11.3.21

#1939

[Crónicas do vírus, DXI]

 

A diatribe do momento:

a sensação adolescente

de faltar pouco

para sair do castigo.

10.3.21

Rendez-vous

A métrica emancipada

amarelece as mãos outrora macias.

Assustam-se,

as mãos,

no assalto sem o sintoma dos símbolos

saltando as sortes que vão singrando.

Ao rendez-vous

a rendição dos remédios

arrumada no rastilho rancoroso.

É na literacia dos loquazes

que se leem os lábios matinais.

Não se neguem os nomes animados

nem à noite enevoada se entreguem

as ninfas entusiasmadas.

Pois é nesta métrica

que os símbolos se rendem

e os lábios têm nomes.

#1938

[Crónicas do vírus, DX]

 

(Variação do #1937)

 

Em véspera de primavera

a teimosia dos timoratos. 

#1937

[Crónicas do vírus, DIX]

 

Em véspera de primavera

voluteiam os vultos distraídos

em rapina do processado.

9.3.21

Resguardo

Disponho o estuário

no rumorejo que se distingue

do silêncio estival. 

É o tempo 

da avença sem espartilho

o lado obscuro

que amanhece no avesso da fala. 

Não me digam

que acabaram os comboios no apeadeiro;

não me digam

que sobrou o princípio geral do adiamento;

não me digam

que a vontade foi contrabandeada

e dos rostos sobrou

a melancolia. 

Participo uma intenção:

quero com uma mão

abraçar o mundo inteiro

ter a distância incalculável

à mercê de uma régua 

feita dos meus dedos. 

Não são as tempestades

que desarrumam a intenção,

não!

Povoo a paisagem

como um arco-íris 

arrancado a uma aguarela;

vejo-me parte integrante da paisagem

muito mais do que um esboço

que se divide 

com uma clepsidra arcaica. 

Se os versos dizem os espelhos claros

sou a luz não fortuita

que se deita sobre o dia:

e deixo que o dia

se alimente do meu húmus,

deixo

que os deuses adormeçam 

sob as vaias dos ingratos 

e a vigia dos lutuosos

– para depois

ajudando a maré a ficar alta

entrar pelo portão coroado de nada

poeta dos silêncios desarmados

proémio do corpo descarnado,

as vírgulas todas à mostra

e o estuque

em estilhaços a fazer de cama

aos seráficos 

que se arrastam pelo entardecer. 

#1936

[Crónicas do vírus, DVIII]

 

Em cima da pandemia,

outra peste (quase maior):

a língua de trapos

da intendente da tutela.

8.3.21

O mercúrio é que arde muito

São as luzes tépidas que desmaiam

e as flores esperam pela véspera

como os cães que tomam conta do gado,

diligentes. 

No mosto tirado aos rapazes

encontra-se o salvo-conduto dos audazes;

que interessa que sejam analfabetos

se convencidos estão

que é mel a força bruta, 

destemperada?

Soubessem das armas azedadas

dos piores, fúnebres verbos

e teriam o leve toque dos pueris

desarmados no colmo gasto 

em noites vãs. 

Não se diga

que as árvores impossíveis 

não estão de atalaia. 

Casam-se as noites pelas costuras terrestres

e a pele destrona as crostas anciãs

na improvável ocupação dos antepassados. 

Se houvesse um livro de atas

seria tingido pelo suor dos dedos,

sua tinta amortizada. 

Sobrariam as assinaturas

de tantos pretendentes à palavra imorredoira. 

Mas é só palco dos inconsequentes

pois aos demais

basta o palco onde o silêncio

é deferência.

A arruaça metida às arrecuas

ou as arrecuas da arruaça,

tanto faz.  

#1935

[Crónicas do vírus, DVII]

 

A perna curta

é craveira da mentira

como é da imperícia.

7.3.21

A lua silenciosa

A lua

não fala

com ninguém.

No seu caiar

o silêncio

adia a noite.

A lua não fala.

Até os lobos solitários

cultivam o silêncio

quando depõem

perante a lua.

Aprenderam

no confessionário da lua

que o silêncio

dispensa a gramática.

#1934

[Crónicas do vírus, DVI]

 

Alívio;

ou emboscada?

6.3.21

#1933

[Crónicas do vírus, DV]

 

Os gatos vadios

nem assim

perderam o cio.

5.3.21

Contas trocadas

Eram as cores baças

que tingiam as açucenas

ecoando na avenida melancólica,

como se a véspera de primavera

fosse o presságio do outono.

Já se sabe

“anda tudo trocado”

e a voz popular engana-se

com estrondoso sucesso.

Se ao menos 

as cores se avivassem

ninguém mentia 

ao outono tardio.

#1932

[Crónicas do vírus, DIV]

 

O embargo do futuro

na exasperação do presente.

4.3.21

Fogo cruzado

Disponho os garfos fundentes

na mnemónica das mãos quentes

e faço da reserva mental,

com o aparato da discrição,

a água que emerge da maré.

 

Não sei quantas balas preciso

para o tear da paz;

desconfio que sejam muitas,

incontáveis balas,

murmura o engenheiro da sabedoria

enquanto à minha volta

não vejo rostos nem sinto nomes.

 

Revejo expressões idiomáticas;

são tão irrisórias

que mais deviam ser

expressões imbecilocráticas.

 

Lá vêm as balas

cobertas com o bolor dos arcanos

rangendo metáforas demenciais

convencidas que falam mais alto

do que as palavras.

As balas caem no vazio.

Espera-se que a sua quentura

seja o lugar-comum que sepulta

os estultos.

 

Deste fogo cruzado

não quero participação.

As vítimas inocentes,

uma contradição de termos,

são incineradas no vagão ferrugento

que desaprova a lucidez.

