16.12.22

#2621

O tempo

mentiu

aos meteorologistas.

 

[Arqueologia de uma tempestade imprevista]

Não venham tarde os dirigentes do nada

Coloquialmente

o vento fala com os dentes todos

mostra as unhas propositadamente por tratar

como se ensinasse

nos ensinasse

que a descivilização é que compensa. 

 

Insistentemente

gatos com cio arrancam um fio à noite

lutam entre eles

masculinamente marcando coutadas

mesmo sabendo

que não será em vão a espera. 

 

Propositadamente

afiam-se as facas

que a peleja pugna pelo sangue

desejavelmente o dos outros

que o próprio é alérgico a agulhas

que é o mesmo que dizer

só admite a batalha

se a der como vencida à partida

(se não, tomem-no como contumaz). 

 

Idilicamente

o corpo enamora-se nos socalcos da noite

abraça-se a um seu congénere

cuidando de saber diferente do seu o género

e no feixe de luzes que se poetiza

sente o epílogo como campo de batalha

mas redime-se dos pesares

e proclama

oxalá as batalhas fossem com estas armas,

como estas armas,

e o sangue tivesse nome 

noutra seiva.

Injustiças indocumentadas (53)

[Resposta a injustiças indocumentadas (52)]

 

(Na volta

o diabo é deus 

em pessoa.)

#2620

Para não deixar oxidar 

a relativização de tudo:

há as mentiras boas

(dizem: piedosas)

e as boas mentiras

(dizem: periciais).

Injustiças indocumentadas (52)

Deve ser 

uma grande ajuda

vir o diabo e escolher.

15.12.22

Manifesto contra os diminutivos

Estas estranhas mezinhas

que se entranham 

comezinhas

como se fossem

madrinhas mazinhas

a quem a mão puxa

para o lúbrico rodopio

e nós

sentidos inocentes

todavia imunes às falinhas 

de quem não se espera que mansas sejam

nem espezinhas

apenas proclamações gentias

que não se fingem

nem no mais fundo das entranhas

nós

os não valentes

nem valetes por conta

que espreitam

no protesto dos diminutivos

oh! manigante peste

pior 

do que as mais temidas pestes.

#2619

Estas são as clepsidras

que abrandam os sonhos

as clepsidras

que amansam as águas.

14.12.22

Tribunal superior

Sai dessa pele

no teu papel de sobrinho da esperança.

Pele

em vez de osso maduro

nem que seja em impuro esbracejar

a indulgência dos almocreves

a certeza dos infantes. 

 

Sai da pele

que careces de corpo em nome próprio

esteta infinito

poeta antecipado

mecenas postergado

procurador dos muros sem pousio

assim achado numa clareira onde houve fogo

matriz promitente no denodo dos dias. 

A pele que trazes tatuada

é candidata a estilhaço

mourejando nos flancos de um mar adormecido

depois do tumultuoso dia que o arruinou. 

 

Sai da pele;

precisas de outra

e só não sabes que costuras serão suas

e a sua gramática sortilégio. 

 

Não é de uma pele servil

o amancebado distrate em falta,

nas convulsões adiadas 

que espreitam pela escotilha de um luar furtivo

luar eflúvio

que rima 

com o flúmen onde teu olhar repousa. 

 

Tua será uma pele subjacente;

ou uma pele herança

fruída num futuro sem data

à espera

sem a espera das contingências

como se num adro vazio

todas as estrofes levitassem

à espera de vez

à espera da declaração de autonomia. 

 

Sai dessa pele

e encontra a Primavera 

que se insinua nos poros suados

torna-te o trono dessa Primavera

e escreve

num papel feito de rosas 

o teu nome a ouro

o teu nome

de ouro.  

#2618

Uma vez

chamaram-me

erudito.

 

Não me pareceu

que fosse

elogio.

#2617

O fogo puído

em vez do frio,

a reparação do amanhã.

Injustiças indocumentadas (51)

Ninguém

viu orelhas

coladas às paredes.

13.12.22

Ocultação

O areal 

era testemunha do mar

que lhe arrancava pedaços do rosto

a meio da acrimoniosa maré. 

