19.3.21

Ecuménico

Tinjo

a aguarela

com o sangue

do desespero.

O sangue

não é meu,

nem o desespero.

Apenas os ouço

em surdina

querendo feitoria

no meu alabastro.

Da aguarela

pressentem-se

as cicatrizes do medo.

O oráculo

invade o tempo

leva-o

a um forasteiro lugar.

Disseram

que a aguarela

já puída

perdeu valor.

Conservo a moldura

por via das dúvidas

não vá ser precisa

para emudecer

o desespero

por ora

apenas em surdina.

A aguarela

tem paradeiro incógnito.

Nem os aflitos

que a assinaram

convocam a sua posse. 

#1949

[Crónicas do vírus, DXXI]

 

Momento heurístico da peste

(redescoberta do vocabulário):

postigo.

#1948

[Crónicas do vírus, DXX]

 

Uma fundação

engenhosamente artilhada

prepara-se para resistir 

aos seus escombros.

18.3.21

Enigma

Consigo consigo 

– e não revelo 

por que ordem 

aparece o verbo.

 

(E devo dizer

que a ordem

não é arbitrária.)

#1947

[Crónicas do vírus, DXIX]

 

Este caminho

cheio de acúleos

no biscate de uma redenção 

imperativa.

17.3.21

Franco atirador

O franco atirador

é um fraco atirador

(ou pretendente a ditador).

Pouco lhe vale

ser um atirador franco

que a franqueza

não é atestado de pontaria.

As guerras de todos os tempos

ficariam a ganhar

se os beligerantes

fracos atiradores fossem:

as balas perdidas 

seriam proveito para a humanidade,

à medida que fossem destinadas 

ao fosso.

Montra

[Ólafur Arnalds, “Re:member”]

 

Rasgo o céu com um verso órfão. 

Deixo à mercê da boca quente

o gelo sem pátria,

o vulcânico pedaço na maré baixa

a tocha nas mãos a povoar o entardecer. 

Deito ao céu

a jura que se amotina

e da carne íntegra tenho a medida certa,

as palavras de que sou embaixador.

#1946

[Crónicas do vírus, DXVIII]

 

Abotoar o desmedo

na alquimia da contingência.

16.3.21

18:34 (17:34 nos Açores)

Esta é a ponte sem abismo

o logotipo dos amadores

verbo ajuramentado no colóquio dos eruditos. 

 

Este é o degrau rombo

na escadaria dos ilustres

em falta a passadeira vermelha

e o acetinado tecido da cortina

que desce sobre a cena,

cobrindo-a com o fim. 

 

Este é um lampejo de lucidez

a fria matéria campestre 

no algoritmo dos amanuenses

distopia contra os madraços da folia. 

 

Esta é a folha em que maceram

à espera de dia nenhum

andaluzes alfarrabistas de livros sem edição

os milhafres que espiam a sombra escassa

no auge do Verão. 

 

Esta é a geografia distante

uma paisagem lunar que se agiganta no mapa

atirando o olhar contra o nanismo dos seres

enquanto coiotes febris procuram o coldre

e as presas emudecem no crepúsculo. 

 

Este é o contrabando que dissolve as almas

penhores inválidos de um oráculo dispensado

enquanto às mãos dos marinheiros

vem uma esfíngica bailarina 

em forma de estatueta de cera

(quando sereias tinham sido prometidas).

 

Esta é a pergunta sem fronteiras

o contrabando da lógica

em passarelas de nevoeiro

que pedem um arnês. 

 

Esta é a pose senhorial

o esfíngico balbuciar de impropérios

no amuralhado silêncio

contra os mastins que a fala adulteram. 

 

Esta é a pista venal

o rosto lodoso, irrepresentável,

o cerco tentacular à adivinha sem resposta

o pulcro que espera pela prescrição. 

