20.4.23

Por suposto silogismo

Se desse mel houvesse escamas

seria como vírgulas a destempo

ou um eclipse a adiar a penumbra.

 

Se do forte não houvesse fala

seria como um voto sem antídoto

ou um peixe a recusar a água.

 

Se às cores se arrancasse a pele

seria como uma enseada insociável

ou um idioma sem tradução inventariada.

 

Se dos braços levitasse o silêncio

seria como baixar âncora longe do cais

ou uma espera interminável no avesso da luz.

 

Se o remédio fosse calar a voz

seria como aceitar a desliberdade

ou um punhal cravado no pensamento.

 

Se em estilhaços acabassem as prosápias

seria como aplaudir a armadilha das vésperas

ou a lotação com astronautas de contrafação.

#2755

A mentira desengonçada

a mentira militante

a mentira à mentira

a mentira

a.

19.4.23

Eletrocardiograma

O conciso dia

abriga-se da escuridão campeã

junta o vento razoável

e armadilha os precipícios esperados. 

Serão os nomes avulsos

os senhorios das almas desemparedadas

serão eles 

a fabricar as convulsões apátridas. 

Hoje

só quero ser herege de todas as verdades

repatriado para um lugar zero

onde tudo pode ser contado

desde o início. 

As nuvens foram desenhadas por esquilos

e só falta saber o nome do arquiteto. 

Talvez as nuvens escondam nomes

e os estendais onde ganham cor

esqueceram-se 

de se avivar com as cores precisas. 

O murmúrio ganha peso

dissolvendo o silêncio da madrugada. 

Nos cafés 

onde as pessoas se despedem do torpor

a louça frange, estridentemente:

é de propósito

que o dia depressa se apressa

e não há melhor cafeína 

que o estrondear das chávenas. 

Os sinais anestesiam a fala

a derradeira instância da inércia

obrigada à derrota 

pela roda-viva que não tarda. 

Vai começar a grande farsa.

Injustiças indocumentadas (92)

Sorte, e grande,

para contrariar

os jogos que se chamam

de azar.

#2754

Riscas

o sangue do dia

com um lápis a doer,

à espera da voz mestiçada.

18.4.23

Aqui não há rede de segurança

O céu temperamentalmente outonal

cospe sombras sobre o avesso da noite. 

Vozes efémeras casam-se com a distância

esmaecendo a caminho do silêncio. 

A cada minuto

há não-sei-quantos praticantes da mentira

não-sei-quantos mentores do passado

não convencidos que o tempo segue para o futuro

não-sei-quantos mortos nas estradas

não-sei-quantos embriões logrados 

no sexo interrompido. 

As páginas dos livros incendeiam o vento

enquanto esperam

que a noite recupere o seu lugar. 

Alguém diz

tenho medo dos sonhos

tenho medo

que pressintam o pesadelo 

em que se torna

a vida. 

As pessoas querem o seu exílio

por fora do perímetro puído que as expropria. 

Querem

um futuro de poesia

em vez do pesadelo contínuo

através das assinaturas de jornais

e noticiários televisivos e seus ademanes 

– profetas da malquerença

e oráculos de utopia. 

#2753

“De”

pela parte

da mãe

ou do pai?

 

[Sociologia avant la lettre...]

Injustiças indocumentadas (91)

Matar o tempo

(dizem)

a tempo do tempo

falsamente imorredoiro.

#2752

Os dedos

como raízes

bebem na maré

enquanto se prometem

florestas protegidas.

17.4.23

Noruega! (Súplica)

Dezassete de abril

trinta graus centígrados

e ainda mal a tarde 

alvorou.

Mau, tempo

que mau tempo.

Sondagem

A hipótese

não se rende

com duas palavras meigas

nem se entrega

nos braços de um sacerdote 

sem remorsos

a menos que seja convencida

que é um desacontecimento. 

 

Todas as lápides

não podem tanto

como a gramática da pele

que se tatua de palavras fortes

e dá ao corpo as catedrais possíveis

onde se convoca uma arca de flores

a amostra da Primavera

que encena a sua exuberância. 

 

No resto do tempo

as hipóteses 

somam-se à toalha da mesa. 

#2751

O leiloeiro 

não desistiu de encontrar 

quem dá menos.

