[Crónicas do vírus, CCXCVII]
O sonho
outra vez,
ou o sonho embaciado
pelo remoçar dos fantasmas.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Sentia o restolhar do granito
as botas
impiedosas
esmigalhavam o granito
à mercê de forasteiros.
A aspereza da paisagem
cortava a garganta,
ou seria da canícula
o sol extático a pino
vertendo a sua tórrida irradiação
sobre o corpo exsudado,
açoitado pelo sol.
As montanhas retalhavam a paisagem:
estava à mercê dos humores das montanhas
que a desenhavam
sem régua nem esquadro
apenas com a virtude do acaso.
Procurei as cumeadas:
queria apreciar os montes e vales
em sua sucessão interminável,
como se o infinito tivesse ali moradia,
os rios quase escondidos, em segredo
a voragem dos desfiladeiros
que, aqui e ali,
escarpavam a paisagem
como feitoria de um abismo.
Rareava,
a vegetação:
uns cardos de vez em quando
o tojo que só aparece nos altos territórios
a urze que definhava,
fora da estação
– a tertúlia para os prazeres
e o indeferimento da anamnese.
A cada miradouro
o corpo transbordava;
o ar com densidade
tornava a respiração um ónus
todavia aliviado pela tela
que compunha do olhar.
Às vezes,
uma ermida,
um cruzamento que desviaria das cumeadas
uma árvore tresmalhada
vestígios da fauna em sua escatológica prova
uma tímida nuvem arranhando o céu,
insuficiente para domar o sol irradiante.
Aproveitei para combinar juras
decerto desapalavradas à primeira oportunidade;
a fragilidade é um atributo
e as juras deviam ter recusa metódica
em vez de serem barco alistado.
Das cumeadas trouxe um dia ganho:
da osmose com a crueza dos elementos
fermentava a redescoberta.
Mergulha-se
na fragosidade dos elementos
no seu indomável perímetro
e é como se o corpo se banhasse neles
límpido e achado e desembaraçado
à espera das demandas em espera.
[Crónicas do vírus, CCXCVI]
Uma mordaça perene:
a devolução
a uma liberdade amputada.
(Ou: o sonho húmido
de muitos mandantes
e não apenas.)
Esse dinheiro daninho
tatuado no exílio
da minha pele
mantimento acima do sol
ou a veia refluída na toga
enquanto espero
– e na espera
espero que não seja
prelúdio
o desejo da manhã.
A laceração
marcada
a cal viva
emerge da cicatriz.
Há nódoas
que se demoram
nos vincos
da memória.
Hoje
sei dos avisos
até dos que são
a destempo.
O tirocínio
é contínuo
e deixa
em seu rasto
a impávida
instrução.
Não há cicatrizes
imunes
à fotografia do acaso.
Para isso
tem serventia
o mecenato
em colheita diligente.
Da laceração
não sobram
provas.
[Crónicas do vírus, CCXCIV]
A metáfora fidedigna:
como uma tartaruga
de pernas para o ar,
esperneando.
O pé-de-meia
devia ser proibido;
digo:
a expressão idiomática,
lavrada
sabe-se lá
se pelo povo
ou por eruditos cobertos de sapiência,
devia ser exilada,
para os mais novos
(e os mais velhos,
mas apenas os contumazes)
não caírem num logro semântico:
como pode
o significado de pé-de-meia
conter a ideia de entesouramento
se pouco é o pecúlio que cabe
num excerto tão abreviado
de um par de meias
(é só metade do par,
e nem na sua exata fração,
que apenas o pé da meia
serve para o aforro)?
(Termos em que
um perito de economia
diria
ufano de sua descoberta,
que a reduzida propensão para a poupança
– opróbrio desta nação –
tem fundas raízes
numa entorse da semântica.)
[Crónicas do vírus, CCXCIII]
Ofício pretensioso:
a arimética dos sonhos
– o lugar onde se guardam
as ilusões.
Os dentes do fogo
acarinham os nomes sem paradeiro.
O absoluto medo
não convence os astutos,
seus verbos
doces cantos do mar.
Se
em vez
de ar pesado
umas estrofes improváveis
gravitassem nos rodapés sem visibilidade
não se falaria de obituários
(esses gananciosos estipêndios
da hipocrisia).
Se
em vez
de morte
houvesse um luar por cada vida
e por cada dia dessa vida
os pesares
não seriam rima do ocaso.
Este
é o sol vadio
a sílaba insubmissa
o louco colo, partidário
a praia onde se jogam as marés
a voz que fala um nome
o lugar confiável
extraído ao bolor da indiferença.
Estas
são as mãos artesãs
que engenham o amor
o fusível sem entulho
espuma rasa no dorso dos dados
estrofe que desmente os vultos arqueados
quimera sem adjetivo
superação.
As mãos
que costuram
um lugar
a identidade
na fusão dos corpos.
Esta
a nossa
verdadeira nacionalidade
que dispensa passaporte
e não se aprisiona a um hino
o amor matricial
areópago
da nossa anarquia organizada
tutores do luar caiado
por nossas mãos se movendo o entardecer
até que ordenemos
a continuação das horas.
Persegui o divino
e ele de mim participou
às autoridades.
Alegou
não ter inventariado
sua presença
e que é de esperar
que o perseguido se sinta acossado
pelo perseguidor
e não o vice-versa.
Do paroxismo desta perseguição
vem à rede
uma intendência
(ou, melhor processando,
duas intendências):
numa perseguição
o predador
tem de ter os olhos na presa
e se ela não está à vista
não chega a ser
perseguição;
não é do foro da perseguição
se estiverem de avesso os papéis
e atrás do perseguidor
um fantasma brandir
o seu inexistir
como ameaça.
