O tempo
mentiu
aos meteorologistas.
[Arqueologia de uma tempestade imprevista]
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Coloquialmente
o vento fala com os dentes todos
mostra as unhas propositadamente por tratar
como se ensinasse
nos ensinasse
que a descivilização é que compensa.
Insistentemente
gatos com cio arrancam um fio à noite
lutam entre eles
masculinamente marcando coutadas
mesmo sabendo
que não será em vão a espera.
Propositadamente
afiam-se as facas
que a peleja pugna pelo sangue
desejavelmente o dos outros
que o próprio é alérgico a agulhas
que é o mesmo que dizer
só admite a batalha
se a der como vencida à partida
(se não, tomem-no como contumaz).
Idilicamente
o corpo enamora-se nos socalcos da noite
abraça-se a um seu congénere
cuidando de saber diferente do seu o género
e no feixe de luzes que se poetiza
sente o epílogo como campo de batalha
mas redime-se dos pesares
e proclama
oxalá as batalhas fossem com estas armas,
como estas armas,
e o sangue tivesse nome
noutra seiva.
[Resposta a injustiças indocumentadas (52)]
(Na volta
o diabo é deus
em pessoa.)
Para não deixar oxidar
a relativização de tudo:
há as mentiras boas
(dizem: piedosas)
e as boas mentiras
(dizem: periciais).
Estas estranhas mezinhas
que se entranham
comezinhas
como se fossem
madrinhas mazinhas
a quem a mão puxa
para o lúbrico rodopio
e nós
sentidos inocentes
todavia imunes às falinhas
de quem não se espera que mansas sejam
nem espezinhas
apenas proclamações gentias
que não se fingem
nem no mais fundo das entranhas
nós
os não valentes
nem valetes por conta
que espreitam
no protesto dos diminutivos
oh! manigante peste
pior
do que as mais temidas pestes.
Sai dessa pele
no teu papel de sobrinho da esperança.
Pele
em vez de osso maduro
nem que seja em impuro esbracejar
a indulgência dos almocreves
a certeza dos infantes.
Sai da pele
que careces de corpo em nome próprio
esteta infinito
poeta antecipado
mecenas postergado
procurador dos muros sem pousio
assim achado numa clareira onde houve fogo
matriz promitente no denodo dos dias.
A pele que trazes tatuada
é candidata a estilhaço
mourejando nos flancos de um mar adormecido
depois do tumultuoso dia que o arruinou.
Sai da pele;
precisas de outra
e só não sabes que costuras serão suas
e a sua gramática sortilégio.
Não é de uma pele servil
o amancebado distrate em falta,
nas convulsões adiadas
que espreitam pela escotilha de um luar furtivo
luar eflúvio
que rima
com o flúmen onde teu olhar repousa.
Tua será uma pele subjacente;
ou uma pele herança
fruída num futuro sem data
à espera
sem a espera das contingências
como se num adro vazio
todas as estrofes levitassem
à espera de vez
à espera da declaração de autonomia.
Sai dessa pele
e encontra a Primavera
que se insinua nos poros suados
torna-te o trono dessa Primavera
e escreve
num papel feito de rosas
o teu nome a ouro
o teu nome
de ouro.
O areal
era testemunha do mar
que lhe arrancava pedaços do rosto
a meio da acrimoniosa maré.
No vento
dir-se-ia cavalgarem,
escondidos,
vultos empenhados em contrariar a sorte.
A coligação entre o mar e o vento
castigava o lugar
dando-se ao Inverno
dando a seu nome toda a propriedade.
Não se diga
que não houve vítimas:
pescadores desavisados
sacerdotes desempossados
escrivães de matéria baça
uns quantos senhores de aristocrática mentira
outros que passaram rente ao esbulho.
Nenhum diga
que não foi sujeito de aviso
e que as estrelas caiadas se deitaram
num musgo inválido
mesmo a preceito,
mesmo.
Não se inaugure o salvo-conduto
que não há tanta renúncia a ditar
perante os degraus onde transitam
interiores consumições.
Absolvição
se houvesse culpa;
ou
mesmo sendo a culpa reconhecida
a prestação de contas delimita-se
ao território do ser.
Não cuidem da absolvição
se ela não foi impetrada.
Fujo dos braços generosos
dos juízes maneáveis
que se amesquinham nas brandas
de onde tem idioma
a complacência.
Fujo
pois não meti requerimento
para a complacência
e menos ainda pretendo
que me salvem dos piores infernos
por meu será o padecimento
se deles vier a ser inquilino.
Por tanto andar
nas bocas do mundo
caiu na má graça
dos cidadãos em geral.
Desde o dia feminino
uma glicínia oferece as pétalas
perfumam a cama de folhas outonais.
A curvatura do corpo
fermenta na rebeldia dos elementos
como se apenas contassem
as paisagens retidas no olhar imorredoiro.
E depois
deixamos em palavras
o nosso festim
os beijos que as bocas incensaram
os corpos em forma de dádiva
semântica de desligamento
uma fábrica com a mão-de-obra insubmissa.
