[Crónicas do vírus, CMXVIII]
Legados da peste (229):
Voltamos a falar
de rostos
seráficos.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
A corda mansa
amacia o corte na carne,
assoreado na corte malsã.
A corda amansa
e na mansão acobreada,
açorado amanho a curva do dia.
Acorda mansa
na mansarda recortada
e na coorte marca o covil.
A boca muda
sílaba forte do silêncio
bandeira apessoada
no lugar de um gangue de palavras
ou apenas
o azimute do pensamento peregrino
instrumento da demorada demanda
pelo magma fundente.
A boca muda:
prescinde do silêncio estrutural
deitada sobre cadeiras de verbos
prolixa procuradora da fala
que muda a mudez centrípeta
agora orbital
num, talvez,
arroubo de despensamento
que caduca.
[Crónicas do vírus, CMXVI]
Legados da peste (227):
Um cortejo de sombras
sitia a memória do futuro.
O cortejo a esmo
sísmico mear
aproveitado pela maresia
que aos homens meãos
não se imputa cuidado mapear.
Os pesares arrumados
calam lamentos pendidos
pelas mãos caiadas de audácia
desprendida dos apesares e dos poréns
que dantes tingiam o olhar com sombras.
[Crónicas do vírus, CMXV]
Legados da peste (226):
A ferrugem
arrancada à boca,
o mosto indesejável
dos anos sem cortina.
Considere-se a varanda estendida sobre o ocaso.
De cada vez que o vento cicia
os arbustos pendem sobre o precipício
e isso faz-me lembrar vidas várias
que se convidam para o palco deletério.
Os braços não sossegam no sopé da maré-cheia
convidam os vultos a serem pagãos
sob a égide da bravura de um guerreiro limítrofe.
Se ao menos
os desensinados não povoassem o medo
e os verbos não subissem nos poros das sílabas
a madurez das folhas não as faria outonais
e seria a escotilha a avisar da chegada.
De mangas arregaçadas
os pescadores mentem as preces que os protegem
dos mares não lúcidos e das marés assanhadas.
É um pouco como devia ser com os demais,
protestam curas militantes
e crentes de variegadas cepas,
peticionando a usura das sotainas apessoadas
sem contar com os desalinhados
uns
que não se aninham a deuses e seus mandatários
e outros
que distraidamente povoam a indiferença.
Em vez dos mapas derruídos
os novos profetas convocam
as lentes desembaciadas
e desenham,
a tinta-da-china,
os olhos açorados de desempoeirados anciãos.
Já outrora se dizia
que a antiguidade é um posto.
Ninguém cuidou de inaugurar a manhã
desconvocando a penumbra ensonada
para deslembrar
que a antiguidade é só um passo
e decidido
para a decadência.
Os seniores acatam sem resistência.
Sabem do exaurido da carne
dos ossos escombros
e o despensamento atraiçoa em desfavor da maré.
Suas
são as varandas arqueadas sobre o precipício.
Despenham-se numa maresia inspiradora
enquanto resgatam
em precipitada cadência
os fragmentos representativos do estatuto
vigente.
São eles que atendem a porta
quando os demónios amedrontam os pueris.
Desmentido o posto da antiguidade
que seja consagrada
como matéria-prima que debita a estabilidade
que participa dos corsários
em tribunais sumários
contra o passado habitado
por fantasmas e medos.
A tiracolo
os velhos trazem os olhos cansados
de quem soube colher
as costuras do mundo inteiro.
Até que nas grutas da memória
sobre o vocabulário minimalista
em defesa dos sucessores que se habilitam
na vertigem de quem desacredita da senescência
os velhos aparem as unhas da mentira
e acertem contas com a anestesia geral
dos demais.
[Crónicas do vírus, CMXIV]
Legados da peste (225):
Vindimados
os anos plúmbeos
conseguimos ser o que éramos
antes dos escombros?
A aritmética da morte
é isso mesmo
aritmética
a tradição dos corpos inertes
cadáveres que fermentam
no mosto das elegias prometidas
falésias onde se despenham
vidas
vidas extintas no vendaval precoce
um passaporte crepuscular
sem visto selado por embaixada
nem requerimento à espera de ser deferido
uma aritmética
fria e banal
como banais deviam ser
as irremediáveis coisas
no andar mais fundo que a ossatura permite.