 

Este é o diadema sobrante

o tiro de partida para a decadência

no alistamento de muitos

e resistência de uns poucos

na haste visível de um minarete de ouro

enquanto o vento traz o perfume do rio

que se espalha pelos interstícios da cidade

e se abraça ao dia vindouro. 

 

Este é o espelho

antes de ser estilhaçado

pela força centrífuga de um sismo

o espelho agora despedaçado

fronteira renascida

à espera do rastilho da maré. 

 

Este é o pinheiro matricial

o bravo escudeiro dos sublevados

bandeira hasteada no pórtico da ponte

que não esperou pelo abismo.

#1945

[Crónicas do vírus, DXVII]

 

Só estamos à espera

de um sinal

para sermos nómadas

outra vez.

15.3.21

Duodécimo

Dou de um nada

o vértice da sílaba gutural

e na enseada 

estimo o vento que incendeio

à espera da locomotiva meã:

a acendalha para o chão molhado.

 

Vou de um nada

a aresta crua na gramática venal

e no promontório

coabito na lua centrípeta

à espera do murmúrio tenaz:

o musgo acastelado na silhueta das nuvens.

 

Há num nada

na pontuação da sede sideral

e no estuário

colho a maresia que esbracejo

à espera do céu dardejado:

a escrita em dia na partitura das mãos.

#1944

[Crónicas do vírus, DXVI]

 

(Variante do #1943)

 

Liberdade condicional,

ou liberdade

a condicionar?

#1943

[Crónicas do vírus, DXV]

 

Liberdade condicional,

ou liberdade

a condicionar.

14.3.21

O avesso das intenções

Vou à torre de marfim

e deposito

a rota de intenções:

ela encerra um segredo:

como se fosse uma maré contra

o verbo desagir

amanhece nos confins do olhar.

 

Estou na torre de marfim

e imagino os cavalos sem crina

um segredo em hora de ponta:

vejo as torres circundantes

e nenhuma delas é de marfim.

 

Por dois momentos 

suspeito

que sou imperador 

da desação.

#1942

 [Crónicas do vírus, DXIV]

 

Desconfinar descafeinado

ou 

desconfiar do desconfinar – 

um tratado de lucidez antropológica.

13.3.21

#1941

[Crónicas do vírus, DXIII]

 

Os lugares

não são visitados.

Tornámo-nos forasteiros

no nosso lugar. 

12.3.21

Da História sem atores

Joga-se o império

no palco decadente. 

As areias movediças

despojam os guerreiros. 

Sem armas

ficam à mercê do amanhã,

julgados pelo pretérito. 

Terminais, 

querem de refeição

um módico de piedade.

Os algozes não esperam

por sinais divinos

enquanto se demoram 

amesendados

nos despojos dos perdedores. 

Sem que saibam

encaminham-se velozmente

para a vertigem de um abismo

que consome os soberbos. 

Dos passos trocados

entre vencedores desarmados

e perdedores à espera de condenação

não sobra ninguém. 

A História fica omissa

por demissão dos seus atores. 

#1940

[Crónicas do vírus, DXII]

 

Os laivos de re-liberdade,

em sucessivas demãos.

11.3.21

Os despojos do vulcão (ou: Zeus ficou a dormir na parada)

São as cinzas

que atapetam o chão

a fala torpedeada do vulcão

na ignição dos tumultos interiores. 

Digo 

a Zeus encolerizado

que de um diadema fortuito

pode desembaraçar a portagem

sem litanias consequentes

nem danos na ossatura. 

Não sei se Zeus estava distraído. 

O vulcão continuou a suar

e as entranhas pornograficamente à mostra

abraseando as terras inocentes. 

#1939

[Crónicas do vírus, DXI]

 

A diatribe do momento:

a sensação adolescente

de faltar pouco

para sair do castigo.

10.3.21

Rendez-vous

A métrica emancipada

amarelece as mãos outrora macias.

Assustam-se,

as mãos,

no assalto sem o sintoma dos símbolos

saltando as sortes que vão singrando.