Servir para servir,
os desfardados
ausentes do sortilégio da casta
dos valentes usuários de fardas
e do arsenal a preceito.
Servir para servir:
e não é essa a missão,
a autêntica servidão
(ou ferrolho pueril),
destinada à casta descerebrada
dos que se desfardam de civilidade?
Desses,
os lugares-tenente da bravura arcaica
sanguinários
(em carne viva, ou em potência)
que ceifam vidas
em nome de pátrias,
déspotas em nome próprio,
mercenários
– mercenários que abjuram a dignidade,
prescrita palavra dos seus dicionários.
[Crónicas do vírus, CCXCI]
A contingência avivada
na ressignificação do idioma,
reavivando a semântica.
Uma geração de avanço
não é trato que se desatenda:
o verniz não derrui
e nas bancadas da medicina
há quem corrija a salinidade dos verbos
sentado na posição da torre
enquanto o tabuleiro é varrido
e a torre é a peça inamovível.
Mas é de uma geração de avanço
o diadema descoberto no índice onomástico
entre a poeira remoída
e as lombadas puídas pelo sol.
pacto de regime
na ausência de regime.
Do avanço da geração
contam-se as milhas
e o relógio ancestral porfia o sopeso
a matéria-prima dos venais exprobrados
a tinta negra extraída a um cefalópode
como ato censor em desprezo do vento fresco
que penteia a pele desembaraçada.
Gera-se um avanço
fora das armadilhas retidas nos escafandros
fora dos desábitos que se jogam
contra a viperina haste
dos que jogam no desdém
os possantes pensadores do vazio
em elegantes maresias soldadas no estirador
em vésperas prometidas à letargia.
Uma certidão habilitada
para a memória destinada ao futuro
os nomes em verso
da degeneração de avanço.
O ermo que se faz cedo
erário sem provisões
ou ergástulo puído,
um ermal sem posse.
Os documentados
alistam-se no medo
em furiosas sílabas hasteadas
no meio da noite,
a meio da noite trémula,
substituas da tempestade fracassada.
Lobrigam as espadas gangrenadas
a meio do tempo válido
entre o apeadeiro abandonado
e a estação litoral.
Abraçados
sentindo o frio suor do medo
urbanizam o pensamento:
é o único feixe averbado
e faz menção aos “cânones razoáveis”,
o que quer que isso seja;
não há outro esconjurar
a menos
que os medos se perenizem
e das abóbadas gastas,
entre a claridade vertida pelos vitrais,
sobeje o cais
onde arpoa um qualquer devir.
[Crónicas do vírus, CCLXXXVII]
Um estaleiro
virado do avesso,
ou o palco do fingimento
em proveito dos mandantes?
A espada não tem paradeiro,
embriagados os guerreiros candidatos.
É o que narra a maresia
desfazendo o entorpecimento tardio
no rescaldo da boémia ilegível.
As armas
fundeadas num cívico letargo
desembaraçam os sonhos
– os sonhos que asfixiam
o sono doloroso dos guerreiros.
Na varanda de uma pousada
(antes de açambarcada)
a penúria dos modestos estivera selada
num azulejo pendido sobre a janela.
Os guerreiros
perderam o paradeiro da sobriedade.
Só sabem contar a vilanagem
e à sua conta
industriam o desenho plúmbeo
que só conta com personagens vultos.
Ninguém sabe
que sangue vertem
nas veias da terra.
Só sabem
que infecta fica a terra
um sarcófago indigente
onde não coabita a indulgência.
[Crónicas do vírus, CCLXXXVI]
Um imenso estaleiro
de pernas para o ar
e as pessoas fingem que não.
Era do tempo
em que as palavras
se aninhavam em mel.
O rosto
subia pelos dedos
e as paredes
despiam-se de medo.
Talvez o entardecer
seja a rima por onde entra
o estuário.
A melodia,
trago-a na pele,
à espera.
Já não lambia
as feridas;
só as cicatrizes.
Jã não era ácido
o sabor
vindo à boca.
Sentia-se
como um urso
fora das montanhas
e do mel arredado
uma orfandade disfarçada.
Ao menos
não se considerava
amestrado.
Não era
como os distintos, exemplares
exemplares
puídos sem saberem
suas feridas baças
sob uma castração muda.
As cicatrizes
já
podiam ser olhadas
como tatuagens.
[Crónicas do vírus, CCLXXXIV]
As pessoas
não mudaram
só por os rostos
estarem embaciados.
(Hino panglossiano – bis repetita)
[Crónicas do vírus, CCLXXXIII]
Os rostos
não deixam de ser belos
só por estarem embaciados.
(Hino panglossiano)
[Crónicas do vírus, CCLXXXII]
Ó mercadores de patranhas:
depois da teoria do milagre
salgam-nos com a teoria
um passo atrás-dois à frente.
O templo do tempo:
imperadores bufos
dedicam-se à escatologia
e escrevem com a boca negra
o desmentido do sonho.
É o tempo que pede templo
para os apoderados sem remédio
verterem suas preces
(à falta dos reprimidos prantos)
e persistirem na sua oclusão,
recusando-se.
Ou:
o templo tem tempo
que o tempo não se esgota
na procrastinação dos mestres
nem obedece
ao fastio dos esquecidos:
melhor será
que se enxugue o suor do tempo
por dentro de sonhos gongóricos.
O melhor,
ainda,
é o tempo
não ter templo.
[Crónicas do vírus, CCLXXXI]
Estes morígeros profetas
que nos apascentam
na sela da nossa distração.