Injustiças indocumentadas (90)

Há o rei disto 

o rei daquilo

e o rei daqueloutro

só pode ser 

uma monarquia interrompida.

16.4.23

Didascália

Emparedado pela memória

como se os remos

arrumassem a maré contrária

e tudo no dia 

fosse a simetria do esperado.

 

As flores deitadas nas jarras

ficavam para memória futura:

 

logo que as pétalas ficassem maduras

e o embaraço 

se congeminasse na eira

os relógios dariam voltas atrás

e a inveja do futuro seria a rua deserta

aquele lugar a que ninguém ia

 

nem que governos ciosos 

malbaratassem

subsídios inúteis.

 

Emparedado pela memória

na intuição dos dias

devorados em rapsódias circundantes

a pele ateada no areal

abraçada ao sol ecuménico.

E um instante que se demora

à espera que o futuro 

seja um juramento.

#2750

Falavam de redenção.

Recusava.

Não estava moribundo.

15.4.23

#2749

O membro do governo 

faz as perguntas

e, com diligência inexcedível,

redige as respostas.

A Filosofia 

devia ser cancelada.

#2748

[Derivação – ou consequência – do #2747]

 

Incumbência:

instruir os editores

para mearem as páginas:

numa metade o texto original

na outra as luzes em dádiva ao leitor.

#2747

Termos 

em que temos os tempos

da linguagem em fora-de-jogo.

#2746

Encurralado

entre o deserto ermo

e a metrópole hermafrodita,

o precipício a estalar na boca

a qualquer momento.

14.4.23

As bocas que dança com os nomes

São as bocas 

que dizem os nomes.

E os nomes

ensinam as bocas.

As palavras são mediadoras

a ponte entre os nomes e as bocas

que sem as bocas 

os nomes ficam sufragados pelo silêncio

e sem os nomes

as bocas não sabem de que terra são.

Do silêncio não se diga

que impede os nomes:

todos os nomes não deixam de ser

se o silêncio for instalação duradoura.

Uns nomes têm palco

e outros não:

não se ofendam os mártires da igualdade,

uns nomes têm palco

falam com as suas bocas

há bocas outras a falar de si;

outros nomes vivem do anonimato

as suas bocas falam

não há quem nomes que ouçam

e mais nenhuma boca recita os seus nomes.

As bocas todas deviam ensinar

aos nomes sem exceção

que a miragem da igualdade

devia ser metida 

em museu a preceito.

Injustiças indocumentadas (89)

Alto Douro.

Alto Douro.

 

[Para ser lida, a segunda estrofe, “Altooo Douro”]

#2745

De astronauta disfarçado

meteu as mãos ao barro

esculpiu a sua própria lua

e partiu rumo ao exílio.

13.4.23

Jogo quase olímpico

Epicentro;

as furnas levitam o magma 

das almas sem paradeiro.

 

As folhas das árvores

derruídas pelo Outono

apreciam o ocaso

o fusível para as cores adulteradas

em movimentos desorganizados

de sindicatos sem certidão.

 

Diz-se

outra vez

sem saber se é por recusa

ou como hospedeiro da rotina

sem sequer intimidar 

os diseurs.

Abandona-se o lugar

deixado vago aos bancos ausentes

os bancos que podiam ser de bancos

se ainda houvesse jardins.

 

A matéria viva

toma conta do sol

fermenta a carne incindível

demorada no crepúsculo efémero.

Os cardumes pressentem-se

o mar é a sua morada

e não há pesqueiros no perímetro

nem um matança no fio do horizonte.

O ultraje

é afim do arrependimento

não se pode cativar a hipocrisia nos outros

sem cair na indigência

de não se reconhecer hipócrita.

 

O sal tempera as cicatrizes

põe as feridas à prova.

Não é provação à medida

ou à desmedida encomendada:

o sal

é a alma mater das cicatrizes

o incentivo

para tantos serem mineiros.

De todas

a pele de pêssego

cobra os impostos diferidos

e sabe-se

é a exemplar seda que cobre os corpos.

 

Na véspera

o medo era apenas

uma intendência.

Fingia-se não saber 

a linguagem do medo

fingiam-se

exílios em grutas sem mapa

em vez de almocreves desossados

irrompendo contra as palavras párias.

