8.3.22

Dos homens imprestáveis

O que se penhora

não tem fundo

e do fundo do vulcão

os pertences gastos fogem do periscópio

onde levita o sangue sem fala.

Temperamento colérico

nas brandas que espevitam o céu baço

cobra o preço último

enquanto a multidão coloniza as ruas

em silêncio.

As ruas servem de corrimão

aos que sem elas

seriam desamparados.

Em pose observadora,

como se fosse antropólogo,

junto as estrofes que desentorpecem a espécie

junto-as num compêndio de significados

enquanto retiro aos demónios

a albumina que os protege;

antes desprotegidos os demónios

do que por eles acossados

os inocentes.

E há inocentes?

Há verbos que se conjugam

na tumular profecia em abono dos inocentes,

ou tudo não passa da soberba

de quem dá aval a conceitos por determinar?

Dos púlpitos sem pertença

o vazio esvoaça

contundente

emasculadamente impuro.

Nos preparos

o tóxico raciocinar adere à retórica

e os lugares soam a prisões

melhor:

a navios onde viajam desterrados

que não têm cais que os queira

e por isso

talvez estejam destinados ao naufrágio.

Nunca se disse

que os eugenistas eram higienizadores.

Os palcos errantes 

somam-se à cacofonia dos eruditos.

Oxalá fossem militantes do silêncio

que em poemas seria substituto perfeito

da prosápia sem arrefecimento.

Por enquanto

o sofrimento só pertence ao dicionário.

Não se vê que seja um senão

se até os deuses advertem

com mnemónica diligentemente doutrinada

que o sofrimento não se divorcia do Homem.

A menos que hoje

por ser dia em que a mulher é celebrada

(e porque se achou apenas um dia

no imenso calendário de um ano

para celebrar a mulher

é matéria que ultrapassa a lógica)

não se diga que os homens merecem palco

pois eles 

são os procuradores máximos da beligerância

fautores máximos da impiedade 

com lugar direto ao banco dos réus

onde juízas aprumadas no escorreito manejo das leis

esperam pela vingança sem opróbrio.

Pois delas é a mitologia

e dos homens

a fé cega na marcial expropriação do tempo.

As flores que daqui se ouvem

Queria voltar a ser criança

só para dizer

que queria ser forasteiro 

quando fosse adulto.

O sonho maior

era sair sem mapa 

que me pudesse ensinar 

um destino.

#2322

[Crónicas do vírus, DCCCXCIX]

 

Legados da peste (210):

Diríamos

redenção

se tivesse havido

pecado.

7.3.22

Nervo

Falo da metáfora

que se aviva 

na limalha do ocaso.

 

O crepúsculo macilento

é refúgio dos sortilégios,

e a fala 

debate-se com a vertigem

arrancada ao precipício da noite.

 

Falo por metáforas

que o medo de ser entendido

fala por cima.

#2321

[Crónicas do vírus, DCCCXCVIII]

 

Legados da peste (209):

O irrisório dano da peste

comparado com o dano 

que o Homem pratica 

em si mesmo.

6.3.22

Lacunar

É no avesso da alma

que sabemos

do sal do sangue.

4.3.22

Postal desilustrado

Deslembrado

o lastro em que assentamos

sobramos como desmemória

ofensores do futuro

párias em sangue próprio.

 

Às vezes pressinto:

a humanidade 

não é digna de si mesma

não sabe dar conta de si

e merecia extinção.

#2320

[Crónicas do vírus, DCCCXCVII]

 

Legados da peste (208):

O tempo hibernou

e agora

cuidamos do degelo.

3.3.22

Carta de gangster

Se pudesse ao tempo ordenar

para meter marcha-atrás

só para ser revisor dos planos pueris

 

(o que queres ser em grande?)

 

para me ajuramentar

futuro gangster

e das juras sina tornar

para 

em grande

andarilhar de estepe em estepe

a fazer de Robin das estepes

mas virado do avesso

e contra os justiceiros desembainhar o coldre

julgando-os na ponta da arma

por mitomania compulsiva

logro militante

e oportunismo sem desculpa. 

#2319

[Crónicas do vírus, DCCCXCVI]

 

Legados da peste (207):

Com vagar

a tela em que somos tecidos

desabilita-se das caricaturas que fomos. 

2.3.22

Mar & cia., lda.

Soube do mar

pela janela 

que subia pelo luar. 

 

Jurei 

que o mar

não seria penhor

da solidão. 

 

Havia dias,

dias tempestuosos,

em que o mar e eu

partilhávamos a solidão. 

 

Era capaz de jurar

que o mar traduzia

os meus avulsos pensamentos

a julgar 

pelo tumulto 

deixado 

em memória futura.

#2318

[Crónicas do vírus, DCCCXCV]

 

Legados da peste (206):

As almas segredam 

no mapa dos rumores,

resgatadas ao exílio inconsciente.

1.3.22

Correria

Correria num estreito labirinto

na correria desenfreada de quase todos

e nos lampejos de loucura

desenharia a lucidez desamparada

contra os fulgurantes sábios de si mesmos.

E na desalinhada pele destatuada

diria os versos arrancados aos ossos

por dentro de um limite sem marcos geodésicos

ou balizas estertores.

Correria na correria de um só

no plúmbeo areal escondido das esquinas 

afocinhadas no braço

e de resto

contra todas as probabilidades

daria conta das contas sem conta no fim.

