11.12.20

Pot-pourri

Da tangerina

perfumei as mãos

contra as tardes meãs.

#1829

[Crónicas do vírus, CDI]

 

Um projeto

de vulnerabilidade

– ainda há dúvidas

sobre o nosso devir?

10.12.20

Albergue

A instauração dos desmodos

não se afivela na transgressão

onde deixo de saber da mão certa

e, rebeldes, as palavras habitam

diferentes lugares.

 

Podia reinventar a pontuação

mas não é apetite que me dê;

deixo ao sufrágio sem nomes certos:

a vigilância sem ordem.

 

Sei

de viva voz

(a minha, modesta)

que no bairro alto

habitam as páginas desamestradas

os lobos escondidos do dia

poetas sem armadura

nem segredos.

 

Povoam o mais alto bairro

em marejados pregões

despindo a camisa mesmo sendo inverno

chamando um novembro quimérico 

– ou então

deitando-se

ao implacável escrutínio das massas

enjeitados

como amantes da loucura,

irremédios,

marinando no fino recorte do entardecer. 

#1828

[Crónicas do vírus, CD]

 

Depois da peste

saudades do passado

ou reaprendizagem em contínuo?

9.12.20

Aos tempos depreciados, a batuta da História

Povoei 

a pedra-angular

contra o centrípeto estilhaçar

das furnas involuntárias.

Pelo meio de tumultos

abracei os olhos às pontes firmadas

dei-me como garantia

às prevenções contra os lodos em estima.

Desembaraçado

o véu desagrilhoou o obscurantismo

e trouxe ao estuário

um horizonte interminável

as barcas todas em trânsito afável

e o rio

habitável.

O rádio escanhoa o dia desafeiçoado

as notícias debitadas

soam como palavras vazias

uma gramática arcaica

desusada

e a voz do locutor 

como se a de um louco se tratasse

em contínua vozearia,

demencial.

Que as migalhas do pretérito

não sejam desaproveitadas:

Urge

um choque térmico de História

com suas histórias

benevolamente esbofeteadas

nos rostos imberbes 

dos néscios.

#1827

[Crónicas do vírus, CCCXCIX]

 

Avant la lettre,

o oráculo vencido

na transfiguração do medo.

8.12.20

Socalcos

Hoje

converso no parapeito

onde se abriga

o mito sem rosto. 

Desalojo

a incubação da sementeira

os olhos rasos

já assombrados

num limbo sem verbo. 

Recebo

na morada da janela

o beijo sem fome

e junto as mãos

no parapeito da moldura,

à espera 

de um tempo desembaraçado. 

#1826

Crónicas do vírus, CCCXCVIII]

 

Tentativa e erro:

o logradouro dos regedores.

7.12.20

Às prometidas dietas

O genuíno garfo

saltando as searas outonais

exara o salvo-conduto

dos fantasiados ascetas

que derruem soldados.

Daqui a dois bocados

adia-se tudo:

as claras em castelo

não aconteceram;

é preciso pedir (outro) favor

aos galináceos.

Nada disto seria assim

se o bolo tivesse sido comprado

já feito,

ou se, sardónicos,

fizéssemos dieta;

mas somos hienas de nós mesmos

e esquecemos.

#1825

[Crónicas do vírus, CCCXCVII]

 

Num lampejo:

o pesadelo duradouro

a sair da sua hibernação.

6.12.20

A senhora manca na fila do supermercado

Na fila do supermercado

uma senhora manca

manca

e passa à frente da fila.

 

(Destas coisas modernas,

da prioridade para pessoas

com handicaps).

 

Na fila do supermercado

uma senhora manca

paga as compras

e sai

sem ser manca.

 

(Os comentários, 

impregnados de moralidade,

ficam por conta do leitor.)

#1824

[Crónicas do vírus, CCCXCVI]

 

Deixamos os aplausos

almiscarados

em memória futura.

5.12.20

#1823

[Crónicas do vírus, CCCXCV]

 

Uma mortalha de suspensão

(ou um ano inteiro 

na jaula de um parêntesis).

4.12.20

Inversão de termos

Matéria-prima:

o azulejo apessoado

por dentro do olhar antecipado,

em estrofe tutelar

do provérbio em deserção.

A voz do xilofone

ouve-se ao longe.

O murmúrio da multidão

também.

As sílabas sobrepõem-se à maresia

em combate terçado sem gente

apenas no sortilégio das palavras:

das palavras que se embebem

no mar demiúrgico.

Umas, 

malditas,

aventuram-se

como primas da matéria fulcral;

outras, 

mal ditas,

oferecem-se ao ultraje dos ínscios

e constituem-se desperdício,

tumulares.

Os ladrilhos

tocam ao de leve com os dedos

nos olhos extasiados dos forasteiros.

Os nativos,

distraídos,

são os forasteiros

de sua própria cidade.

Não sabem 

do paradeiro dos azulejos.

#1822

[Crónicas do vírus, CCCXCIV]

 

Em choque frontal

utopia

e nostalgia.

