[Crónicas do vírus, CCLXVI]
Num biombo
como um blindado
contra os outros.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O calendário
resgata dos anais
o vigésimo nono ano
de licenciatura.
Não sei por que guardo
efemérides.
Dir-se-ia:
é o sublinhado de uma coincidência
selada com o sortilégio
do calendário.
(E quem pode fugir
do calendário?)
Ainda sou refém
da memória.
Devia ter aprendido
que a memória
é um tinteiro gasto
a vocação para o longe
nas imagens que se evaporam
na diálise das páginas arrancadas
ao calendário.
Vinte e nove anos
e de quê,
se cursei páginas soltas
e não medrou esteio
como cimento do tempo inteiro?
A memória
enquista-se no mosteiro
onde se arquivam os misteres
da improficuidade.
Um estéril inventário
esmaecido na caneta gasta
que em dedicatória árida
vai desmatando a decadência.
Cabiam
num biombo da memória
os nomes tatuados
a esquecimento.
Não os sabia fantasmas
e nem supunha dizer
exorcismo
na apanha fidedigna
da espuma à mercê dos dedos.
Pelo caminho
entreteci o tempo
com o avesso da singularidade
– mas não é assim
que todos somos,
vulgares,
na banal intumescência
do original?
Dos nomes
guardo as sílabas vagarosas
com que se dizem
a sua gramática repetível.
E pouco mais.
O reverso do biombo
é um deserto sem pontos cardeais.
Eu aposto
que nem o Norte
se tem por paradeiro.
Dizem-me
não é por mal,
que ao lençol da inocência
faltam as orelhas puxadas
e uma fina camada de poeira
se sobrepõe
ao olhar dos imprudentes
coalescendo no perdão.
Estou por saber
como tirar a prova dos nove
antes que venha
uma prova de vida
estragar a matemática delicodoce.
Estou para saber
como são adivinhadas
as petições de indulgência
como se enformam os compassivos
num véu de piedade
que se esportula
no púlpito da ingenuidade.
Às vezes
(são tantas, as vezes!)
só apetece dessaber
para do ultraje do conhecimento
não açambarcar
a boca amarga da angústia.
Outras vezes
quando
desaparafuso os ossos dos outros
e sou ilha por dentro de um ilhéu
prossigo indiferente
imune ao raer dos fornos crematórios
onde frui
o despautério
disfarçado de asas de anjo.
Escondido na desculpa
com o alto patrocínio dos arqueáveis
espalha prebendas à mitomania.
Não eram impressionáveis,
os inverosímeis da casta da elasticidade
no adorável desporto cívico
do paninho quente.
Escondido na desculpa,
brasonada como vão palavra,
resumia o estado geral do lugar
empenhado na monótona sanguessuga
que emudece a espátula de rigor.
Houvesse quem lhe dissera
que um pedido de desculpa
não é como apanhar o vento;
é roteiro para o arrependimento
moratória da iteração do mal feito
em sentinela para a lição tomada
cancioneiro da não repetição.
Não peçam à lua
para ser o covil da noite
a constelação perdida
onde se aformoseia
o olhar dos decessos.
Não peçam aos tumulares príncipes
para abdicarem de seu reino
não peçam
que a diáspora dos vivos
é má recomendação
tortura soez
a quem da vida já teve seu quinhão.
Não peçam aos ardinas
e aos sinaleiros
e ao homem que reparava guarda-chuvas
e aos mineiros
para saírem do atoleiro dos idos tempos
não peçam
que o tirocínio dos hodiernos tempos
seria sacrificial
um punhal deixado a sangrar,
e sem limite de tempo,
na sua memória sem tempo.
Não peçam aos eruditos
citações em latim
evocações dos gregos filósofos
não peçam
para glosarem as costuras
de um mundo a desmodo
antes que apanhados sejam
a delinquir numa revista mundana
ou nos carnais meandros do hedonismo.
Não peçam aos estroinas
pacientes leituras em letra miudinha
retiro ao invés de boémia
palavras com o aval de poemas
o medo da morte
a devolução da História
para fora das páginas dos calhamaços
um boicote à frivolidade perene\
não peçam
o oblíquo pesar
que os extrai ao mundano adejar.
Não peçam
se não o que pedido puder ser
ou acabamos todos,
em contramão
e à espera do frontal choque,
até sermos despedaçados
pela boca iracunda
de uma tempestade castrada.
[Crónicas do vírus, CCXXXIX]
É de fiar
no fiado na posteridade
– eis a encíclica dos mandantes.
O copo meio cheio
antecipa
o meio vazio por desenhar.
Não se diga
do feito por fazer
que feito está
que os mandatários incisivos
cuidam de o destratar.
Se a fuligem não fosse um restolho
ou à varanda do entardecer
não se estreitasse o ocaso
dir-se-ia que o projeto se afidalga
na desistência do fulgor.
