15.2.23

Cessar fogo

Cessar fogo:

a artilharia emudecida

o clamor que celebra as pessoas. 

 

Disparo a centelha ávida

contra a tremenda voz tumular

a voz que se esconde no crepúsculo

e amedronta com os dedos fingidos. 

O céu está do avesso

e as mãos remexem as raízes das árvores

talvez demandem uma gramática 

talvez

peregrinem as pedras válidas

escondidas da avareza. 

Os braços não se deixam cair

ainda que a teia da gravidade conspire 

a desfavor. 

 

As casas estão todas atadas a um sono

e esquecem-se do dia militante. 

Um começo que espera

esboça umas sílabas tentaculares

 

(como se fossem flocos de neve

a precipitar em câmara lenta)

 

abotoa as asas do pensamento insubmisso

capitulando

capitulando na hibernação confortável

dos que renunciam a ser quem são

por imperativo de transfiguração forçada. 

 

Não digam 

que este palco em que medramos

não é a pertença de sistemáticos fingimentos. 

Não digam

que as bandeiras que se colam à pele

não são bandeiras que nos colam à pele

que deixamos que nos colem à pele

e nós

apenas timoratos que se anestesiam

suspeitamente adereços da vontade não nossa. 

 

O casario parece todo igual

e até as diferentes cores parecem cores iguais. 

 

Às vezes

a maré-viva decompõe a lhaneza pretendida

espalha o caos na geografia desarrumada;

é como se os alicerces fossem remexidos

e uma colossal colher de pau 

arrancasse do fundo os sedimentos

dando um outro desenho à tela 

– lavrando a mudança

que desconfia dos que conservam o passado

como se a mudança não fosse o verbo claro

do tempo que estuga o andamento. 

 

Tomo posse da vontade

que abandona o exílio. 

Sei que amanhã é amanhã

e que depressa um amanhã será passado

quando for a vez de um amanhã sucessivo. 

As janelas não estilhaçam

nem sob a ameaça de tempestades. 

Há uma tempestade de palavras 

que espreita pela escotilha

enquanto a manhã se faz mulher;

essa é a tempestade que se espera. 

 

Se houvesse cartografia dos contratempos

meu seria um mapa reescrito

liso e ausente

um paradoxo tornado livro de estilo. 

Os genes não tergiversam

na intensa demanda que mantém o pensamento 

de atalaia. 

Não concebo a medida do tempo

e avanço 

mar adentro

eu, 

a nau de mim próprio

capitaneada pelo mesmo,

só para atestar

a tremenda pequenez que não me acossa.

#2685

Quem nunca saltou

para uma caixa de Pandora

quem nunca se perdeu

nos enredos de um labirinto?

14.2.23

Manifesto contra os algozes assíduos

Dois ou três dedos de conversa:

dizem

um bálsamo

que converte a solidão

ou então

fermento que aviva diferenças

incensando opostos que não coabitam. 

A palavra

tão depressa se abastarda

na tirania da intolerância

e os anátemas estendem-se ao comprido

maquiavelicamente incapazes

de tomarem o lugar onde está o outro. 

Desse mal se abjure

a conspiração 

onde se desalimentam os que ficaram

esquecidos 

numa qualquer esquina controversa do tempo. 

A matilha não se cansa

os dentes tatuados do sangue das vítimas

e eles

tão aparentemente poderosos

reduzidos 

à miséria de uma condição soez. 

#2684

Amar 

é a liberdade de ser 

na pessoa que se ama.

 

[Desomenagem a S. Valentim]

#2683

A redenção

não se liquida com palavras

pois banais são as palavras.

13.2.23

A alvorada procura um lugar

Extingue-se a penumbra. 

Os gatos dissolvem-se das ruas

agora colonizadas por pessoas. 

O céu tingido de tons alaranjados

rima com a preguiça que acompanha

o dia inaugurado. 

O sangue das pessoas ainda é letargia. 

As palavras saem a custo

muitas preferiam habitar

se pudessem

o exílio de uma cama. 

As ruas ainda não crepitam;

prometem fazê-lo

pela experiência que trazem ao dorso. 

Notam-se uns despojos da noite destreinada:

um punhado de boémios a desoras

perdidos na iconoclasta ebriedade

alguns operários do turno da noite

em contramaré 

apressados para o sono

os estilhaços de garrafas averbadas na boémia

o lixo negligente de quem habitava

sentidos embaciados. 