3.12.20

Educated guess

“An educated guess”

combina o sexteto boémio

antes que pudesse ser

binómio.

 

E não pode ser apenas

“guess”?

Se cair o adjetivo

a “guess”

fica deseducada?

 

Ecoa um certo património

a balsa que resguarda

tremeluzentes nónios

que afiançam mesuras

um burburinho.

 

Uma voz escondida

em tom de repreensão

adverte:

os cavalheiros ficam a dever

aos pergaminhos

se não forem corteses;

em remate

(sentenciou a voz fantasma)

empregue-se o “educated”

como complemento de “guess”.

 

(Antes que os cavalheiros

deixem os pergaminhos em olvido

e trespassem

as portas do lupanar.) 

#1821

[Crónicas do vírus, CCCXCIII]

 

Espectros

palavras pequenas

a loucura do medo.

2.12.20

O país que não tem sobremesas

Metaforizava

a levedura extática

sem supor que na escotilha

vegetavam espiões

disfarçados de chefes de cozinha.

Uma voz troou

como se acabasse

com a feição dos minutos

e disse

de mote próprio:

este 

é o país

que não tem sobremesas.

As pessoas despacharam a proclamação:

um país que não tem sobremesas

não merece ostentar 

à lapela

o nome de país.

Foi quando um eremita,

conhecido citador de poetas

intelectual de velha cepa

(sem, contudo, 

se lhe conhecer safra própria)

contestou:

um país é como os pais

só que sem o acento tónico.

E quem não conhece pais

que não pedem sobremesa?

Ficou estabelecido

ao cabo de aturadas negociações

que um país está dispensado

de inventariar sobremesas;

ficou registado em ata

que um país

tem direito à dieta.

Não metaforicamente falando.

#1820

[Crónicas do vírus, CCCXCII]

 

Como sabemos

se o pai natal é fidedigno

com as barbas embaciadas

pela máscara?

1.12.20

Distopia

A próxima guerra

preso ao meu pé esquerdo

um sacrilégio

talvez

aposta cega 

no túmulo sem nome. 

 

Amanhecem as sombras tiranas

debruçam-se sobre o corpo

madraço

e em sua meação 

atordoam-no. 

 

A próxima guerra,

uma sem exércitos

nem artilharia,

não deixará a saliva intacta.

Metafísico

Deixaram-nos aqui

sozinhos

(desamparados)

mas temo-nos

uns aos outros.

#1819

[Crónicas do vírus, CCCXCI]

 

As vacinas.

Ou

o corte epistemológico

da peste.

30.11.20

#1818

[Crónicas do vírus, CCCXC]

 

A cortina

teimosamente vertida

às costas dos humanamente

frágeis.

29.11.20

#1817

[Crónicas do vírus, CCCLXXXIX]

 

Trigonometria

da melancolia.

28.11.20

#1816

[Crónicas do vírus, CCCLXXXIII]

 

A dissimulação

deixou de ser perseguida

pelos que pastoreiam

os bons costumes.

27.11.20

Niilismo

Não é 

a erma vindima

o magma furtivo

o emblema da ira

a seráfica encenação.

 

Não é

o adiamento provisório

as colcheias desamestradas

o vínculo sem furor

os degraus sem destino.

 

Não é

a compensação sem paradeiro

a eira banal

o verbo defenestrado

o rosto desfardado.

 

Não é

o tiro avulso

o penhor prometido

a pulsão meteórica

a justaposição de termos.

 

Não é

o não saber na casa

o não despojar o medo

o não fugir sem delação

o não arrumar as candeias gastas.

 

Não é

desaproveitar o ontem

reter a lágrima no peito

insultar o próprio nome

legar um nada cheio de tudo.

#1815

[Crónicas do vírus, CCCLXXXII]

 

Tão bem lançados íamos

veio este freio luciferino

trazer o mosto do retrocesso.

26.11.20

Adivinha

Que papel regido

serve ao obstáculo penhor?

As juras avessam o lugar

em servis comendas

que não têm cabimento.

Às manhãs consentidas

devolve-se a argamassa

o solene filamento que atravessa

o sangue apurado.

Se ao menos

a chuva viesse temporã

e as matilhas não angariassem

o medo

a maré seria sementeira

da filigrana avivada nos dedos.

#1814

[Crónicas do vírus, CCCLXXXI]

 

Somos

uma errata 

em movimento.

25.11.20

Entrelinhas

O que sabemos

das entrelinhas:

os nós invisíveis

que azedam a boca

e nós,

seus possíveis hermeneutas,

um vesúvio inteiro

a aguardar por exploração. 

 

O que tiramos

das entrelinhas:

o mosto indecifrável

semântica partida nas vírgulas

como se fosse fratura exposta

e do osso se visse apenas

o gesso. 

 

O que devemos

às entrelinhas:

o cofre forte da alma

o penteado maiêutico da palavra

a recusa do lugar-comum

no lugar reinventado

onde reinventadas 

se lobrigam as palavras. 

 

Por dentro

das entrelinhas.