Dir-se-ia
no veludo da fala com esmero
que não foi por mal,
nunca foi por mal:
à última hora
a evocação da força maior
o distrate de toda a responsabilidade
o eco perdido na garganta granítica
onde
a esforço
se torna caudal
o rio ainda pueril.
Qual é o diâmetro
da nossa fragilidade?
É o medo
que embalsamamos
no mecenato da loucura.
Qual é o cianeto
do nosso abismo?
É o telúrico ritual
que bebe nos costumes
em incontroversos verbos.
Qual é o bónus
da nossa grandeza?
É o testemunho desembaciado
as sílabas terçadas em murmúrio
o colossal empenho em dias soturnos
o marasmo que derrotamos
em vigílias que não disfarçamos
antes que
a fragilidade
o medo
a loucura
o abismo
e a moral
sejam nosso ergástulo.
O busílis da questão
não se confunde
com fusilis
nem com fuzis
e muito menos
com fusíveis.
São os fungíveis,
aparentados,
os logros de cepa torta.
Fugidios,
os sentidos adulteram-se
numa lava que parece igual
e o não é:
o basalto em que devêm
cuida de exibir as diferenças.
E esse
é o busílis
de todas as questões.
À venda
a venda que sentencia as trevas.
A venda
assim orquestrada
venda-se
pela menor das licitações.
À venda que veda
o maior dos perjúrios
o bem oximoro
mercancia sem bolsa de transações.
À venda
que à venda está
que traga pecúlio zero.
E ao menos
depois da venda
a venda desembaraçada
e o ubere pronto para o manancial.
[Crónicas do vírus, CCXXXV]
O teatro
do excesso de confiança:
brincar com o fogo
sem ser época de incêndios.
Disto
um piano
e as botas armadas
antes
que os fusíveis
se encomendem às trevas
e rasteiro
seja o adeus
em convocatória senil
e em rocha
se endureçam as lágrimas
que furtivas seriam
se estivesse de chuva.
Daquilo
ou as peças de xadrez
todas entontecidas pelo viés
no amanhã
que se fragiliza no compasso
rastreado
no denodo das seitas
ergástulos
que dizem etecetera
depois das modas jogadas
em simétricas páginas sem linho.
Dito isto
afoguem-se as palavras excessivas
em malvasias fora de prazo
escanhoe-se a militância
a favor do tempero
misturem-se os opostos
a coreografia dos diferentes
armadura
contra a tribal pertença
em baias estreitas de impura rejeição
antes
que o centeio podre seja mantimento
e do restolho
rastejem os párias sem absoluta causa
os nefandos, imberbes
(mesmo que senis)
mastins da pose castrense
antes
que lhes caiam os dentes
e se afoguem no tanto salivar
em que se destilam
tão ufanos
tão insanos.
Entranha-se
este visco pútrido,
a banha sem cobra,
que desfila na fala dos insignes
como se deles fossemos devedores
e seu sangue fosse de ouro
e as nossas veias
esgoto de seus dejetos.
A lapela não enjeitada
fornece vistoso miradouro às comendas
que os galões ou são ostentados
ou sobram para o residual conhecimento
e estes estéreis pais de todos nós
definham se lhes for omisso
o reconhecimento.
É como se vivessem para fora de si
(e fora de suas comarcas)
e eles a varanda
a que os demais devem repetidas genuflexões
pois na sua carência ficaríamos devedores
de um atraso de civilização.
Ufanos e jactantes
ensaboam-se em prosápia colossal
que de sumo verte um nada,
sentados na volumosa pedra estatutária
de onde dizem dimanar seu escol.
Os tolos restantes,
cerces de pontos cardeais,
ou apenas vulgarmente distraídos,
idolatram as relíquias
e contribuem
(sem saber, talvez)
para o legítimo retrocesso.
[Crónicas do vírus, CCXXXII]
Ó povo paradoxal,
ontem heróis banhados em milagres
amanhã peticionando contra a sem-razão.
[Crónicas do vírus, CCXXXI]
Como pode lugar tão ínclito
ter como missão
a autocomiseração pela trela?
Qual é o feminino de mulherengo?
(Não conta como hipótese
mulherenga
sem desajuizar que também as há.)
Acordei com esta dúvida existencial.
(Também não entram no rol
desqualificativos
que rasuram a honra
de uma amazona carnal.)
Dei comigo
preso à obstipação vocabular.
(A menos que seja minha incúria
e o idioma conheça daquela
palavra passaporte no feminino.)
Arrisquei uma ideia:
homenrenga.
(Pois são tangentes os direitos
e ninguém acuse de libertinagem
as homenrengas da praça
se é de aplauso a convivência
com os mulherengos com linhagem
sem nunca serem enredados
no labéu da promiscuidade.)