3.7.21

#2062

[Crónicas do vírus, DCXXXIV]

 

Jogos

com 

fronteiras.

2.7.21

Colherada de urbanismo

A cidade 

joga-se contra a luz entediada. 

A cidade

joga-se contra a luz

entediada. 

Sente-se enteada

perdida no mapa crepuscular.

A cidade enteada

amanhece desarmada 

e terça os braços 

contra a maré afluente. 

A cidade amuralhada

rebela-se contra os almocreves da dissidência. 

Não espera nada

 

(a não ser

a imodesta condição

de cidade centrípeta

onde todas as pessoas encontram

estuário).

 

A cidade insubordinada

ferve nas jugulares exasperadas

enquanto o sangue entardece

em forma de lava. 

E a cidade arruma as unhas

no espólio de quem se oferece,

acolhedora. 

A cidade madrasta

deixa os moradores no oblívio. 

A cidade iconoclasta dissolveu-se

no enamoramento dos forasteiros. 

A cidade

é só uma manta de retalhos.

#2061

[Crónicas do vírus, DCXXXIII]

 

E sentimos

sem pré-aviso

o corrimão a fugir sob a mão.

1.7.21

Granito

A matéria perdida:

subsídio da alma

que parte em demanda

de inventário. 

A janela do tempo

agiganta-se nas palmas das mãos

entre as cadeiras desarrumadas

e o diligente critério interior

que desorganiza as coisas frívolas. 

Não é de tempestades

que fala o corpo;

é de paisagens emolduradas em frações do sangue

como uma escultura partida em partes. 

Pudesse a memória

lembrar-se do futuro;

pudessem as palavras

ecoar o nunca desdito;

pudessem os muros caiados

ser as páginas de um livro sem autor;

pudessem as noites

traduzir o oblívio 

– e as juras 

deixariam de pertencer aos arrependimentos

absorvidas pela saga 

da simplicidade. 

Não

não me curvo perante a angústia

nem quero saber minhas

as lágrimas que cimentam o chão sem prumo. 

Na espiral dos dias combustíveis

terçam-se as fragilidades

contra os mastins sem rosto. 

Não serão deles os sonhos vindouros. 

Não serão as comezinhas farsas

a transfigurar um céu 

onde apetece arrebatar as estrelas

fazendo do olhar ávido

o suor 

que arrefece os deificados por equívoco. 

Não saio de onde pertenço. 

Não fujo das fraquezas que enriquecem. 

Deixo ao que não sou

a fugaz espada que se rebaixa

na obnóxia condição dos beligerantes. 

Deixo aí que não dou

as preces no idioma sem gramática. 

Em vez de avareza

dou-me à combustão da alma 

que se não gasta

e ao gosto dos oráculos 

que se esqueceram das costuras. 

Em vez da volta

prometo a partida.

#2060

[Crónicas do vírus, DCXXXII]

 

O direito de admissão

ainda reservado 

à periferia do que somos.

30.6.21

Tautologia

O maior mentiroso

era o detetor de mentiras 

– segredava a metáfora, 

toda porteira,

ao bispo da província. 

O cura,

sem saber do paradeiro 

da rosa-dos-ventos,

deixou de saber

a quem conferir indulgências.

#2059

[Crónicas do vírus, DCXXXI]

 

Estado de negação

ou apenas 

administração de risco?

29.6.21

Braço de ferro

À parte as partes em parte incerta

ninguém obcecado pelos marcos geodésicos

ninguém se propunha para estafeta dos ideais. 

Pois havia gente a aprender a liberdade

como gente estava inventariada

a prender a liberdade. 

As horas estavam em saldo

para atribulados inestetas de tiranias,

uns absolvidos pela ignorância que os embacia

outros mordendo 

com deleite

o lábio das desliberdades. 

A paisagem estremunhada

tinha agora vastos baldios 

adubados por orações em nome da glória pátria

ou por ódio visceral a toda a moeda,

considerada má. 

Às narinas assomam ventos pútridos

exsudados por diáconos só com estola

mas sem corpo. 

Os acólitos bolçam

imponderadamente

a dogmática que traduz a farsa das liberdades. 

