avenidas
onde se reverberam
os anões disfarçados de pimpões
e os curas que abençoam
ábacos de bom comportamento.
Recria-se um adeus:
diligentes,
os atores ensaiam lágrimas
e amplificam as estrofes
de-vi-da-men-te si-la-ba-das.
Ah,
se na toca dos meãos
houvesse fermento de padeiro
e à massa crítica fosse vertido
deste lugar dir-se-ia
um esplendor de eruditos
um arrojo de tecnologia avançada.
Mas a marcha-atrás
depois de engrenada
é difícil de derrotar.
[Crónicas do vírus, CCXXIV]
Quem disse
que a normalidade era miragem
se voltámos a ser
os patinhos feios da Europa?
[Crónicas do vírus, CCXXIII]
É como nas corridas de bicicleta:
no início, o fôlego todo
e depois
ultrapassado por quase todos.