O dia que se inaugura

com o primeiro sopro da aurora:

que mentira tão bem montada

se o dia

este dia para efeitos de contabilidade do tempo

já leva no inventário 

meia dúzia de horas.

#2682

Todos têm

o seu próprio

relatório confidencial.

12.2.23

A cidade que fala nos braços do silêncio

Arrancado à dureza dos maxilares

um silêncio povoado de noite

esgrime contra a pálida expressão do medo. 

A fala, submersa,

amotina-se. 

Arruma a rigidez dos tendões

e a teimosia dos músculos,

contrária a mudez estrutural

vendo como os copos 

entretanto vazios

dançam com as palavras dantes reprimidas

as palavras agora espalhadas pelas paredes. 

Um rosto ensonado adia a manhã,

acredita na ilusão. 

A luz inaugural fere o olhar

a mesma agressão da fala emudecida

enquanto a noite onde se sentam as solidões

vocifera um bolçar que não se ouve. 

O silêncio não passa de um disfarce. 

Todo o peso das pessoas

arqueia as ruas

que cedem à profusão de páginas faladas

pelo somatório de todos os que souberam 

das ruas. 

Essa amálgama é a indelicadeza da cidade

uma teia de haveres que se entretece

com os segredos habilitados 

em testamentos guardados no silêncio fundo,

a estola que cai sobre o seu dorso. 

A nudez da cidade

enfim

disfarçada por este coro claro.

#2681

Todas as bandeiras erguidas

rasgadas

com o flagelar do vento.

11.2.23

#2680

Em cima de andas

para não ser apanhado

pelo caudal de lodo.

10.2.23

O exorcismo dos nomes

Os nomes

não importam. 

Não se fale

de extorsões

que se fingem

de incenso. 

Um nome não é 

o sangue 

que habita as veias

as esporas que se atiram

na projeção do horizonte

e desembaraçam 

janelas com artesões

não é 

um nome

o esconjurar 

supersticioso

do medo de sermos ninguém. 

E, todavia,

quantos nomes há

que são apenas

ninguém?

Quantos 

são os nomes

esquecidos

na almofada do tempo

na incúria da memória

num adeus inconfessável

no dorso de uma montanha

escondida nas ameias da noite?

Os nomes

não passam

de uma expropriação de almas

que se diz de o serem

depois de serem um labirinto

num nome. 

Os nomes

se não fossem um cárcere

podiam importar.

#2679

Desceu à varanda

e esperou 

com a paciência serenada

pelo ocaso.

9.2.23

Não é não e não

Não

à conta do exílio

nem pela conta certa

averbada pelo sombrio ocaso

não

é não o que proclamo

aos que da inércia se alimentam

à projetada ideia de não dissidência

aos que se inquietam porque alguém se interroga

à castração das ideias

aos aios úteis de farsantes inúteis.

Não

pode ser o degrau heurístico

onde é crime dizer não 

e onde dizê-lo

constitui uma ode

à liberdade mansamente reprimida. 

Não

é a medalha sublime

desta irredutível desobediência

o salvo-conduto para a liberdade

não ser apenas um princípio sem substância.

 

#2678

Faz-te o dobro

do zero que és

e celebra,

em festim exacerbado.

8.2.23

Obra pública

Soou o ciciar de um fantasma

na fortaleza que guardava a noite

e do pano gasto resgatou o olhar 

embaciado. 

 

Suou no crepúsculo do pesadelo

que enfeitiçou os sentidos

enquanto a lava açambarcava 

o sangue. 

 

Muda a janela sobre o mundo

apunhalou pelas costas os mastins 

em metódico gesto de reparação 

do indevido. 

 

Muda de máscara, gasta,

antes que um cortejo de seráficas personagens

o traga para o pelourinho em sede 

de julgamento. 

 

Cala todos os silêncios amaldiçoados

a fonte de rebeldia sentada à margem

sentado na coreografia embainhada 

nas desregras. 

#2677

Encurralado o lobo

no baldio amadrinhado

os sequazes partem em festim.

7.2.23

220 volts

Batem por dentro

no avesso das pálpebras

as palavras atónitas

o sal hirsuto do mar

o vento em protesto

os corpos desassisados

fulgurantes centelhas em meneios

nos antípodas da carne apaziguada.

Se fossem exílio

as asas apressadas seriam maneirismo

um fingimento a calhar em estrofes

ornato precioso na bolsa sem fundo.