Ao rendez-vous

a rendição dos remédios

arrumada no rastilho rancoroso.

É na literacia dos loquazes

que se leem os lábios matinais.

Não se neguem os nomes animados

nem à noite enevoada se entreguem

as ninfas entusiasmadas.

Pois é nesta métrica

que os símbolos se rendem

e os lábios têm nomes.

#1938

[Crónicas do vírus, DX]

 

(Variação do #1937)

 

Em véspera de primavera

a teimosia dos timoratos. 

#1937

[Crónicas do vírus, DIX]

 

Em véspera de primavera

voluteiam os vultos distraídos

em rapina do processado.

9.3.21

Resguardo

Disponho o estuário

no rumorejo que se distingue

do silêncio estival. 

É o tempo 

da avença sem espartilho

o lado obscuro

que amanhece no avesso da fala. 

Não me digam

que acabaram os comboios no apeadeiro;

não me digam

que sobrou o princípio geral do adiamento;

não me digam

que a vontade foi contrabandeada

e dos rostos sobrou

a melancolia. 

Participo uma intenção:

quero com uma mão

abraçar o mundo inteiro

ter a distância incalculável

à mercê de uma régua 

feita dos meus dedos. 

Não são as tempestades

que desarrumam a intenção,

não!

Povoo a paisagem

como um arco-íris 

arrancado a uma aguarela;

vejo-me parte integrante da paisagem

muito mais do que um esboço

que se divide 

com uma clepsidra arcaica. 

Se os versos dizem os espelhos claros

sou a luz não fortuita

que se deita sobre o dia:

e deixo que o dia

se alimente do meu húmus,

deixo

que os deuses adormeçam 

sob as vaias dos ingratos 

e a vigia dos lutuosos

– para depois

ajudando a maré a ficar alta

entrar pelo portão coroado de nada

poeta dos silêncios desarmados

proémio do corpo descarnado,

as vírgulas todas à mostra

e o estuque

em estilhaços a fazer de cama

aos seráficos 

que se arrastam pelo entardecer. 

#1936

[Crónicas do vírus, DVIII]

 

Em cima da pandemia,

outra peste (quase maior):

a língua de trapos

da intendente da tutela.

8.3.21

O mercúrio é que arde muito

São as luzes tépidas que desmaiam

e as flores esperam pela véspera

como os cães que tomam conta do gado,

diligentes. 

No mosto tirado aos rapazes

encontra-se o salvo-conduto dos audazes;

que interessa que sejam analfabetos

se convencidos estão

que é mel a força bruta, 

destemperada?

Soubessem das armas azedadas

dos piores, fúnebres verbos

e teriam o leve toque dos pueris

desarmados no colmo gasto 

em noites vãs. 

Não se diga

que as árvores impossíveis 

não estão de atalaia. 

Casam-se as noites pelas costuras terrestres

e a pele destrona as crostas anciãs

na improvável ocupação dos antepassados. 

Se houvesse um livro de atas

seria tingido pelo suor dos dedos,

sua tinta amortizada. 

Sobrariam as assinaturas

de tantos pretendentes à palavra imorredoira. 

Mas é só palco dos inconsequentes

pois aos demais

basta o palco onde o silêncio

é deferência.

A arruaça metida às arrecuas

ou as arrecuas da arruaça,

tanto faz.  

#1935

[Crónicas do vírus, DVII]

 

A perna curta

é craveira da mentira

como é da imperícia.

7.3.21

A lua silenciosa

A lua

não fala

com ninguém.

No seu caiar

o silêncio

adia a noite.

A lua não fala.

Até os lobos solitários

cultivam o silêncio

quando depõem

perante a lua.

Aprenderam

no confessionário da lua

que o silêncio

dispensa a gramática.

#1934

[Crónicas do vírus, DVI]

 

Alívio;

ou emboscada?

6.3.21

#1933

[Crónicas do vírus, DV]

 

Os gatos vadios

nem assim

perderam o cio.