[Crónicas do vírus, DCLXXVI]
Legados da peste (3):
a consciência
da nossa imensa
fragilidade.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Nunca souber dizer
por que o ministro dos negócios estrangeiros
é ministro
dos negócios estrangeiros.
Se a diplomacia não é
se não
uma pedra no sapato dos negócios
e se os negócios
(no estrangeiro ou fora dele)
transbordam a diplomacia,
continuo sem saber
se o ministro dos negócios estrangeiros
não é apenas
o ministro do fingimento
o ministro que terça a hipocrisia
entre as nações
o ministro que disfarça ressentimentos
atrás do biombo da semântica
o ministro da propaganda das virtudes pátrias
o ministro cuidador das dores de alma.
Um ministro
oximoro.
[Crónicas do vírus, DCLXXV]
Legados da peste (2):
dois passaportes,
pois as fronteiras
passaram a ser internas.
Não sou de escrever as memórias.
Não sei descrever as memórias.
Não sei do paradeiro do passado.
Mas sei-me presente
no tempo que é presente,
a menos que o fingimento
seja a luva que cobre a minha mão.
Não olho nos interstícios do devir.
Não sei calcular o tempo
que não conheço.
Não sei quantas sílabas tem o amanhã
ou se vem tingido e de que cor.
Não sei da linhagem dos versos
que notificam o futuro.
Não saberia
sequer
imaginar as memórias do porvir
por mais mnemónicas que calhasse na maré.
Espero em espera
com a paciência desembainhada
recebendo com hospitalidade
a silhueta do tempo andante.
As memórias
são a confirmação
de uma ausência.
Escrevo as escadas
com as minhas mãos
vertendo as palavras carisma
no ato não doloso da confiança.
Vejo nas escadas
o que o horizonte esconde
e dos meus dedos sobressaem
as flores que mobilizam o magma
no estio que não dói
na dor que se veste do avesso
até que das escadas cimeiras
proclame
a minha intensa dissidência.
A prateleira
não é onde se posterga
o passado.
A prateleira
é onde se tirocina
o futuro.
O que se penhora
nas dádivas que confiam
nos eremitas impensáveis?
A geografia da alma
não aprende com o caudal matinal.
Se em vez de um idioma sem voz
falasse por palavras brancas
podia tomar em mãos o dicionário
e fazia com que o dia fosse pecúlio.
Sei que o aluvião arroteia o rosto cansado:
o entardecer arruma as impurezas
e os olhos ensinam a lucidez
que não se aprende nos manuais.
As flores atiram-se contra a maré alta.
Transigem com os nós de espuma
que a nortada ensaia,
enquanto as peças do puzzle se insubordinam
na levedura da noite.
No tribunal do esquecimento
traduzo as cicatrizes da alma
(as minhas,
que as dos outros me são desconhecidas).
O céu entediado
responde com o acobreado que pressagia
o crepúsculo.
Por dentro do torpor,
o olhar diluído no horizonte,
ouço o magma que crepita
nas profundezas.
Pergunto
se sou eu
o compositor do devir
ou se me devo cingir
à resplandecente indiferença.
À minha volta
um cerco de palavras
desarruma a gramática.
Tomo por fundo
a aviltante grandeza ostentada fora de mim
o astucioso desfazer de armas
em que sou pária.
Se soubesse costurar a desfala
atirava as fotografias havidas
para o panteão das desmemórias.
À falta de melhor
conto as páginas
do calendário.
[Crónicas do vírus, DCLXX]
Desafinados ainda,
os violinos
resgatados do bolor
do crepúsculo demorado.
Não era a página que rasurava;
era o vértice das palavras
que em si eram vertidas
o lamento fraco na dobra da folha
em juras
que não remediavam o despassado.
Conseguia beber o vinho à prova
de um trago só;
não aproveitava o verbo pueril
que ele desconhece esse verniz.
Em vez de uma tardia censura
traduzi os remorsos
através das vírgulas que depunham
a meu favor:
eram repetidos os clamores
mas não tinha a feição dos seus penhores
não conseguia deles fazer inventário.
À margem,
como em laterais rodapés,
perseguia a franqueza que se escondia
do rosto da página.
Será que diria:
oxalá estivessem a consulta pública
os rodapés laterais
que se escondem
sob minha custódia?
Serpenteia o rio
cavando as encostas.
Ninguém diga
que amestrada é a paisagem;
é feita de convulsões sucessivas
como se a alvorada tivesse sido corrompida
por deuses anónimos,
deuses impreparados na arte cénica do belo
deuses párias
que se esgotaram na emblemática
sopa servida aos de espírito desavençado.
Prostrado por tanta paisagem fidalga
sinto o corpo transido
e ele próprio
desamestrado.
[Crónicas do vírus, DCLXV]
É comovente
o esforço de muitos
(donos de espaços dançantes)
para salvar o Verão.
Não consta
que o Verão tenha pedido
para ser salvo.
Procuro a minha ausência
nesta casa fortuita
onde o arco-íris se depõe.
Procuro
a ausência que de mim medra
nos contrafortes da cordilheira setentrional
enquanto instruo os olhos
na omissão.
Procuro
o que da minha ausência
sobra de mim.
Pode ser que seja de mim
a foz que se promete
ao mar de fundo.
É a pega
que agarra o mundo
pelos seus deslimites.
O santuário onde se respira
o ar que não tem janelas.
O encantamento
com o sangue ávido
que transborda as fronteiras do corpo.
O cais onde se agarram
as mãos que já não são trémulas.
Os lábios devolvem as sílabas
à medida do caudal que se congemina,
estrutural.
Que as árvores estão pendidas
sobre o pensamento diuturno
é a legenda que se arrasta em rodapé;
não serão os serões acostumados
à diligente insónia
que desmentem os presságios do passado;
outro tanto dirão das rosáceas
que fermentam os corpos ajuramentados,
antes que sejam apenas uma lutuosa recordação.
As mãos,
que se dizem ávidas,
recortam os atlas
por onde se materializa a voz.
São o aval da invisível consagração
os nomes por haver no tabuleiro das incógnitas
o húmus onde se inventa a fertilidade
a noite sem fronteiras.
[Crónicas do vírus, DCLXIII]
Quando nos devolverem o que éramos
teremos na mesma
duas pernas e dois braços
dois olhos e dois ouvidos
uma boca e uma pele?
O corso sedentário
transita pela cordilheira sem métrica.
Protestam contra as distâncias
e o caminho sinuoso.
Umas vozes avulsas
arrepiam o que parece umas preces.
Dir-se-ia
preces para apressar
o termo da peregrinação.
(Ou então
para se convencerem
que é má moeda
o sedentarismo das ideias.)
[Crónicas do vírus, DCLXII]
Se,
enfim,
se pressagia a liberdade,
pode-se,
então,
reconhecer o sequestro.
O vulto hipoteca-se na maré baixa.
Vozes em surdina condenam-no.
As hipóteses redundantes são marca de água.
As outrora sequelas hoje são reminiscências.
O poço ganhou um fundo.
Abrilhantou-se com as sombras furtivas.
Através delas as vozes falam versos fecundos.
O ocaso já não é uma angústia.
Levita no seu avesso as propriedades valiosas.
Fala, só por si.
Uma impressão digital ao acaso.
Sem vultos por perto.