[Crónicas do vírus, DXVIII]
Abotoar o desmedo
na alquimia da contingência.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Esta é a ponte sem abismo
o logotipo dos amadores
verbo ajuramentado no colóquio dos eruditos.
Este é o degrau rombo
na escadaria dos ilustres
em falta a passadeira vermelha
e o acetinado tecido da cortina
que desce sobre a cena,
cobrindo-a com o fim.
Este é um lampejo de lucidez
a fria matéria campestre
no algoritmo dos amanuenses
distopia contra os madraços da folia.
Esta é a folha em que maceram
à espera de dia nenhum
andaluzes alfarrabistas de livros sem edição
os milhafres que espiam a sombra escassa
no auge do Verão.
Esta é a geografia distante
uma paisagem lunar que se agiganta no mapa
atirando o olhar contra o nanismo dos seres
enquanto coiotes febris procuram o coldre
e as presas emudecem no crepúsculo.
Este é o contrabando que dissolve as almas
penhores inválidos de um oráculo dispensado
enquanto às mãos dos marinheiros
vem uma esfíngica bailarina
em forma de estatueta de cera
(quando sereias tinham sido prometidas).
Esta é a pergunta sem fronteiras
o contrabando da lógica
em passarelas de nevoeiro
que pedem um arnês.
Esta é a pose senhorial
o esfíngico balbuciar de impropérios
no amuralhado silêncio
contra os mastins que a fala adulteram.
Esta é a pista venal
o rosto lodoso, irrepresentável,
o cerco tentacular à adivinha sem resposta
o pulcro que espera pela prescrição.
Este é o diadema sobrante
o tiro de partida para a decadência
no alistamento de muitos
e resistência de uns poucos
na haste visível de um minarete de ouro
enquanto o vento traz o perfume do rio
que se espalha pelos interstícios da cidade
e se abraça ao dia vindouro.
Este é o espelho
antes de ser estilhaçado
pela força centrífuga de um sismo
o espelho agora despedaçado
fronteira renascida
à espera do rastilho da maré.
Este é o pinheiro matricial
o bravo escudeiro dos sublevados
bandeira hasteada no pórtico da ponte
que não esperou pelo abismo.
Dou de um nada
o vértice da sílaba gutural
e na enseada
estimo o vento que incendeio
à espera da locomotiva meã:
a acendalha para o chão molhado.
Vou de um nada
a aresta crua na gramática venal
e no promontório
coabito na lua centrípeta
à espera do murmúrio tenaz:
o musgo acastelado na silhueta das nuvens.
Há num nada
na pontuação da sede sideral
e no estuário
colho a maresia que esbracejo
à espera do céu dardejado:
a escrita em dia na partitura das mãos.
[Crónicas do vírus, DXVI]
(Variante do #1943)
Liberdade condicional,
ou liberdade
a condicionar?
Vou à torre de marfim
e deposito
a rota de intenções:
ela encerra um segredo:
como se fosse uma maré contra
o verbo desagir
amanhece nos confins do olhar.
Estou na torre de marfim
e imagino os cavalos sem crina
um segredo em hora de ponta:
vejo as torres circundantes
e nenhuma delas é de marfim.
Por dois momentos
suspeito
que sou imperador
da desação.
[Crónicas do vírus, DXIV]
Desconfinar descafeinado
ou
desconfiar do desconfinar –
um tratado de lucidez antropológica.
Joga-se o império
no palco decadente.
As areias movediças
despojam os guerreiros.
Sem armas
ficam à mercê do amanhã,
julgados pelo pretérito.
Terminais,
querem de refeição
um módico de piedade.
Os algozes não esperam
por sinais divinos
enquanto se demoram
amesendados
nos despojos dos perdedores.
Sem que saibam
encaminham-se velozmente
para a vertigem de um abismo
que consome os soberbos.
Dos passos trocados
entre vencedores desarmados
e perdedores à espera de condenação
não sobra ninguém.
A História fica omissa
por demissão dos seus atores.
São as cinzas
que atapetam o chão
a fala torpedeada do vulcão
na ignição dos tumultos interiores.
Digo
a Zeus encolerizado
que de um diadema fortuito
pode desembaraçar a portagem
sem litanias consequentes
nem danos na ossatura.
Não sei se Zeus estava distraído.
O vulcão continuou a suar
e as entranhas pornograficamente à mostra
abraseando as terras inocentes.
[Crónicas do vírus, DXI]
A diatribe do momento:
a sensação adolescente
de faltar pouco
para sair do castigo.
A métrica emancipada
amarelece as mãos outrora macias.
Assustam-se,
as mãos,
no assalto sem o sintoma dos símbolos
saltando as sortes que vão singrando.
Ao rendez-vous
a rendição dos remédios
arrumada no rastilho rancoroso.
É na literacia dos loquazes
que se leem os lábios matinais.
Não se neguem os nomes animados
nem à noite enevoada se entreguem
as ninfas entusiasmadas.
Pois é nesta métrica
que os símbolos se rendem
e os lábios têm nomes.