São a prova do bestiário 

que é o palco do mundo.

#1931

[Crónicas do vírus, DIII]

 

Do espírito de contradição:

misantropo incorrigível,

agora

a rua era o melhor habitat.

3.3.21

Feira da ladra

Nunca o lixo

esteve tão perto

do luxo.

E o luxo

lambendo as feridas do lixo

perdeu a marca registada.

A franquia do luxo-lixo

tornou-se lugar-comum.

Mas ao lixo

nunca se chamava

um luxo.

#1930

[Crónicas do vírus, DII]

 

Uma estrela

com sua luz nascente

dissolve aos poucos

o céu pesado.

2.3.21

Pressuposto

Este burocrático bocejo

partilha do mesmo bacelo

a matéria nua no póstumo adiar.

O medo desarmadilhado

concebe-se na ousadia dos imberbes.

Deitam-se os números ao acaso

e o rosto cobre-se de um verbo venal:

não há nada que possa ser mudo

na consoante que desimagina um dia

o fardamento puído no mar prometido

enquanto a boca fala e fala

às catedrais fingidas no meio dos espectros.

#1929

[Crónicas do vírus, DI]

 

O murmúrio 

de uma voz sem nome

levanta o véu

de um sol impaciente.

1.3.21

Improvavelmente

Não quiseram cancelar deus

dentro do prazo

e ficaram com deus imorredoiro,

um deus sentado a adejar sobre eles,

sem saberem que serventia lhe dar.

Aos chamamentos contínuos

o silêncio estrutural.

Podiam não ter cancelado deus

a tempo

mas deus já os tinha desterrado

para a pátria dos mudos

(o que ia dar ao mesmo).

Não cancelaram deus

dentro do prazo:

deus antecipou-se.

E eles,

insubmissos mortais,

guardaram para si

o diamante da ousadia:

deus não está no meio de nós,

disseram em desdém,

que a eles,

mudos por divino decreto,

deus não ouvia.

#1928

[Crónicas do vírus, D]

 

Como a água barrenta do Douro

alvejada quando o mar a abraça,

esperamos pelo dia depois da peste.

28.2.21

Manual da resignação ao socialismo

O corso 

penhora o viés 

dos feiticeiros.

Em vez 

de pautas autênticas

os trovadores falam

de luas esquecidas

e embaciam os olhos

em luras fingidas.

O cidadão,

disbúlico,

fermenta o paternalismo

enquanto protesta

contra a presença perene

dos mandantes.

#1927

[Crónicas do vírus, CDXCIX]

 

Logo nós 

– arrumavam o fastio,

antes que fosse cedo de mais.

27.2.21

#1926

[Crónicas do vírus, CDXCVIII]

 

A peste

é um parêntesis no tempo

ou a confirmação de que somos

uma grande mentira.

26.2.21

Semântica em coreografia reescrita

A caligrafia

no pranto sem meada,

visível embaraço.

Segredam:

é a apoteose

e as vírgulas parecem

estar de acordo

tal como os sábios

esquecidos da sua erudição.

Doravante,

só há planícies

– planícies e súplicas.

O riso calcificado

desamanhece,

estorva a prosápia dos aspirantes.

Se ao menos se soubesse

do paradeiro da gramática

e não houvesse terroristas do idioma

o apogeu teria lugar

para além do dicionário.

#1925

[Crónicas do vírus, CDXCVII]

 

Não é tanto

o estado de sítio

mas o sítio do des-Estado.

25.2.21

Caudal

Onde o rio torce o braço

e o poente se esconde

nas costas dos socalcos

o feixe de luz habita a janela

ciciando o ocaso.

Onde o rio torce o braço;

antes que os poetas acordem

e tragam para a moldura

o bojo dos almirantes da palavra

e esta,

desenhadora,

amanheça em camadas de sentido

destronando as comendas dos avoengos.

#1924

[Crónicas do vírus, CDXCVI]

 

À medida que o passo avança

um deserto

que parece não ter fim

e devora a paciência.

24.2.21

Exílio

Esconjurado o fogo ávido

os corpos deitados pelo chão

sobre tapetes puídos

exalam o sacrifício do medo

enquanto pela portada

um clarão se projeta na parede.

 

Até parece

que a parede 

não está encardida.

 

Os projetos de passado

imersos no bolso do avesso

como se houvesse oráculos

e dos oráculos pudéssemos pedir

o futuro emprestado.

Não se confia na resistência de materiais

depois de tantas labaredas

e de quase tudo consumido no planalto

onde os espectros ficam longe.

 

Imaginamos a maré que rasteja até ao areal:

os pequenos despojos de água

fundidos na areia

como acontece

com a memória que atravessa o tempo

e se encerra em pontes herméticas,

o lugarejo ermo onde avança o rosto

contra as espadas que dinamitam o sono

em estilhaços que tornam o dia impuro.

 

Amanhã faz-se o resto.

 

A vassoura está perdida

e os vestígios ainda fumegantes 

bolçam uma maldição,

uma maldição qualquer,

anónima,

ergástula,

o condoído lamento

que saciado na anemia.

 

Atravessam-se as portas 

que se julgava fechadas.

 

Os amotinados não estão no lugar 

– eles nunca estão em lugar algum.

Leiam-se os éditos

nos idiomas que houver por inventariar

e diga-se,

com a voz ornamentada a tinta da china,

que a enxada remexe a terra

à procura dos diamantes prometidos.

 

Os medos não vêm à porta

e no juramento sem cerimónia

enfeitam-se as deusas com a nudez

entre os dedos que as desenham

e as bocas vadias

que nelas encontram sede.

#1923

[Crónicas do vírus, CDXCV]

 

Ao naufrágio de todos

somam-se os regentes.