9.2.21

Aqui é proibido vendar as bocas

Não me digam

o que não é falável

na circuncisão do olhar

pelas lágrimas repressoras

de altivos sicários de almas.

 

Prefiro desfalar

o que é falável

usar a baioneta da palavra

fecundar a dissidência

no altar 

onde 

só vozes caiadas

colhem identidade.

 

Não me obstruam o mar

que as minhas ondas se sobrepõem

aos paredões indigentes.

 

Não levem 

o ouro que trago na pele

que a nudez remanente 

é pólvora 

ateada no quartel dos fracos.

 

Não me digam

o que tenho caução para dizer

que serão essas as palavras

que faço sussurrar na boca,

continuamente.

 

Não desembaracem fronteiras

que eu próprio me faço salteador

e desembarco numa baía

onde o areal se declarou

livre 

de magistrados castradores.

#1904

[Crónicas do vírus, CDLXXVI]

 

Os mortos,

que não chegaram

a tempo da vacina. 

#1903

[Crónicas do vírus, CDLXXV]

 

Este era o pior fantasma

de que não sabíamos 

a existência.

8.2.21

Manifesto contra as notas de rodapé

No pé de página

onde a atenção se dissolveu

os nomes que oferecem a inspiração.

É por isso

que odeio os rodapés:

não passam de ornamentos

um enchimento de página

prova dada

das leituras encomendadas.

Ao pé de página

devia estar apenas

o número

e não os nomes

que quase não passam

de analgésicos números. 

#1902

[Crónicas do vírus, CDLXXIV]

 

A mnemónica necessária:

quando será a descolonização

do vírus maldito?

#1901

[Crónicas do vírus, CDLXXIII]

 

Dos outros

que existem

temos uma leve 

desconfiança.

7.2.21

#1900

[Crónicas do vírus, CDLXXII]

 

De primeiro a último.

(História de um destino)

#1899

[Crónicas do vírus, CDLXXI]

 

Amuralhados 

no nosso exílio

reféns da soberba consentida.

6.2.21

#1898

[Crónicas do vírus, CDLXX]

 

O relógio arrasta-se

numa procissão

sem rostos.

5.2.21

O avarento

O penhor sem alma

toma de assalto a renda alheia

ao notar 

os excruciantes pesares

dos penhorados.

Usurários,

os juros,

combinam com a aspereza da alma

 

(afinal, tem-na, 

mas de mau calibre).

 

O penhor

desalma os penhorados.

Estes, 

em farta súplica,

pedem

 

(e fazem-no “penhoradamente”)

 

para haver lugar a alguma indulgência.

O penhor

homem pouco letrado

não sabe o significado de “indulgência”

e tem vergonha de perguntar

 

(ou de deitar mão a um dicionário

sob o olhar inquisitivo dos outros).

 

Recusa a súplica,

compulsivamente desconfiado.

Os penhorados perdem tudo.

O penhor

sem saber da vicissitude

perde 

o que perderam os penhorados:

não há vivalma 

que dê um cêntimo

por aquele pecúlio penhorado.

Termos em que se pode epilogar

reconhecendo

que o penhor foi devorado

pela avareza

 

(e pela necedade). 

#1897

[Crónicas do vírus, CDLXIX]

 

Quanto do nosso eu

foi confiscado

numa tirania disfarçada?

#1896

[Crónicas do vírus, CDLXVIII]

 

Hoje

respiro

por uma metáfora.

4.2.21

Ervas daninhas

Tirando 

as ervas daninhas

e os coevos admiradores

de aspirantes a tiranetes

fica a aveludada pista

para o tangencial amanhã.

Ao calhas

a matilha limítrofe

fareja o sinal da morte

pois a morte é mantimento.

Admirados

os representantes das farsas

passam a mão pelo amanhã

e certificam-no

com um selo arcaico.

Sem saberem

povoam-se

ervas daninhas

no seu

(próprio)

prândio. 

#1895

[Crónicas do vírus, CDLXVII]

 

As palavras imponderáveis:

zaragatoa

síncrono

confinamento

assintomático

profilático

ventilador

zoom

distanciamento

vacina.

3.2.21

O bom gigante

Deito-me à amálgama

que incendeia a boca.

Ao longe

o latido de um cão

irrompe a solidão da madrugada.

Lembro o crepúsculo de véspera

uma claridade singular, 

maduramente ocre,

agigantando-se

contra a decadência do dia;

lembro

como fiquei extasiado

e quase entoei uma prece

para tornar imorredoiro este entardecer.

Mas agora era madrugada:

a negação 

do imorredoiro, quimérico ocaso de véspera.

Entendo agora

a amálgama que não julgo ser prisão

nem labéu que me desterra

mas o manancial que semeia

a estatura maior do que sou.

#1894

[Crónicas do vírus, CDLXVI]

 

Todo este tempo depois

a suspeita 

que o devir falhará 

os hábitos do outrora.