No vento

dir-se-ia cavalgarem, 

escondidos,

vultos empenhados em contrariar a sorte. 

A coligação entre o mar e o vento

castigava o lugar

dando-se ao Inverno

dando a seu nome toda a propriedade. 

 

Não se diga 

que não houve vítimas:

pescadores desavisados

sacerdotes desempossados

escrivães de matéria baça

uns quantos senhores de aristocrática mentira

outros que passaram rente ao esbulho.

Nenhum diga

que não foi sujeito de aviso

e que as estrelas caiadas se deitaram 

num musgo inválido

mesmo a preceito,

mesmo.

Injustiças indocumentadas (50)

Não pode 

ser mau o tempo

em tempo de estiagem.

#2616

O abotoado sorriso

a esmo

mesmo que seja Inverno.

12.12.22

Sem absolvição

Não se inaugure o salvo-conduto

que não há tanta renúncia a ditar

perante os degraus onde transitam

interiores consumições.

 

Absolvição

se houvesse culpa;

ou

mesmo sendo a culpa reconhecida

a prestação de contas delimita-se

ao território do ser.

Não cuidem da absolvição

se ela não foi impetrada. 

 

Fujo dos braços generosos

dos juízes maneáveis

que se amesquinham nas brandas

de onde tem idioma 

a complacência.

Fujo

pois não meti requerimento

para a complacência

e menos ainda pretendo

que me salvem dos piores infernos

por meu será o padecimento

se deles vier a ser inquilino.

#2615

Se ao menos

pudesse levar a nau

até ao epílogo da cordilheira.

11.12.22

Injustiças indocumentadas (49)

Por tanto andar

nas bocas do mundo

caiu na má graça

dos cidadãos em geral.

#2614

Abstração ou obstrução

sempre os soubemos

tese e antítese.

#2613

O nascer do guia.

A nascer

o guia. 

Matéria fundente

Desde o dia feminino

uma glicínia oferece as pétalas

perfumam a cama de folhas outonais. 

A curvatura do corpo

fermenta na rebeldia dos elementos

como se apenas contassem

as paisagens retidas no olhar imorredoiro. 

E depois

deixamos em palavras

o nosso festim

os beijos que as bocas incensaram

os corpos em forma de dádiva

semântica de desligamento

uma fábrica com a mão-de-obra insubmissa.

Esta é a fratura exposta

sem gesso como remedeio:

exposta

por não se esconder de segredos

e neles se tornar o magma fundo

dos próprios segredos. 

Não contamos com prazos de validade

nem somos candidatos à angústia. 

Os medos contam como candeias:

à sua custa

superamos as cordilheiras remotas

soubermos ser 

poetas antes do próprio poema. 

10.12.22

#2612

Em negociações

entre a apatia da manhã

e a extinção do entardecer.

9.12.22

Pivot

É a fulgurante incisão dos desacontecimentos

como se fosse 

o desapertar de uma camisa-de-forças

a lava intempestiva que fala com a boca do vulcão

ou a cordilheira que se agiganta no espaço do olhar:

em tudo 

espectros demissionários

vultos às voltas com insónias

extintos, enfim, 

com a água retirada de uma boca de incêndio,

as mordaças que calaram o passado

os fogos ateados à pele arrefecida

os palcos feitos de sobressaltos

os hotéis onde moravam pesadelos mordazes

todas as vendas que condenavam ao silêncio

e as cortinas onde desmaiava 

o entendimento de tudo. 

Agora

só contam os agoras retesados

num leilão sem agenda

a boca que precisa das palavras irrefreáveis

o teatro onde se jogam as farsas sem máscara

contra os mendazes que enchem a boca de verdade

(em mentiras elevadas ao quadrado)

os vocais embaixadores de causas avulsas

que escrevem leis de bronze em camas de xisto,

todavia,

em tinta sem ser impermeável

que se abate com as chuvas inaugurais. 

Este é o desacontecimento

a desfiguração do mundo teimosamente ideal

reduzido à sua imensa fragilidade,

enfim,

ao reconhecimento da sua escondida fortaleza. 

