13.10.20

#1761

[Crónicas do vírus, CCCXXXIII]

 

Desta vez

é de vez

atores todos,

involuntários.

12.10.20

Pratas no prego (e demais decadência alinhavada)

Sem a custódia dos ogres

que a mão sensível

não tem mesura.

 

O corrimão heráldico

tem o seu avesso:

finas 

as filigranas

em corpos beócios. 

 

Nunca houve juramento

dos jumentos encartados

que se disfarçaram 

de pergaminhos distintos 

    – e não era carnaval. 

#1760

[Crónicas do vírus, CCCXXXII]

 

O gume

morde no pescoço,

asfixia o silêncio.

11.10.20

#1759

[Crónicas do vírus, CCCXXXI]

 

Como numa estrada de montanha:

à descida até ao vale

segue-se tortuosa subida.

10.10.20

#1758

[Crónicas do vírus, CCCXXX]

 

Diz-se

que da transfiguração

somos devedores,

mas as vidas continuam 

visíveis.

9.10.20

Atalaia

Estes são os emolumentos:

a fazenda sem remendos

um copo pronto

o beijo mareado a tempo

a glória do tempo por haver

a matéria-prima dos piratas sem pejo

a versátil varanda 

de onde se agasalha o dia restante

o corpo hasteado. 

Um bom negócio

por estes modestos 

emolumentos. 

#1757

[Crónicas do vírus, CCCXXIX]

 

Passamos

a falar

por onomatopeias.

 

(Devo terminar

com um ponto de interrogação?)

8.10.20

Sal e pimenta

Minha faço a ilusão

do arrojo no gesto desalinhado

na improvável feição do dia órfão.

 

Que nenhum tributo seja devido

aos anciãos que chegam a destempo

aprisionados em suas gólgotas 

apenas à espera do golpe final.

 

Ouso pronunciar

a ancianidade procrastinada

uma dádiva como espórtula

ao incalculável sopesar do viver.

 

Viver

em militante contrário de marés

tal como o polegar

sempre em contramão

da mão a que pertence.

#1756

[Crónicas do vírus, CCCXXVIII]

 

Aprendemos

uma nova gramática

como território a habitar.

7.10.20

O corpo e o despensamento

Desfaço o corpo

em nuvens circenses

o tópico de uma coreografia

sem costuras

gutural

a umbria que se acotovela

na indiferença

à procura de equinócio

à procura

do santuário onde se sublimam

os prazeres.

Desfaço-me do corpo

e sinto ficar 

apenas

com o despensamento.

#1755

[Crónicas do vírus, CCCXXVII]

 

Foi feitiço

de loucas Tágides

ou vingança

dos deuses enlouquecidos?

6.10.20

Bola negra

Uma bola atirada aos impropérios

 

(bola negra)

 

juízo sem juízo

ou 

simples artefacto à procura de artesão

a meio da selva tonitruante

onde os relâmpagos se apagam

na boca cheia de fogo

dos déspotas.

Impurificam-se as avarezas

 

(bola negra)

 

e o cinzel adestra as formas

no torneado deslumbramento

que enxameia a matilha dos ufanos:

sem o ardil do espelho industriado

não são famosas

as formas manifestadas

 

(bola branca!).

 

O resto

Fica para a diáspora

E para os seus diletos fautores

 

(bola negra, bola negra!).

#1754

[Crónicas do vírus, CCCXXVI]

 

Ecos da desumanidade

agora que somos

e em incremento

bonecos de plasticina.

5.10.20

#1753

[Crónicas do vírus, CCCXXV]

 

Ninguém ainda pode dizer

se a peste que grassa 

vai perder

a sua desgraça.

#1752

[Crónicas do vírus, CCCXXIV]

 

Um salto

no vazio

e sem arnês.

4.10.20

Self-made man

Não dou 

de leasing

o corpo estuário. 

Que não seja

franchising

por incúria da lascívia.

Não sou como outros

peritos 

do marketing

de si mesmos

e no fundo

irrisória cópia 

do que se ufanam ser. 

Nem destoutros

que ensaiam

outsourcing

em miragens que são a quimera

que os mantém desagarrados

na hibernação. 

Anuncio sem modos

que dispenso

benchmarking

por quadrar em meus limites

as capacidades 

que sei minhas. 

Não desenho outro

background

que não seja o do

meu lastro.

#1751

[Crónicas do vírus, CCCXXIII]

 

Levaram

o sal e a pimenta.

Sobrou

o soro, desnatado.

3.10.20

#1750

[Crónicas do vírus, CCCXXII]

 

O mosto lavrado no medo

enevoada tença

dos dias mudos. 

2.10.20

Cais

O pequeno barco

inunda o rio

na presença do entardecer. 

À proa

o comandante apessoado

arruma o dia 

no fusível dos arquivos. 