Depois da correria

diria ao corpo cansado

para se exilar nas paredes húmidas da noite

onde o luar se engana com tolos

e os versos tropeçam em páginas preenchidas.

Até a correria ser parecida

com um moinho de vento

e às sereias alinhadas no cais

vozes de vultos fossem avoengas prescrições

contra os impropérios da distração.

#2317

[Crónicas do vírus, DCCCXCIV]

 

Legados da peste (205):

Contra os dias soterrados

a avalanche que deixou os rostos

submersos,

a memória do futuro.

28.2.22

#2316

[Crónicas do vírus, DCCCXCIII]

 

Legados da peste (204):

A corrosão 

deixada em destroços

a tempo de ser invalidada.

27.2.22

Hora adiantada

Somos

a fatura

do medo.

 

Somos 

– em terrífica dilação – 

astronautas

do desdesejo.

Párias,

amiúde,

na imunda contrafação

o leite pútrido

que nos fermenta

em sistemática negação.

Somos

pátrias gastas

funestos zeladores de nada

coldres gastos

ardendo na lava sem gasto

alpinistas a fundo

procuradores do desmedo

traduzido 

em tresloucado verbo.

 

É do medo

que levamos

esta fatura

em futura expedição

nos compêndios legados

na armadilhada faca

que desfeita o porvir.

 

Falamos

o idioma do medo

e no medo

consumidos

arrefecemos o sangue

deixamos de ser 

promessas vindouras,

murchados.

#2315

[Crónicas do vírus, DCCCXCII]

 

Legados da peste (203):

No acerto de contas

com o tempo de chumbo

quanto de nós

é matéria já diferente?

26.2.22

#2314

[Crónicas do vírus, DCCCXCI]

 

Legados da peste (202):

Reconciliação

com a parcela forçada

ao fingimento.

25.2.22

#2313

[Crónicas do vírus, DCCCXC]

 

Legados da peste (201):

A peste

como rastilho

da loucura.

24.2.22

#2312

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIX]

 

Legados da peste (200):

E ainda 

ninguém inventou

uma vacina contra guerras.

#2311

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXVIII]

 

Legados da peste (199):

Nunca 

como hoje

dizer que caiu a máscara

teve boa aceitação.

23.2.22

Ouro sem preço

Procuro 

na tua pele

agasalho. 

Entendo

as cores do mundo

pelo teu olhar. 

Sacio

a sede

no teu suor vertido. 

Amparo

a angústia

no teu manancial. 

 

Revejo

o porvir

nos versos

da tua fala. 

 

Armo-me

da alegria

que esparges. 

Encerro

num mar sitiado

demónios contumazes.

 

Cresce

em bandeiras sem algemas

a gramática

do prazer. 

 

Amanheço

no desembaciado lugar

que ofereces 

em deslimite. 

 

Traduzo

na boca sem peias

a paga merecida. 

Tomo

no teu corpo

a ideia de mim. 

 

Concebo

o atlas

na página de rosto

da tua pele.

 

Desenho

o idioma particular

que entrelaça.

Procuro

num relógio a ouro

o tesouro de teu nome.

E sei

que o ocaso

não se furta nas mãos.

#2310

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXVII]

 

Legados da peste (198):

O reconhecimento facial

a caminho de ser restabelecido

como idioma oficial.

22.2.22

Acentuado aquecimento a destempo

A tempo do destempo

os nomes costuram as suas profecias

no hesterno troar que encontra manancial. 

Se dizem

que amanhecem as palavras

é porque a fala não se sitia

na mudez dolorosa

e através delas o corpo refaz-se

na aritmética dos melhores imperadores. 

Não é a escuridão impante

que disfarça os medos. 

O corpo não foge das convulsões:

acerta contas

de frente

corajoso

antes que o anoitecer faça do dia terminal

um outro esquecimento.  

#2309

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXVI]

 

Legados da peste (197):

Eis a autofagia humana

a refulgir:

mal despachada a guerra da peste

e já há outra beligerância a bater à porta.

21.2.22

Clímax

Não conto impérios

no remanso das mãos impuras

nem são meus os magistérios

que definham nos mais altos curas. 

 

Se as mãos a convulsão chamar

e nas pedras chãs fizerem morada

direi de o porvir ser incerto como o mar

vocabulário hasteado em luar emparedado. 

 

E depois em tardio ocaso

regresso ao moroso parapeito

com as estrofes seguidas ao acaso

nesta desambição do perfeito.

#2308

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXV]

 

Legados da peste (196):

A reminiscência

da tela a preto de branco

como marca registada

de um pesadelo.

20.2.22

#2307

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIV]

 

Legados da peste (195):

Tribos em reabilitação

desfilam com a coroa da vaidade

de quem desafiou o infortúnio

e trouxe a glória à lapela.

Azulejaria

Não doa o pregão

na comandita de um perdão

as vozes anotadas no caderno milenar.

 

Não soa o bordão

na vitualha de um trovão

a pele desimunda no soalho exemplar.

 

Não voa o bastão

na heráldica de um quinhão

o sangue esfaimado na penumbra ocular.

 

Não coa o estradão

na posse da sofreguidão

a fala falsa que amansa no dobrar.

#2306

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIII]

 

Legados da peste (194):

Emancipamo-nos de prisões

– a ditada pela peste

e a outra

que vulgarizou sonhos de mandantes.