7.3.23

Autodefesa

Do caminho raso

as métricas possíveis

afogadas num aguaceiro

desviam as trovoadas triviais;

as copas das árvores parecem sorvetes

mas não se armam os alçapões

sem os arneses por perto.

 

De caminho

o avesso amoeda-se na pele

sua tatuagem impura que se subleva

na parte de trás da catedral

enquanto os rapazotes sobem aos pedestais

em marés de estultícia.

 

Caminho

nas oitenta e oito teclas do piano

desenho as notas no sopé do vulcão

e deixo o peito recolher os frutos ateados

sem sair do caudal de onde sorvo as lágrimas

sem pesar na carne as legendas cegas

e à porta sentar os medos pueris.

 

A caminho da alvorada

levanto a âncora que arrastou o corpo

sitiado por tribunais estéreis

amarrado ao represado manto de água

como se ele próprio, o corpo,

anuísse nas comportas que largam o degelo

mudando a consoante muda

consoante o que muda no jusante.

#2703

A boca faminta

sanguínea

não traz vítimas à lapela.

6.3.23

Falávamos de marés e de outros sortilégios

Dizias

com as palavras ditas em dourado,

as sílabas armadas com destreza,

que eras capaz de secar a maré 

– e eu queria 

que todas as marés fossem 

apenas 

praia-mar

para não molhares mais

do que os dedos dos pés.

#2702

Se as mãos fossem um mapa

quanto património genético

seriam as suas rugas?

5.3.23

Sísifo em trabalhos

Sísifo

não sabia

onde se ia meter. 

Pior seria

se a rocha corresse

montanha abaixo

atrás de Sísifo. 

Dele se diga

com a devida propriedade

que merece a linhagem de astuto. 

#2701

O dedo na ferida

antes que se faça

cicatriz.

4.3.23

#2700

Não se ajeite

alcunha

que a caravela 

é lesa-majestade.

3.3.23

Cinemático

Se não houvesse luar

as páginas

reféns da penumbra

seriam um luto sem fim.

 

Se não houvesse sombras

e a noite 

fosse um espelho sem fundo

o luar seria mecenas do dia.

Injustiças indocumentadas (73)

A mão de semear

e o pé de colher.

#2699

Não se invente a roda

que os nomes dos inventores

já ganharam o seu panteão.

2.3.23

Verde-esmeralda

Às palavras esquecidas no futuro.

À boca que ateia a combustão das almas.

Ao Inverno que transporta a candeia 

que trespassa o olhar.

Ao suor das mãos que falam, 

caindo das árvores que ciciam na penumbra.

Ao ocaso, que é uma jura de futuro.

Injustiças indocumentadas (72)

Eu penso.

Eu,

penso.

#2698

Espreito

pela escotilha

os versos da madrugada. 

1.3.23

Injustiças indocumentadas (71)

Salvo o conduto

faltava 

declarar o ázimo. 

O panteão dos órfãos

Houvesse um trunfo na manga;

mas estava calor

e não tinha mangas apostadas

e do meio de tudo

encenei o palco ruidoso

onde o silêncio subia à cena. 

 

Houvesse um teatro por perto;

mas era um ermo

o lugar em que coabitava com o luar

e a meio da solidão

agarrei as estrelas que passavam na noite

se a noite não fosse

o lugar onde o medo se prefacia. 

 

Houvesse um astrolábio;

mas medieval não era o tempo atolado

e a meio de um nada

arranquei uma confissão à divindade de atalaia

e dela soube que de oráculos sabe nada

de si se desmentindo 

na qualidade em que se apresentava. 

 

Houvesse um remédio à distância de uma mão;

mas a cidade era a toponímia das ausências

e por demissão dos espíritos

ficavam as maleitas à mercê da sua sorte. 

 

Houvesse um navio sem escolta,

seus sem domador os mares atravessados;

mas as marés não estavam de modas

e no meio de mim

arranquei à força 

a ilha que se instalara. 

Injustiças indocumentadas (70)

A mão de semear

é aquela que não é

a esquerda.