Sabe lá 

os nomes dos passageiros

enredado na urdidura da navegação

serpenteando entre boias

que mapeiam os rochedos

submersos como armadilhas. 

Nem o manifesto lê,

o comandante;

não quer saber 

dos nomes

a não ser 

da parafernália 

que habita a casa das máquinas

dos cardeais cartografados

e dos que se hasteiam

na sua privativa bandeira de consumições. 

O que importa

é o lugar seguro no cais

à espera do navio

e a palavra de conforto da consorte

quando a noite se acende.

#1749

[Crónicas do vírus, CCCXXI]

 

Os rostos

são agora trincheiras

um mistério

que antes não houvesse.

1.10.20

Desconceito

Seguro o passaporte
na véspera do dia surdo
e sou
eu mesmo
a bandeira que voluteia
num esgar do espaço. 
Seguro,
que os sismos nascentes
sobressaltam as veias
e da miríade de paisagens 

na retina aconchegam-se
as aleatórias. 
Este é o fado da identidade
o grosseiro erro de estimativa
de que mestres de escola
e outros supinos educadores

fazem códigos de instrução. 

#1748

[Crónicas do vírus, CCCXX]

 

Como se fosse

a noite

densa

e interminável.

30.9.20

O refrão da modéstia

Na mealha da minha boca

um decálogo imprudente

(dirás)

matéria involúvel ao tornado divisa

o enxerto sem vestígios dos sequazes.

Na minha boca

os verbos impróprios

a teia 

(dirás)

quase gongórica

uma gramática sem paradeiro.

O pulso lento 

desponta no sangue inteligível:

desconheço

de que matéria sou feito

a não ser

da modesta ambição 

da invisibilidade.

#1747

[Crónicas do vírus, CCCXIX]

 

Sobre o princípio geral

do retrocesso,

sobra 

o retrocesso.

#1746

[Crónicas do vírus, CCCXVIII]

 

Dos passos atrás

sem saber

quando retalhar o retrocesso.

29.9.20

Jogo lameiro

O jogo sem calendário:

ausentes espíritos, 

como que almas desmaterializadas,

os contendores rivalizam

no amparo da sorte,

desdizendo capacidades,

entregues ao ópio do acaso.

 

Escondem o jogo:

viabilizam ardis,

na soez ufania dos ardis,

contabilizam os ganhos

no avesso dos rivais

desejam-se iracundos azares:

outra vez

sofismando a confissão das incapacidades.

 

O jogo não tem regras:

fazem-se e desafazem-se

no reto direito dos poderosos

os que por entorse 

a si chamam o império;

até que destronados sejam

por opoentes,

tão irrisoriamente fátuos quanto eles,

e tomem as rédeas das regras

só à espera que voltem a ser

morta letra.

 

O jogo inviável:

quem protestou a obrigatória demanda

a ferocidade dos passos artilhados

as armadilhas bajuladas

o imprestável sargaço deixado em restolho

a raça dos amestrados pela obnóxia descausa

impassíveis pela consumição do outro

por o outro 

não saber da inversão de estatutos

no passaporte escancarado à inumana interação

desarticulando-se

no vómito que os incinera pelas entranhas?

 

Para jogos destes

antes 

a apostasia do lúdico.

#1745

[Crónicas do vírus, CCCXVII]

 

Nunca foi tanta

a urgência de interrogar:

o que sabemos nós?

#1744

[Crónicas do vírus, CCCXVI]

 

Atirados

para o próprio fojo

reféns de uma estirpe

astuciosa.

28.9.20

Bainha por desmedida

Dito pelo avesso da lua

às vezes 

como se doze fossem os anos

e uma pueril cócega

enxertasse o presente com ilusões

no madraço contemplar da gramática.

 

Tido por estroina,

que os varões sintomáticos

desaprovam a utopia,

desabotoei o corrosivo uivar

e fui para a rua

só para apreciar o movimento,

prova de vida,

talvez,

uma simplicidade ímpar.

 

As mãos emaranhadas 

tropeçavam

em seus dedos trémulos.

 

Desse lisérgico esquecimento

validava as virtudes sem elmo

os povoados falares contra a tirania

a excruciante medida escondida

nos rostos disfarçados de iconoclastas.

 

Amaciei as águas frias

e delas 

devolvi ao regaço

a idade sem pesares limítrofes

a boca sem freio,

deleitosamente cais,

o não temível verbo contumaz

estruturalmente órfão.

 

E soube ser eu

tão diferente do diferente

estalão de coisa alguma

rosto destinado ao anónimo

profeta sem audiência

dizedor da palavra vaga

no socalco da meia tarde. 

#1743

[Crónicas do vírus, CCCXV]

 

Erros de aprendizagem.

Ou 

a tenacidade

do agente invasor.