[Crónicas do vírus, DIX]
Em véspera de primavera
voluteiam os vultos distraídos
em rapina do processado.
Disponho o estuário
no rumorejo que se distingue
do silêncio estival.
É o tempo
da avença sem espartilho
o lado obscuro
que amanhece no avesso da fala.
Não me digam
que acabaram os comboios no apeadeiro;
não me digam
que sobrou o princípio geral do adiamento;
não me digam
que a vontade foi contrabandeada
e dos rostos sobrou
a melancolia.
Participo uma intenção:
quero com uma mão
abraçar o mundo inteiro
ter a distância incalculável
à mercê de uma régua
feita dos meus dedos.
Não são as tempestades
que desarrumam a intenção,
não!
Povoo a paisagem
como um arco-íris
arrancado a uma aguarela;
vejo-me parte integrante da paisagem
muito mais do que um esboço
que se divide
com uma clepsidra arcaica.
Se os versos dizem os espelhos claros
sou a luz não fortuita
que se deita sobre o dia:
e deixo que o dia
se alimente do meu húmus,
deixo
que os deuses adormeçam
sob as vaias dos ingratos
e a vigia dos lutuosos
– para depois
ajudando a maré a ficar alta
entrar pelo portão coroado de nada
poeta dos silêncios desarmados
proémio do corpo descarnado,
as vírgulas todas à mostra
e o estuque
em estilhaços a fazer de cama
aos seráficos
que se arrastam pelo entardecer.
[Crónicas do vírus, DVIII]
Em cima da pandemia,
outra peste (quase maior):
a língua de trapos
da intendente da tutela.
São as luzes tépidas que desmaiam
e as flores esperam pela véspera
como os cães que tomam conta do gado,
diligentes.
No mosto tirado aos rapazes
encontra-se o salvo-conduto dos audazes;
que interessa que sejam analfabetos
se convencidos estão
que é mel a força bruta,
destemperada?
Soubessem das armas azedadas
dos piores, fúnebres verbos
e teriam o leve toque dos pueris
desarmados no colmo gasto
em noites vãs.
Não se diga
que as árvores impossíveis
não estão de atalaia.
Casam-se as noites pelas costuras terrestres
e a pele destrona as crostas anciãs
na improvável ocupação dos antepassados.
Se houvesse um livro de atas
seria tingido pelo suor dos dedos,
sua tinta amortizada.
Sobrariam as assinaturas
de tantos pretendentes à palavra imorredoira.
Mas é só palco dos inconsequentes
pois aos demais
basta o palco onde o silêncio
é deferência.
A arruaça metida às arrecuas
ou as arrecuas da arruaça,
tanto faz.
A lua
não fala
com ninguém.
No seu caiar
o silêncio
adia a noite.
A lua não fala.
Até os lobos solitários
cultivam o silêncio
quando depõem
perante a lua.
Aprenderam
no confessionário da lua
que o silêncio
dispensa a gramática.
Eram as cores baças
que tingiam as açucenas
ecoando na avenida melancólica,
como se a véspera de primavera
fosse o presságio do outono.
Já se sabe
“anda tudo trocado”
e a voz popular engana-se
com estrondoso sucesso.
Se ao menos
as cores se avivassem
ninguém mentia
ao outono tardio.
Disponho os garfos fundentes
na mnemónica das mãos quentes
e faço da reserva mental,
com o aparato da discrição,
a água que emerge da maré.
Não sei quantas balas preciso
para o tear da paz;
desconfio que sejam muitas,
incontáveis balas,
murmura o engenheiro da sabedoria
enquanto à minha volta
não vejo rostos nem sinto nomes.
Revejo expressões idiomáticas;
são tão irrisórias
que mais deviam ser
expressões imbecilocráticas.
Lá vêm as balas
cobertas com o bolor dos arcanos
rangendo metáforas demenciais
convencidas que falam mais alto
do que as palavras.
As balas caem no vazio.
Espera-se que a sua quentura
seja o lugar-comum que sepulta
os estultos.
Deste fogo cruzado
não quero participação.
As vítimas inocentes,
uma contradição de termos,
são incineradas no vagão ferrugento
que desaprova a lucidez.
São a prova do bestiário
que é o palco do mundo.
[Crónicas do vírus, DIII]
Do espírito de contradição:
misantropo incorrigível,
agora
a rua era o melhor habitat.
Nunca o lixo
esteve tão perto
do luxo.
E o luxo
lambendo as feridas do lixo
perdeu a marca registada.
A franquia do luxo-lixo
tornou-se lugar-comum.
Mas ao lixo
nunca se chamava
um luxo.
Este burocrático bocejo
partilha do mesmo bacelo
a matéria nua no póstumo adiar.
O medo desarmadilhado
concebe-se na ousadia dos imberbes.
Deitam-se os números ao acaso
e o rosto cobre-se de um verbo venal:
não há nada que possa ser mudo
na consoante que desimagina um dia
o fardamento puído no mar prometido
enquanto a boca fala e fala
às catedrais fingidas no meio dos espectros.