[Crónicas do vírus, CMLXXXVII]
Legados da peste (278):
Claudicar
– verbo não albergado
na gramática da peste.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CMLXXXVII]
Legados da peste (278):
Claudicar
– verbo não albergado
na gramática da peste.
Os fósforos mostravam a cor
a um céu plúmbeo.
Vozes ciciadas
esconjuravam o Inverno,
como se as pessoas
estivessem cansadas de auroras boreais
e de campos tingidos por neve.
A paisagem caiada de branco
era tão cansativa
como a oratória minimal-repetitiva
dos camaradas do comité central
(que ainda sonham com o politburo).
Os fósforos
ateavam a claridade
onde se amontoavam as divergências.
Por fora das janelas,
uma multidão exultava
com a diversidade.
Ninguém emudecia vozes
contra a vontade das próprias.
Como pano de fundo,
uma música levemente folk.
As cordas repuxadas dos reposteiros
inclinando a claridade para dentro da casa.
Os livros nas estantes
recebiam a claridade com equanimidade.
Os livros estavam à espera
de vozes que fossem suas.
Não bolçavam estultícia,
que tantas páginas proibiam a estultícia.
Se as provações fossem entrada na equação,
os profetas das contradições de termos
teriam direito constitucional ao silêncio
(forçado).
A linhagem é outra.
Sempre fomos razoáveis
a ofertar a metade do rosto não torturada.
Não chamem a polícia dos costumes.
Não clamem
por uma contradição de termos elevada ao quadrado.
Se ainda não perdemos a peugada da liberdade,
sabemos de que lado ficar.
[Crónicas do vírus, CMLXXXVI]
Legados da peste (277):
Deixámos de ser
metáfora por dentro de uma metáfora
e somos
outra vez
uma metáfora.
Não persigo esta matança
os verbos sumidos em estrofes macilentas.
De cada vez que somam flores
protestam os capitães desleixados
nadando contra os tribunícios gongóricos
deles a acusação contra a palavra insondável
a hipérbole embrulhada em labirínticas ideias.
Em vez da fraqueza dos comuns
os aperaltados catedráticos inventam o complexo
só para serem apanhados à má-fé
na retórica retorcida
que farsa contra o entendimento.
É desta matança do verbo
que os apoderados na simplicidade
são juras vivas
curadores da fala sem espinhas na garganta.
[Crónicas do vírus, CMLXXXV]
Legados da peste (276):
Prova dos nove:
dos tentáculos da peste
ficou a salvo
um módico de solipsismo.
[Crónicas do vírus, CMLXXXIV]
Legados da peste (275):
Por tanta fragilidade que somos
não derruímos
perante o terramoto
que esbracejou a decadência.
[Crónicas do vírus, CMLXXXIII]
Legados da peste (274):
Pegamos nos estilhaços
e voltamos a ser
futuro.
A boca que se desabotoa
como beligerante sem armas
beija bocas outras
na abastada paz que se abrilhanta
no bastão dos destemidos
antes que os biltres tudo abastardem
e as bocas se abotoem de volta
e, beócias, se abespinhem.
[Crónicas do vírus, CMLXXXII]
Legados da peste (273):
Os rostos
em vagaroso processo
de re-significação.
O poema que morde
calado que seja o sacerdote altivo
e jura
nos olhos marejados que seja
pelo futuro onde esbracejam,
mortiços,
os braços embaraçados.
E de uma casta apurada
seja casta a ideia desembainhada.
[Crónicas do vírus, CMLXXXI]
Legados da peste (272):
Ainda há espelhos
que teimam,
embaciados por máscaras.
São estes dados
certeiros
o desfecho pungente no magma convulsivo
dilacerando os despojos ora arrumados
pacientemente.
Às árvores da Primavera estiolada
não deixemos os braços caídos
no pendor assintomático do verbo mortiço.
Aos primos sem sangue
os avalizados embaixadores do nada
os temerários salteadores sem nome
aqueles foragidos de cemitérios a destempo
os tribunícios de fala escorreita, e solitária
paguem-se
honorários pelo silêncio
a fecunda fala que esbofeteia o idioma órfão
enquanto se espera
que a maré combine com o sol vetusto
e o vento seja sinónimo de espadas cortantes
os corpos trespassados na sua inteireza
até que deles fiquem estilhaços
em forma de alma sem tamanho.
A voz do vulcão
ao colo nas veias tumulares
no atroz congeminar da claridade.
Descomeçam os inviáveis penhores
lagares de angústia deixados órfãos
enquanto se prepara a alvorada.
O desempate das teimas
é jogado na planura onde se enfeita o fértil
e em dez estocadas nos profetas
se deixa um oráculo em seu devido estatuto.
Sobra nas mãos o úbere abundante
sem manual de instruções
apenas
a visível imagem
de um avesso oculto.
O risco de acreditar
na própria sombra
é proporcionalmente inverso
à pujante ilusão de si mesmo.