Preferiam mercá-las

como má moeda dos promitentes 

conductores. 

Que mal não lhes faça a História

quando sobre eles cair

em pétalas apodrecidas de memória futura.

 

#2058

[Crónicas do vírus, DCXXX]

 

A peste reinventa-se

dois passos à frente de nós.

28.6.21

Sela

Estendo as mãos 

no colchão onde se antecipa a noite. 

As ruas arrefecem na ausência que se abate. 

Depois da voz distante

a lareira enche-se de rostos furtivos

e os garfos orquestram a claraboia baça. 

Se ao menos os olhos não mentissem;

se os corpos não fossem fugitivos

e os verbos não fossem danças arcaicas;

as varandas ensolaradas diriam ser ficção

ao falarem dos degraus antecedentes 

– e os animais não seriam a sua margem do medo

na bestial confissão do Homem animalesco. 

 

A razia entre os beligerantes

seria a caução da paz. 

A espécie seria procuradora de um agradecimento,

o primeiro por extinção de uma espécie

dentro da espécie. 

 

Os sonhos ainda não pesam como ónus. 

Deixem os poetas investidos nesse ministério

e as causas perdidas viram o jogo do avesso. 

Os ossos fundeiam no palco fundente. 

Já não há olhos tingidos de lágrimas

e mesmo que houvesse

seriam lágrimas de júbilo,

a celebração mais alta dos sonhos inviáveis. 

As páginas datadas não o desmentem. 

As palavras são escolhidas a dedo

amamentadas no úbere dos poetas,

os angariadores das flores disfarçadas

de estrofes

o ar desfeito de impurezas

que vem ao regaço dos ávidos do mundo completo.

#2057

[Crónicas do vírus, DCXXIX]

 

Montados num carrossel

a excitação do apogeu

apenas

como pressentimento de um baldio.

27.6.21

Rearrangement

Dreams come true.

Dreams

come true.

Dreams come

true.

#2056

[Crónicas do vírus, DCXXVIII]

 

Uma obra

constantemente

inacabada.

26.6.21

#2055

[Crónicas do vírus, DCXXVII]

 

A antropologia do futuro

é estarmos sob suspeita.

#2054

[Crónicas do vírus, DCXXVI]

 

Outra vez:

a locução

que não podemos

desaprender.

25.6.21

#2053

[Crónicas do vírus, DCXXV]

 

O diadema da marcha-atrás

como avesso

da precipitada marcha à frente.

24.6.21

Contas de cabeça

Não conto

nos contos mais fartos

nem conto contar

os contos heróis.

Pois os heróis

não os tenho em boa conta

e das contas que faço

no resgate do tempo dizível

conto os desembaraços

que dispensam heróis.

Em conta devida

conto as contas sem rosário

antes que rosas outras

sejam o conto do meu fadário.

Estas são

as contas de cabeça

enquanto ela se lembra

dos contos de que fui conto.

#2052

[Crónicas do vírus, DCXXIV]

 

Ponha-se o azul no céu

um azul iridescente

só para fazer de conta.

23.6.21

Páginas tantas

A páginas tantas.

Tantas.

A páginas.

Às páginas.

São tantas.

Mas não tontas.

Há páginas,

tantas.

A página.

Uma página avulsa

e a tanta tinta nela apensa,

a morada das palavras.

Tantas páginas

e etc. e tal:

Quantas páginas

foram aos olhos

seria o inventário

que desembaraça os noviços.

#2051

[Crónicas do vírus, DCXXIII]

 

Sinais dos tempos

(que se mudam):

o princípio geral

do assalto às narinas.

22.6.21

Chave de fendas

Partiam-se as portas

nos despedaços de outrora.

 

Eram as mãos

então derruídas

a coabitar a fortaleza da alma.

Queria a desmedida das montanhas

o ruído assombroso das falésias

o ciciar dos verbos quiméricos;

queria

povoar com a fala

as páginas enferrujadas pelos estilhaços

sem recusar o vento de estibordo

sem calejar a pele então tatuada

pela impureza.

 

Dissessem o que dissessem

entre as luas amarrotadas

e as mangas de uma camisa por engomar.