Uma aritmética
sem mais
contabilidade lutuosa
vociferação dos vivos
que protestam
em lugar antecipado
a morte que há de ser
seu paradeiro.
[Crónicas do vírus, CMXIII]
Legados da peste (224):
Corremos
atrás do tempo perdido
ou dizemos aos relógios
para repetirem a contagem?
[Crónicas do vírus, CMXII]
Legados da peste (223):
A peste ainda não partiu
e a selvajaria vem recordar
que somos o nosso próprio algoz.
O oráculo dos feiticeiros
atira o dia solitário
para o templo sem morada
e os escombros do futuro
juram que não juram nada
depois de esconjurados em devido tempo.
Se o fingimento
é arrematado à indulgência
não cuidem os prometidos escansões
de dirimir os medos
com poções enfeitadas pelos magos;
um destes dias
será o tira-teimas
e não é de esperar
que os teimosos saldem o pleito
com a coroa atribuída aos laureados.
Quanto ao demais
ficava deleitado na plateia
a assistir
ao cortejo dos adivinhadores do reino
vendo-os assoberbados
a tirar as bainhas do futuro
a partir de seus puídos oráculos.
[Crónicas do vírus, CMXI]
Legados da peste (222):
Liberdade sitiada
por os rostos
ainda não desalfandegados
de seus açaimes.
O sangue
à porta subindo
e toda a lama
portadora de almas
ou as almas
abraseadas pelo medo
extintas pelo sangue
combustível.
[Crónicas do vírus, CMX]
Legados da peste (221):
Quem fica a cuidar
das cicatrizes
da desliberdade?
Não é a contabilidade da redenção
nem um patriotismo celeste
ou a arqueologia arcana
que determina
a raiz quadrada do pensamento.
Se aos alvores
forem as mãos tentaculares
na sua sede pela sede do conhecimento
não se apostrofem as intenções assim delidas
nem
aos procuradores da angústia
se enderecem culpas;
no refúgio demandado
o travejamento das almas
encontra região demarcada
e, seja como for,
das intenções não confessáveis
não se dá conta de paradeiro conhecido.
Aos segredos
fica reservado
o lugar do segredo
sem sepultura.
[Crónicas do vírus, CMIX]
Legados da peste (220):
O rosto puído da desumanidade
dita o olvido da guerra
ainda não vencida.
[Crónicas do vírus, CMVIII]
Legados da peste (219):
Derruído o crepúsculo
ficou de atalaia
o mosto da manhã reavivada.
Como se explica
que feriado em inglês
seja dia santo
e em português
apenas feriado?
O ramo prístino
itinerante
em vez
da palavra-arremesso
e o peito nu
sem contrato
apenas
guerreiro das guerras proibidas
ou o verso condomínio
quimérico
em vez
de vendas baças
e da falésia
sem vinculação
apenas
um eu formulado
na pauta
onde vagueiam
miragens.
Cortam-se as sílabas no invólucro do medo.
A fala intumesceu
e as palavras assoaram o ranho
dos dias pesarosos e lamentáveis.
As armas falam pelos corpos.
As águas poluídas são o mosto dos dias farsantes.
O desalento levanta-se na roda-viva do tempo
à espera dos provérbios roubados
e da insídia que coloniza
a geografia dos Homens.
As cores foram anestesiadas
e até o tempo não se terça
a propósito dos arco-íris.
Temos medo do amanhã.
Temos medo
do que nunca deixamos de ser.
[Crónicas do vírus, CMVI]
Legados da peste (217):
O idioma da guerra
é o esperanto que nos cobre
de infâmia.
[Crónicas do vírus, CMV]
Legados da peste (216):
Estivemos
na boca do inferno
e agora estamos
à boca do inferno.
[Crónicas do vírus, CMIV]
Legados da peste (215):
Tomar partido
pela ética assimilada
no reatar do sangue avivado.
Um vulto esbraceja
sentado
na embocadura da voz
e diz, em matinal murmúrio,
que o pecado está de atalaia
só à espera da nossa distração.
E nós
obedientes
julgamos a matemática possível
para ao velho vulto
a vontade fazer.
E o vulto
sossegadamente
escolhe outra freguesia
que os fogos por atear
passam da conta humanamente possível.
E depois
há quem não entenda
que as igrejas
andam à míngua de freguesia.
[Crónicas do vírus, CMIII]
Legados da peste (214):
Cai a cortina da peste
e a palco
sobe a nudez da guerra.