Mas não são.

Suplicam as bocas foragidas

em idiomas por inventariar

os modos sem instruções

uma gramática por cada pessoa

um tribunal inferior que seja bastante

no imprevidente salvo-conduto

à fortificação apresentado.

A roupa torcida

não se amarrota na descompostura:

dela é a marca registada dos habilitados

o corpo em preparos inverosímeis

como se acabasse de escolher um púlpito

e não deixasse em memória futura

herança a caber.

Os dias são iguais.

Arrumo os escombros na fileira do esquecimento

e dou o inteiro de mim à acintosa manhã

eu que sou meão

e não aspiro a que do meu nome saibam 

paradeiro.

Não seja em mim encontrada 

a peugada da heráldica

que da orfandade 

tenho uma impressão da espécie.

Em todas as marés

desapareço

fundindo o vulto em que me tornei

na espuma levantada pelos mares desarrumados.

Sou como um navio

a água do mar como morada

e o rosto como a lombada de livros em barda,

o demais escondido do voyeurístico espiolhar.

Sou

exílio por dentro

os pulmões cheios de versos por saber

e uma manhã que se confunde

com os acordes em espera.

Sou

a provável fragilidade

que se não esconde

o lema tirado à sorte

(ou atirado à sorte)

na filigrana em que se habilitaram as mãos.

Espero por o que não posso esperar

e nisso faço-o não-espera

o vocábulo irredentista

a fação compulsiva que arremete contra o dia

em mil e duzentos archotes que dividem a avenida

enquanto se espera 

aquilo por que não se pode esperar.

#2676

Antes seja pelo bisturi

o aval de um novo nome. 

6.2.23

Manual da desobediência

Trocas a mentira

em bolsa de futuros

e de vez arranjas o foro

onde descansas o medo.

 

Assentas o chão

em tugúrios rombos

e de vez suplicas a farsa

onde remedeias a mentira.

#2675

A cidade está armadilhada

pelo sangue sitiado

dos capatazes sem remorsos.

5.2.23

Fermentação

Que sombra sou

na boca da maré

que fantasma em mim se leva

na pele que pétrea se faz

timoneira do devir que se açambarca

num desvio da maresia?

Que jura 

não consigo ser

no tempo inverosímil 

nas candeias apertadas contra o labirinto

neste sudário 

onde se enxaguam as mãos?

Injustiças indocumentadas (66)

Se as tristezas

apagassem dívidas

o fado era legítimo.

#2674

A mesa flamejante

ante a loucura

e um braço de rio

por fora.

4.2.23

#2673

Os gatos dançam

onde o rio

se desfaz em lágrimas.

3.2.23

Fibra de carbono

Amanhece

na boca

o sol posto.

Às coisa demais

digo do menos

digo

em sílabas ímpares

as cadeiras vilãs

máscaras em adiamento

um bocejo arqueado.

Sobre a janela

o mar tardio.

Sobranceiro

um pescador

fiador da sua solidão.

Se vier 

a maré esperada

o anoitecer tresmalhado

deixa em magma vivo

o orvalho averbado.

Anoitece

e o crepúsculo desmaiado

anuncia um luar 

maior do que o céu

que o recebe.

#2672

Na rixa 

contra o tempo que corremos

pressentimos os escombros.

2.2.23

#2671

Participo

da dança com as palavras

a única dança que danço.

1.2.23

Solipsista

Era uma ideia eunuca

as núpcias averbadas no desmazelo

e os aspirantes a querubins

persistindo

no tirocínio qualificativo.

Mas veio uma tempestade:

os trovões calaram os verbos enfatuados

a chuva, diluviana,

colonizou a força braçal da ideia

era como se os deuses arrotassem o mau hálito

e nos desassossegassem.

Sobrou a lama

uma pantalha que já não era termal

e o estuário que se perdeu 

nos deslimites das margens arrombadas.

Nem assim os indefetíveis desmobilizaram.

Andamos com eles a tiracolo

como se fossem parasitas

e nós, 

ignorados pelos deuses

(assim ausentes),

pediríamos pássaros para o dorso

só para expulsarmos os parasitas.

#2670

Em anotação à margem

o ruído que anestesia o luar

e devolve à noite o seu lugar.

Injustiças indocumentadas (65)

Dizem

que é igual ao litro

e não sabem 

a que é o litro igual.