2.2.21

#1893

[Crónicas do vírus, CDLXV]

 

Atirados

para o minimalismo

quase 

em monástica condição.

Roteiro para sair da desgraça

Não se montam escadotes

num rossio deixado ao deus-dará.

 

Os poetas esqueceram-se da chave.

 

Pelo estreito corrimão

não cabem dois pares de mãos.

 

Aos cabelos enxovalhados

atirem-se pétalas de ouro.

 

Este puré não vinga

na assembleia de Ícaro.

 

Não se elevam sacerdotes

no harém esquecido num mapa perdido.

 

Os poetas nunca foram servis.

 

Pelas avenidas apinhadas

correm as mãos desajeitadas.

 

Aos ourives apeçonhados

atirem-se cabelos desemparedados.

 

Este vinho não convence

na conferência de Eros.

 

Não se fingem astronautas

na maré rasurada das medidas.

 

Os poetas não querem um céu.

 

Pelo cais solitário

avança a matilha caiada.

 

Aos órfãos revoltados

atirem-se mães à solta.

 

Este cozinhado não se valida

no estertor de Zeus.

#1892

[Crónicas do vírus, CDLXIV]

 

Folgam 

os peixes do Douro

com a deserção dos pescadores.

1.2.21

Já não há bandeiras para estes mastros

(Trama desnacionalista)

 

As bandeiras choram.

Escamam as suas lágrimas

nos bebedouros onde se alicia

a melancolia.

Os prantos fundem-se com as preces:

ah, 

outrora lançávamos os dados

e hoje não passamos de peões

num tabuleiro onde somos

deslembrança.

As bandeiras rasgadas,

pontuação da desesperança

e só por um segundo

a grandeza,

essa tão fátua grandeza,

se levanta das teias dos manuais:

neles se encerram as suas fronteiras;

neles 

vivem os fantasmas

que resistem ao exorcismo do presente.

O futuro 

é feito do presente 

que vamos adestrando,

este o seu autêntico tirocínio.

O passado 

tem o conhecimento 

como única serventia;

não se presta

a ser a fonte ardilosa

de onde manam 

oráculos disfarçados de miasmas.

#1891

[Crónicas do vírus, CDLXIII]

 

Não chegam

as letras do alfabeto

para emoldurar 

o retrato da peste. 

31.1.21

Fora de moda

Não se diga

uma palavra

sobre as modas

que o silêncio

as devolve

as desmodas.

Na casa decimal

avalia-se o encargo

à revelia da lei,

não vá a ambição 

de estar in

perder-se na mealha rota

e acabar no entreposto

onde se arquiva 

out.

#1890

[Crónicas do vírus, CDLXII]

 

Assentamos nas ruínas

que herdámos 

da fragilidade.

30.1.21

#1889

[Crónicas do vírus, CDLXI]

 

Agora

de túnica vestido

o mundo espera.

29.1.21

Torre de marfim

Torre de marfim:

onde as vidraças

não cobram franquia

e as palavras se emaranham

numa gólgota medieval.

 

Torre de marfim:

onde, 

circunspectos,

fiscais fazem a corte ao zelo

e sonham

em sonhos sem sono

com judiciosas armadilhas

onde, 

impreparadas,

as pessoas são caçadas.

 

Torre de marfim

até ficar condenada

à verrinosa ferrugem

dos apóstolos da decadência.

#1888

[Crónicas do vírus, CDLX]

 

Um deserto

sem horizonte,

o ato isolado

que se demora.

28.1.21

A profecia que ninguém viu

“Estou pronta”,

avisou, 

a profecia,

com um pé delicado porta fora

sem saber da chuva torrencial.

“Estou pronta”,

repetiu, 

a profecia,

ao notar a indiferença da audiência

assim se sabendo sozinha.

“Digo outra vez:

es-tou pron-ta!”,

silabou, 

a profecia,

com todo vagar,

a convocar a atenção

quase em súplica

– quase como se fosse preciso

desenhar em legendas

a gramática da advertência

que encorpava

a profecia da profecia.

Ninguém a ouviu.

Quando a profecia se abateu

o esquecimento de todos

embaciou o olhar

e ninguém deu a mão 

à profecia.

À profecia

que órfã ficou.

#1887

[Crónicas do vírus, CDLIX]

 

À força

exílio,

antes que a forca.

#1886

[Crónicas do vírus, CDLVIII]

 

O paga do abuso

na sede

de sermos animais sociais

é a misantropia à força.

27.1.21

Punchline

Não prometo tréguas

se nunca dancei com a guerra.

Aos tiranetes da razão

brindo 

com uma infusão de loucura

e pé ante pé 

assombro-os

com o vulto de que me faço.

Aconselham

que ninguém mate com ferros

para em ferros não ser morto:

esse é o vão a que não me agarro;

deixo-o para os agiotas 

que vomitam 

por cima da métrica assisada.