[Crónicas do vírus, DCLX]
A peste
em vias
de recolher
as balas.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O gelo senta-se na memória
converte as mãos em sílabas cortantes
e os corpos ululantes envergam
uma fala singular.
Levo o fogo perene
às costas da montanha;
não sei se é lava o hálito dos velhos
se as viúvas choram a solidão como conforto
se os cães vadios não têm fome
ou toda a roupa é inútil para abrigar o medo.
É o piano que fala agora.
Tudo o que diz é ímpar na pureza
cais que dançam em uníssono com as ondas
e um magistério de desinfluência
que assalta os viciados no poder.
Podia ser a água tépida
mesmo no meio da paisagem de gelo
a arrumar as sílabas num santuário sem morada
ou apenas eu
imerso na nudez de mim mesmo
já não contrafação de um algoz sem presa
preparado para a morada sem código postal.
[Crónicas do vírus, DCLIX]
Um salto no tempo:
no anteparo da mudança
ou na irradiação do sempre?
Escrevo de trás para a frente
a desalma sem modo
que se penhora no desmedo.
O destempo não se mede
no avesso da fala
nem a mudez se compõe
numa gramática banal.
Arranjo as flores arrancadas ao crepúsculo
e noto
que o crepúsculo ficou amputado
e só lhe fica bem.
Escrevo
de trás para a frente
e não é por medo:
oxalá fossem os lutos
a muralha modesta dos farsantes
e das suas lágrimas não tresmalhadas
sobrasse
o frágil fermento dos fortes.
Os tolos
enganam-se
com colos
antes que sejam
bolos
na paráfrase de seus miolos.
Os boémios
não sabem o que são
proémios
e a meio do caminho juntam-se
aos prémios
antes que os forcem a ser abstémios.
Os videntes
tropeçam em baças
lentes
antes que da próxima profecia
os dentes
se partam por serem mitómanas mentes.
Os famosos
tão feericamente efémeros
levados por invejosos
a meio da peleja com a catadura
dos delituosos
em pária condição dos efemeramente fogosos.
Os ufanos
rejeitam
os maus panos
que de fazendas se fazem entendidos
nos canais insanos
onde regozijam com os deletérios arcanos.
Intimo o deus da vontade a falar.
Não espero arranjos a meu favor.
A espera não será civilizada.
Os brutos verbos amontoam-se
numa rua com o chão encardido,
como se estivesse minado.
Intimo o deus da vontade a falhar.
Sempre foi minha ambição
estar ao nível de deus.
Bebo
a maresia
dos teus olhos
na manhã remota.
Nado
no nevoeiro
dos teus cabelos
entre os lençóis vagos.
Respiro
os verbos
selados pelo teu corpo
no jardim efémero.
Anoiteço
a aritmética
nos teus sonhos
sob a vigilância da lua.
Parto em vantagem.
A algibeira recheada de alma
no desfiladeiro onde se desfazem
os medos.
Parto em vantagem:
pode não ser modo de o dizer
na folhagem varrida pelo vento
que se arquiteta no chão cansado;
mas digo-o sem disfarce
depois de exorcizadas as farsas
que se alardeavam no céu sem estribeiras.
Depois mando notícias
sobre a vantagem
de partir em vantagem.
Não são os cães vadios
que mordem nos parapeitos da noite.
Não são os peixes sem nome
que anoitecem as areias da praia.
Não são os que procuram redenção
que glosam o livro das profecias.
Não são as viúvas enlutadas
que possuem as sílabas claras.
Não são aspirantes à fama
que falam com a língua desembaciada.
Não são as luzes esforçadas
que colonizam a noite baça.
Não são as vozes mortificadas
que ladram o dia em glória.
Diziam ser a trigonometria dos párias:
a misantropia consagrada
imersa numa coroa de hibiscos dourados
e o verbo que contaminava as águas puras
enquanto se apressavam
na estatura que ninguém gostava de ter.
Na equação entravam insultos,
o ostracismo indolor
e uma convocatória para a solidão.
Os párias
não precisavam de negociar
com esta trigonometria.
Eram os seus infatigáveis percursores.
O poema forma-se no corpo insubmisso.
Não se esconde do crepúsculo
onde capitulam os fracos.
O poema
é a redenção dos que não têm armas
a beligerância que se atesta em metáforas
o vinho raro na colheita da alma.
Fala sem tutor
na fila onde desmaiam
os da voz empenhada.
[Crónicas do vírus, DCXLVII]
Não se sabe
se a cortina foi levantada
ou se, descida,
anestesiou o palco.
A tempestade acolhe o texto
nas horas matinais.
Ensaiam-se os verbos nórdicos
a julgar pela esquadria das árvores.
A propósito do cio dos elementos
o medo não é a melhor medida.
Sobrepostos
os braços sem identidade
fundem-se na espera.
Quando a tempestade embaçar
a tarde pode fazer ouvir
a sua voz.
Atiro palavras ao dia
e não espero que o dia
seja recíproco.
As sílabas sobem
métricas
à boca.
Dispõem a moldura
das metamorfoses
na antítese
do mosto que se reproduz
no tempo indiferente.
Recolho as palavras
na rede
deixada ao largo dos olhos.
Empresto-lhes o silêncio
que as tutela
no jogo dos sentidos.
As cordas dos violinos
amanhecem por dentro da boca.
Avistam o pecúlio maior
e o suor não o desmente.
A janela traz a manhã sentinela.
Em vez do silêncio
um rumorejo destina-se em estrofe.
Por dentro do ciciar ao longe
as vozes fundidas
no estaleiro a que damos
os ossos.
[Crónicas do vírus, DCXLV]
Capitulação:
rasuramos do presente
a seiva vivente
de que somos feitos.
Os segredos
escondidos
pelas copas das árvores:
em cada tiragem do sol
a maresia decantada
pelos ramos;
haveria um dilacerado bocejo
se não fossem tão rotineiras
as rotinas que assim se apresentam.
Há quem diga
que aquelas árvores matrizes
são um ponto cardeal;
o antídoto contra a matéria flácida
que contamina
os dias.
Às vezes
as páginas ensinam a simplicidade.
Aprenderam
com as árvores irrelevantes
que estão no centro do mapa.