#2697

Escondida na noite

uma luz boreal espreita

entre as rugas da alma.

28.2.23

Sinuoso

O tornado

respira os poros

que se distraem ao entardecer. 

 

Os ventos

desaprovam a sirene calada

e conspiram no avesso do tempo.

 

Armada a contenda

os coreógrafos pedem lema

em braços suados de tanto tentarem.

 

Depois da fronteira

um idioma que arranha os ouvidos

em gente que parece sósia de nós.

 

Na margem da manhã

o ciciar duradouro de um porta-voz

despejando ouro em cima dos sonhos.

#2696

O plumitivo multifacetado

berra:

“erro fatal”

e, todavia,

não há baixas a inventariar.

27.2.23

Nossa senhora da aflição

Certas

as esquadrias que enformam os corpos

um desfile sincero de estética

e se dizem que não é a estética alimento

por que há tantos mirones

dela dependentes como se uma religião fosse?

 

É desta vulcânica matéria que somos

um estrado feito de cortinas

e sobre o rosto,

incensado um véu que convoca diâmetro

o previsível testamento que não espera pelo tempo

tombando sobre as margens do amanhã

secretamente, em silêncio,

bolinando contra o vento audaz.  

 

O aval não vem às mãos

antes que a curadoria assine o livre solene

e os mastins sejam açambarcados

no vau onde fundas se estilhaçam as palavras. 

 

Concebemos os altares em lugares ermos

e é de propósito:

 

nunca percebi

como pode uma santidade ter por nome

aflição. 

#2695

Um mar de gente

contra as marés avulsas,

onde a vontade está abaixo

do nível do mar.

26.2.23

De que é feita uma casta

De mim

o xisto que abraça a alma

o rio que esconde a fundura

e o caudal voraz

que traz de arrasto 

os dias vindouros. 

24.2.23

Comunidade

Em corpos mutantes

cresce a lua apátrida.

Os rostos escondidos

ocultam nomes.

Se um mosteiro

pudesse ser sede das intenções

e as pedras ancilares fossem depósito 

das verdades sem sindicância

todas as palavras valiam por igual

e os corpos

mesmo sendo mutantes

seriam tatuagens uns dos outros.

Nessa altura

enfim

faria sentido falar

de comunidade.

#2694

Em vez da condenação

pontes 

que atravessem as diferenças;

em vez de cegueira

centelhas

que arrepiem o olhar.

23.2.23

Virado do avesso

Do alambique

os pontos e vírgulas

que suspendem o passado.

 

Aros perfeitos

que incendeiam o ocaso

nos sinais sumptuosos de solidão.

 

Os povoados

engalanam-se para a sepultura

sem saber que são exímios candidatos.

 

Da parte dos algozes

uma impúdica avareza de almas

sem direito a voz em pleito.

 

Da garrafa coeva

o artifício das mentiras enfeitadas

no arsenal de labirintos insondáveis.

 

Nem de arnês

se fala nos corredores sombrios

a rendição é o idioma vencedor.

 

Perdedores

os inocentes arrematados para o pelourinho

desnudam as vozes cansadas.

 

Oxalá fossem 

mercadores de futuros os forasteiros

e deles se falasse por cima do presente.

Injustiças documentadas (69)

Se o mal 

é dividido pelas aldeias

vamos todos 

para vilas e cidades.

#2693

No jogo de sombras

as entrelinhas 

da manhã.

22.2.23

Estaleiro

Não se adivinhe

o lugar do escultor

enquanto alfaiata os corpos

sob atalaia da sua alfaia

domando 

a matéria-prima que caleja as mãos. 

Não se desautorize 

a hermenêutica de quem se depõe 

diante da escultura

e empresta o seu olhar

à miríade de sentidos que a ela se abraçam.

Injustiças documentadas (68)

Porquê

viva voz

se viva é sempre

a voz?

#2692

De tudo que se espera

um nada como esperança

para não sermos reféns 

da filiação de desenganos.