Esta é a fratura exposta
sem gesso como remedeio:
exposta
por não se esconder de segredos
e neles se tornar o magma fundo
dos próprios segredos.
Não contamos com prazos de validade
nem somos candidatos à angústia.
Os medos contam como candeias:
à sua custa
superamos as cordilheiras remotas
soubermos ser
poetas antes do próprio poema.
É a fulgurante incisão dos desacontecimentos
como se fosse
o desapertar de uma camisa-de-forças
a lava intempestiva que fala com a boca do vulcão
ou a cordilheira que se agiganta no espaço do olhar:
em tudo
espectros demissionários
vultos às voltas com insónias
extintos, enfim,
com a água retirada de uma boca de incêndio,
as mordaças que calaram o passado
os fogos ateados à pele arrefecida
os palcos feitos de sobressaltos
os hotéis onde moravam pesadelos mordazes
todas as vendas que condenavam ao silêncio
e as cortinas onde desmaiava
o entendimento de tudo.
Agora
só contam os agoras retesados
num leilão sem agenda
a boca que precisa das palavras irrefreáveis
o teatro onde se jogam as farsas sem máscara
contra os mendazes que enchem a boca de verdade
(em mentiras elevadas ao quadrado)
os vocais embaixadores de causas avulsas
que escrevem leis de bronze em camas de xisto,
todavia,
em tinta sem ser impermeável
que se abate com as chuvas inaugurais.
Este é o desacontecimento
a desfiguração do mundo teimosamente ideal
reduzido à sua imensa fragilidade,
enfim,
ao reconhecimento da sua escondida fortaleza.
Sem aspas nem metáforas a arredondar as palavras
sem compensações por perdas que são pretextos
sem o exaurido lugar em que todos procuram
habitar um lugar
que não é seu.
Bebemos as mãos;
as mãos que tudo têm para contar
elas,
servidas na fábrica do entendimento
em que tudo se anestesia
em perguntas
que levantam as cores do céu.
Tu dizes:
dou-te o meu perfume
nos versos que as mãos desenham
no teu corpo.
Eu esperava.
Fingia dormir
enquanto as tuas mãos
faziam do meu corpo um mapa
e não podia fingir
não podia fingir
que a madrugada não fala ao ouvido da noite
nem as pétalas vertidas pelos teus dedos
eram como a cura
para o que precisasse de cura.
Lembrava
os novembros desmaiados,
como eram compensados
pelo teu sussurro que me cercava
como se fosse abraçado por uma ideia de ti
pois de ti
sabia de cor a cor que havia por saber
os tremeluzentes dedos ungindo as palavras
com o prazer irrenunciável;
o prazer de nós sabermos
à distância das mãos
e por elas falarmos
as estrofes de poemas apenas guardados
na memória.
Sem meias medidas
o naufrágio estrepitoso
açambarca o ocaso abreviado.
Não se compensam as falas arrependidas
autênticos bálsamos de farsas
todavia,
farsas legítimas;
pois se tudo não passa
de um teatro imenso
cobrindo todas as latitudes e longitudes
traduzindo os verbos venais
por semântica com direito a panteão.
O que dizer dos mares arrevesados
que industriam o naufrágio?
Que dizer dos náufragos
pois se ninguém se convoca
para o papel de vítima?
A indulgência atravessa os corpos
deita-os na rota das culpas sem autor
– ao contrário da cozinha de autor
esse terrível modismo
em que o autor se apega ao narcisismo.
A indulgência
é a pior traição
de que podemos ser avalistas;
não remedeia naufrágios
nem sumptuosas e, porém, risíveis
exibições de candidatos a arcebispos da idiotia
pese embora a idolatria
pese embora
as tentaculares redenções
que não passam de disfarces.
Que os vultos perenes
não descolonizem o horizonte.
Se a manhã não fosse infernalmente crepuscular
seríamos autómatos da indiferença
sitiados numa enseada sem saída
condenados a ruminar
entre as perdes corrompidas de um labirinto.
No fundo
estaríamos no fundo
sem sabermos;
que é a geografia própria
de quem foi abraçado
pela pérfida sereia
do naufrágio.
Risco as farsas
os mapas amarrotados
as vozes que contrariam o silêncio
e vou
pelas montanhas intrépidas
saltando os ribeiros que se agigantam
prometendo os dias sem crepúsculo
o miradouro a subir
desde as minhas mãos.
E não deixo o sono vingar
não quero ser
colónia de sonhos avulsos
simples matéria passiva à mercê dos sonhos
não deixo
que os atónitos passageiros da cidade
se amordacem na matéria invisível
ou que sejam apenas
peões
meros peões
numa aritmética acima das suas possibilidades
para se tornarem irrisórios números
condenados à decadência antes do tempo.
Arrisco
que não são profecias
estas aqui costuradas com a saliva da rebeldia
apenas
um desejo que se deseja
na primeira pessoa
do singular.