Nas equações que se terçam
os algarismos dançam sem mapa.
Se a altivez não sorrisse desmedida
o dicionário era capaz de recuperar
a humildade.
[Crónicas do vírus, CMLXXVIII]
Legados da peste (269):
E agora somos
a explosão de nós
desde o promontório
que selou a liberdade.
O prontuário
de manhãs sem nome
sobe nas bocas desassisadas
e compõe
o terno inventário da coragem.
Servirá
em generosas talhadas
o medo antecipatório
que das mãos aguadas
retira os verbos invencíveis.
[Crónicas do vírus, CMLXXVII]
Legados da peste (268):
A queda do açaime
é liberdade exercida em dobro:
uns aliviaram-se da opressão
outros mantêm o direito de o usar.
Sault, “Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=-5OzNTZystM
O sonho que cicia
na fronteira do ouvido
harpeja o crepitar da lareira
sem que da angústia contumaz
o dia tenha entendimento.
Os degraus movem-se
verticais
à medida que os dedos caiam
a silhueta da enseada.
Ouço palavras atropeladas
espanholadamente atropeladas
num grasnar singular
e o barco promete-se ao mar alto.
E quem não tem as suas enseadas?
Pergunto-me
silenciosamente
omitindo o bramido deslimítrofe
arrumando as cortinas que retesam a claridade
se as enseadas não são privados exílios
ocultando a multitudinária fala gongórica.
[Crónicas do vírus, CMLXXVI]
Legados da peste (267):
Tremenda é a empreitada
de que somos
únicos capatazes.
[Crónicas do vírus, CMLXXV]
Legados da peste (266):
Caíram os açaimes,
longa vida
à beleza e à feiura!
O tratado das coisas
envergonha compêndio
de páginas amarelecidas
embota o rugido das feras
na sincronia das falas sem dicionário.
Trago tratado o dilema
e sem bolçar a digestão dos tempos
arremeto as cores contra o silêncio
neste lugar
que está entre mim
e um outro eu sem paradeiro.
Azulam-se as abóbadas do olhar
em acetinadas colheres que bebem o mar
e no provérbio que dá de viver às almas
arrisco uma vírgula a destempo
arrisco o deleite do provérbio despedaçado.
As coisas tratadas
desembaraçam-se em páginas avulsas
páginas ainda luminosas
dando corda ao mutismo dos timoratos
na divergência das oratórias maduras.
[Crónicas do vírus, CMLXXIV]
Legados da peste (265):
Tudo
não passou
de um pesadelo
que se demorou
numa passerelle encarvoada.
[Crónicas do vírus, CMLXXIII]
Legados da peste (264):
As pessoas
ganharam
(e de vez?)
vergonha na cara.
[Sobre os efeitos duradouros do açaime]
Passei por um autocarro
ia para “Sonhos”.
Não sabia de um lugar
que dá pelo nome de sonhos,
o que ditará
de seus habitantes
serem sonhadores.
Sem nenhuma altercação do pensamento
nem figuração de fingidores a preceito.
Se a alguém
forem visitação assídua
os pesadelos
aconselha-se
temporada nos sonhos
para os habilitar
em detrimento dos pesadelos tentaculares.
Estou convencido:
os antepassados deram nome de sonhos
a este lugar
para um exílio haver
para os fustigados por pesadelos.
[Crónicas do vírus, CMLXXII]
Legados da peste (263):
A comédia
torrencialmente precipitada
sobre a angústia.
Peçam
uma lavagem cerebral
um imorredoiro compêndio de instruções
semáforos diligentemente semeados
em todos os cruzamentos
instruções sobre como ser e atuar
e até como devem proceder
quando as hormonas convidam ao sexo.
Peçam
regulamentos e leis e posturas
e decretos-regulamentares
e uma miríade de regras minuciosas
todas as possibilidades da vida
tatuadas no sortilégio do dedo regulador.
Peçam
para haver regentes em vez de pais
(ou regentes substituindo-se aos pais)
obediência religiosa a uma bandeira
educação meticulosa pelos mestres de escola
dando seguimento à bitola das autoridades
e peçam, ainda,
para as autoridades não se esquecerem
da exibição do poder de império
substituindo-se
a páginas tantas
por autoritários
(que o povo madraço adora “pulso forte”
como se fosse preciso
para um qualquer onanismo místico
que cavalga no poder dos regentes).
Peçam
para tutelarem eufemismos
que escondam farsas bem disfarçadas
e, ato contínuo,
atirem toda a areia do Saara para os olhos
até que a capacidade de inteleção dos súbditos
fique presa por arames.
Nesta altura
não se esqueçam
de pedir
o boletim de voto
e repitam
de preferência,
todo o antecedente.
[Crónicas do vírus, CMLXXI]
Legados da peste (262):
A pedra sobre o assunto
é à prova
de estilhaços?