#2050

[Crónicas do vírus, DCXXII]

 

Parece

que jogamos

à roleta russa. 

21.6.21

Jogos olímpicos

Um capataz persegue o remoinho. 

Mordisca a boca

pode ser que se encha de forças

que do caudal não se esperam tréguas. 

Um mecenas pergunta pelo obelisco. 

Arrisca uma tenência abastada

numa instalação prometida

na imaginação decadente do artista. 

O faroleiro perde-se na insónia. 

Os navios esperam que a insónia se demore

que a tempestade nascente promete

um mar furioso. 

O estroina não sabe o que fazer com o tempo. 

Na orla de cada minuto

boceja o espaço desarrumado pelo seu nome. 

O mendigo desaprova o bulício matinal. 

Deitou-se nas altas horas da madrugada

e resmunga contra a pressa dia ocupados. 

O guarda-freio traz muitas histórias a tiracolo. 

Espera-o mesa solitária

e os fósforos que ajudam a passar o tempo. 

O campeão detém-se à frente do espelho. 

Ainda não percebeu

a derrota da antevéspera. 

O erudito 

inebriado com o produto da sua erudição

trepa as paredes com a exultação de si mesmo:

pergunta ao espelho

(que responde pelo seu nome)

se há alguém mais erudito do que ele. 

 

(O silêncio transtorna-o

e ainda não é desta que sobe 

à cátedra do ministério.)

 

O velho sente a falta do baleeiro. 

Arrasta a melancolia nas tascas do lugarejo

perante a indiferença dos ausentes. 

O homem sisudo

imerso na observação dos outros

convoca um prolífico rol de juízos morais;

ignora

que não lhe foi encomendada a empreitada

e que devia

antes 

mergulhar no poço fétido

onde não pode fingir o seu próprio espelho. 

O polícia

em segredo

ajuramenta a anarquia

sem desminar o magma que o domina. 

O patriarca comanda as tropas. 

Precede-o a autoridade da casta

testemunhada pelos confrades. 

 

(Um grupo precisa de um guru 

– o patriarca esconde-se da palavra “líder”).

 

O porta-voz de sua excelência

declara

com as vírgulas todas no lugar 

e a gramática obedecida

que os súbditos são súbditos de vez. 

Os súbditos

amestradamente

agradecem. 

 

(E ninguém percebe

como tolos foram arregimentados

na menoridade.)

 

Os capatazes deixaram de ser capazes. 

Diagnosticaram

uma degenerescência incorrigível

o lugar à mesa dos descamisados

que esperam ter nada 

quando o tudo está à mão de semear.

#2049

[Crónicas do vírus, DCXXI]

 

Quando uma centelha acena

outra torre de babel 

se agiganta.

20.6.21

#2048

[Crónicas do vírus, DCXX]

 

Paga-se

em juros negativos

a usura da impaciência.

19.6.21

#2047

[Crónicas do vírus, DCXIX]

 

Fomos pródigos

na polinização da gleba.

Somos servos

outra vez.

#2046

[Crónicas do vírus, DCXVIII]

 

Um certo sabor a déjà-vu

ou a persistente incapacidade

para aprendermos.

18.6.21

Estrada nacional

Cicatrizes em hibernação

na combustão do esquecimento. 

Retiram-se as costuras aos verbos

e ficam só os nomes 

a arcaica compostura dos distintos. 

Se os minotauros não fossem magros

tomariam aos fantasmas o lugar. 

Mas as janelas baças

escondem o puído do dia,

talvez por ser tardio. 

A carne exposta

entrega-se aos espelhos suados. 

Em convulsões,

desenha o poema furtivo

na praça onde se põem

em todos os entardeceres

as glicínias apalavradas. 

No esteio largo dos homens sem medo

a pele torna-se o magma esperado. 

O sono

pode virar a sua página.

#2045

[Crónicas do vírus, DCXVII]

 

Já não sabemos

quem são os bombeiros

e que são os pirómanos.

17.6.21

#2044

[Crónicas do vírus, DCXVI]

 

Novos, 

os passaportes

para desimpedir

as fronteiras da peste.