[Crónicas do vírus, CCCXXXIII]
Desta vez
é de vez
atores todos,
involuntários.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Sem a custódia dos ogres
que a mão sensível
não tem mesura.
O corrimão heráldico
tem o seu avesso:
finas
as filigranas
em corpos beócios.
Nunca houve juramento
dos jumentos encartados
que se disfarçaram
de pergaminhos distintos
– e não era carnaval.
[Crónicas do vírus, CCCXXXI]
Como numa estrada de montanha:
à descida até ao vale
segue-se tortuosa subida.
[Crónicas do vírus, CCCXXX]
Diz-se
que da transfiguração
somos devedores,
mas as vidas continuam
visíveis.
Estes são os emolumentos:
a fazenda sem remendos
um copo pronto
o beijo mareado a tempo
a glória do tempo por haver
a matéria-prima dos piratas sem pejo
a versátil varanda
de onde se agasalha o dia restante
o corpo hasteado.
Um bom negócio
por estes modestos
emolumentos.
[Crónicas do vírus, CCCXXIX]
Passamos
a falar
por onomatopeias.
(Devo terminar
com um ponto de interrogação?)
Minha faço a ilusão
do arrojo no gesto desalinhado
na improvável feição do dia órfão.
Que nenhum tributo seja devido
aos anciãos que chegam a destempo
aprisionados em suas gólgotas
apenas à espera do golpe final.
Ouso pronunciar
a ancianidade procrastinada
uma dádiva como espórtula
ao incalculável sopesar do viver.
Viver
em militante contrário de marés
tal como o polegar
sempre em contramão
da mão a que pertence.
Desfaço o corpo
em nuvens circenses
o tópico de uma coreografia
sem costuras
gutural
a umbria que se acotovela
na indiferença
à procura de equinócio
à procura
do santuário onde se sublimam
os prazeres.
Desfaço-me do corpo
e sinto ficar
apenas
com o despensamento.
[Crónicas do vírus, CCCXXVII]
Foi feitiço
de loucas Tágides
ou vingança
dos deuses enlouquecidos?
Uma bola atirada aos impropérios
(bola negra)
juízo sem juízo
ou
simples artefacto à procura de artesão
a meio da selva tonitruante
onde os relâmpagos se apagam
na boca cheia de fogo
dos déspotas.
Impurificam-se as avarezas
(bola negra)
e o cinzel adestra as formas
no torneado deslumbramento
que enxameia a matilha dos ufanos:
sem o ardil do espelho industriado
não são famosas
as formas manifestadas
(bola branca!).
O resto
Fica para a diáspora
E para os seus diletos fautores
(bola negra, bola negra!).
[Crónicas do vírus, CCCXXVI]
Ecos da desumanidade
agora que somos
e em incremento
bonecos de plasticina.
Não dou
de leasing
o corpo estuário.
Que não seja
franchising
por incúria da lascívia.
Não sou como outros
peritos
do marketing
de si mesmos
e no fundo
irrisória cópia
do que se ufanam ser.
Nem destoutros
que ensaiam
o outsourcing
em miragens que são a quimera
que os mantém desagarrados
na hibernação.
Anuncio sem modos
que dispenso
o benchmarking
por quadrar em meus limites
as capacidades
que sei minhas.
Não desenho outro
background
que não seja o do
meu lastro.
O pequeno barco
inunda o rio
na presença do entardecer.
À proa
o comandante apessoado
arruma o dia
no fusível dos arquivos.
Sabe lá
os nomes dos passageiros
enredado na urdidura da navegação
serpenteando entre boias
que mapeiam os rochedos
submersos como armadilhas.
Nem o manifesto lê,
o comandante;
não quer saber
dos nomes
a não ser
da parafernália
que habita a casa das máquinas
dos cardeais cartografados
e dos que se hasteiam
na sua privativa bandeira de consumições.
O que importa
é o lugar seguro no cais
à espera do navio
e a palavra de conforto da consorte
quando a noite se acende.
Seguro o passaporte
na véspera do dia surdo
e sou
eu mesmo
a bandeira que voluteia
num esgar do espaço.
Seguro,
que os sismos nascentes
sobressaltam as veias
e da miríade de paisagens
na retina aconchegam-se
as aleatórias.
Este é o fado da identidade
o grosseiro erro de estimativa
de que mestres de escola
e outros supinos educadores
fazem códigos de instrução.
Na mealha da minha boca
um decálogo imprudente
(dirás)
matéria involúvel ao tornado divisa
o enxerto sem vestígios dos sequazes.
Na minha boca
os verbos impróprios
a teia
(dirás)
quase gongórica
uma gramática sem paradeiro.
O pulso lento
desponta no sangue inteligível:
desconheço
de que matéria sou feito
a não ser
da modesta ambição
da invisibilidade.
O jogo sem calendário:
ausentes espíritos,
como que almas desmaterializadas,
os contendores rivalizam
no amparo da sorte,
desdizendo capacidades,
entregues ao ópio do acaso.
Escondem o jogo:
viabilizam ardis,
na soez ufania dos ardis,
contabilizam os ganhos
no avesso dos rivais
desejam-se iracundos azares:
outra vez
sofismando a confissão das incapacidades.
O jogo não tem regras:
fazem-se e desafazem-se
no reto direito dos poderosos
os que por entorse
a si chamam o império;
até que destronados sejam
por opoentes,
tão irrisoriamente fátuos quanto eles,
e tomem as rédeas das regras
só à espera que voltem a ser
morta letra.
O jogo inviável:
quem protestou a obrigatória demanda
a ferocidade dos passos artilhados
as armadilhas bajuladas
o imprestável sargaço deixado em restolho
a raça dos amestrados pela obnóxia descausa
impassíveis pela consumição do outro
por o outro
não saber da inversão de estatutos
no passaporte escancarado à inumana interação
desarticulando-se
no vómito que os incinera pelas entranhas?
Para jogos destes
antes
a apostasia do lúdico.
Dito pelo avesso da lua
às vezes
como se doze fossem os anos
e uma pueril cócega
enxertasse o presente com ilusões
no madraço contemplar da gramática.
Tido por estroina,
que os varões sintomáticos
desaprovam a utopia,
desabotoei o corrosivo uivar
e fui para a rua
só para apreciar o movimento,
prova de vida,
talvez,
uma simplicidade ímpar.
As mãos emaranhadas
tropeçavam
em seus dedos trémulos.
Desse lisérgico esquecimento
validava as virtudes sem elmo
os povoados falares contra a tirania
a excruciante medida escondida
nos rostos disfarçados de iconoclastas.
Amaciei as águas frias
e delas
devolvi ao regaço
a idade sem pesares limítrofes
a boca sem freio,
deleitosamente cais,
o não temível verbo contumaz
estruturalmente órfão.
E soube ser eu
tão diferente do diferente
estalão de coisa alguma
rosto destinado ao anónimo
profeta sem audiência
dizedor da palavra vaga
no socalco da meia tarde.