Sem aspas nem metáforas a arredondar as palavras

sem compensações por perdas que são pretextos

sem o exaurido lugar em que todos procuram

habitar um lugar 

que não é seu. 

Injustiças indocumentadas (48)

Antes 

uma carga d’água

do que

uma carga d’ombro. 

#2611

O dicionário

não trata das almas

e essa é uma culpa

que não é do dicionário.

8.12.22

Vindima

Bebemos as mãos;

as mãos que tudo têm para contar

elas, 

servidas na fábrica do entendimento

em que tudo se anestesia

em perguntas 

que levantam as cores do céu. 

Tu dizes:

dou-te o meu perfume

nos versos que as mãos desenham 

no teu corpo. 

Eu esperava. 

Fingia dormir

enquanto as tuas mãos

faziam do meu corpo um mapa

e não podia fingir

não podia fingir

que a madrugada não fala ao ouvido da noite

nem as pétalas vertidas pelos teus dedos

eram como a cura 

para o que precisasse de cura. 

Lembrava 

os novembros desmaiados,

como eram compensados

pelo teu sussurro que me cercava

como se fosse abraçado por uma ideia de ti

pois de ti 

sabia de cor a cor que havia por saber

os tremeluzentes dedos ungindo as palavras

com o prazer irrenunciável;

o prazer de nós sabermos 

à distância das mãos

e por elas falarmos

as estrofes de poemas apenas guardados

na memória.

#2610

A beata

protesta contra a beata

por o chão

não ser lugar

para a beata estar.

7.12.22

Naufrágio sem socorro

Sem meias medidas

o naufrágio estrepitoso

açambarca o ocaso abreviado. 

Não se compensam as falas arrependidas

autênticos bálsamos de farsas

todavia, 

farsas legítimas;

pois se tudo não passa

de um teatro imenso

cobrindo todas as latitudes e longitudes

traduzindo os verbos venais

por semântica com direito a panteão. 

 

O que dizer dos mares arrevesados

que industriam o naufrágio?

Que dizer dos náufragos

pois se ninguém se convoca

para o papel de vítima?

 

A indulgência atravessa os corpos

deita-os na rota das culpas sem autor 

 

– ao contrário da cozinha de autor

esse terrível modismo

em que o autor se apega ao narcisismo. 

 

A indulgência

é a pior traição 

de que podemos ser avalistas;

não remedeia naufrágios

nem sumptuosas e, porém, risíveis

exibições de candidatos a arcebispos da idiotia

pese embora a idolatria

pese embora

as tentaculares redenções

que não passam de disfarces. 

Que os vultos perenes 

não descolonizem o horizonte. 

Se a manhã não fosse infernalmente crepuscular

seríamos autómatos da indiferença

sitiados numa enseada sem saída

condenados a ruminar 

entre as perdes corrompidas de um labirinto. 

 

No fundo

estaríamos no fundo

sem sabermos;

que é a geografia própria

de quem foi abraçado 

pela pérfida sereia

do naufrágio.

#2609

O pivot do telejornal

a jogar à patela

com os acasos do mundo.

6.12.22

Monumento

Risco as farsas

os mapas amarrotados

as vozes que contrariam o silêncio

e vou 

pelas montanhas intrépidas

saltando os ribeiros que se agigantam

prometendo os dias sem crepúsculo

 

o miradouro a subir

desde as minhas mãos. 

 

E não deixo o sono vingar

não quero ser 

colónia de sonhos avulsos

simples matéria passiva à mercê dos sonhos

não deixo

que os atónitos passageiros da cidade

se amordacem na matéria invisível 

ou que sejam apenas

 

peões

meros peões

 

numa aritmética acima das suas possibilidades

para se tornarem irrisórios números

condenados à decadência antes do tempo. 

 

Arrisco

que não são profecias

estas aqui costuradas com a saliva da rebeldia

apenas

 

um desejo que se deseja

 

na primeira pessoa 

do singular. 

#2608

O Outono na Rússia

é mais Inverno

do que o Inverno 

em Portugal.