 

Era assíduo ouvir

por vezes

como se dizer 

por vezes

fosse a promessa que faltava

para colorir os dias vindouros.

Se houvesse

um matadouro dos lugares-comuns

não seriam de sangue

os seus vestígios.

Mas não haveria operários,

ou uma autofagia dilacerante 

cortaria tudo a eito

em pequenos estilhaços

de nós sobrando um ermo infecundo;

o precipício habilitado

para as vias de extinção.

 

Formulário coloquial:

aceitam-se a concurso

todas as fragilidades

as inventariadas 

e as que esperam 

em reserva;

num concurso de males

vence o que for de menor

estatura.

#2744

Decreto

o objeto secreto

como remédio direto.

12.4.23

Sindicância

Oxalá sejam astutas

as mãos que mineram 

os pesares. 

Não são as constelações

que nos dão de comer

nem se diga o mesmo

das inválidas especulações

que não passam de especulações. 

É por um rio sinuoso

que se mete o caminho afora:

não nos intimidamos

com o caudal que apressado segue

como se a foz fugisse

açambarcada pelo rio maior

açambarcada pelo ontem que não se repete. 

Os desfiladeiros 

fazem lembrar os sobressaltos

a matéria que dá congruência a tudo 

– a totalidade só se preenche

ao ser levitada pela incongruência. 

Não é a intimidação que nos trava. 

O rio demora-se

e o dó que o dia tem apressa-se 

em extinção. 

Não queremos 

que a noite seja. 

Não queremos 

que sejam as sombras a tornar-se gramática

e que as árvores sejam meros vultos

atiradas contra as margens que se estreitam

à medida do medo que se alimenta

nas veias transparentes. 

Ou então

procuramos exílio na noite

o necessário e temporário exílio

para não sermos vítimas da noite 

que se não vê. 

Escrevemos na lembrança do sono:

a manhã 

há de trazer a foz do rio

mais cedo do que tarde. 

Prosseguimos no sonho:

as folhas molhadas caem sobre a pele

derruídas pelo vento que dança com a noite. 

A pele diz o sossego que o sono convoca

na indiferença pelo ciciar do vento

arrumando o medo para uma nesga da memória. 

Continuamos a sonhar:

os modos contrafeitos nos usos sociais

os fingimentos que aplanam as montanhas

o cárcere interior que adultera a vontade

a miragem que enfeita o entardecer

o torpor que não rima com indolência

a noite consecutiva

apenas uma das muitas vésperas

que se costuram no amontoado do tempo. 

E já não sabemos

distinguir o sono do sonho e do resto

como se a ordem da consciência 

tivesse sido raptada pela fragilidade. 

Irrompemos

com os primeiros sinais de claridade. 

O rio ausentou-se. 

A floresta foi deposta. 

O dia nasceu sem o castigo das nuvens. 

O vento calou-se

cansado da boémia da noite. 

E nós

continuamos a demanda

uma foz qualquer

que seja o começo de outra partida. 

#2743

Rasgo

se preciso for

as palavras 

pela sua inteira parte.

11.4.23

#2742

 

Afinal

deus

é um bidon.

Tanque de combate (ou: a alegoria desbeligerante)

Nunca tive um oceano na boca.

Nunca tive os olhos tatuados.

Nunca tive mágoas por idioma.

Nunca tive aparatos nem comendas.

Nunca tive o desassombro do orgulho.

Nunca tive migrações cevadas no dorso.

Nunca tive sortilégios em pautas adornadas.

Nunca tive preces nem quimeras.

Nunca tive o arnês por gramática.

Nunca tive a montanha russa nas veias.

Nunca tive a alquimia dos farsantes.

Nunca tive algemas em vez de perímetro.

Nunca tive a lua em partitura hermenêutica.

Nunca tive a generosidade dos déspotas. 

Nunca tive o açor no ponto de mira.

Nunca tive fortificações encenadas.

Nunca tive arsenais de estultícia

 

(ou a estultícia de arsenais).

 

Nunca tive a baía perene.

Nunca tive de embainhar o futuro.

Nunca tive a cortesia dos diplomatas.

Nunca tive a heresia da hipocrisia.

Nunca tive de meter ferro e fogo no silêncio.

Nunca tive o empréstimo de um epifania.

Nunca tive de arrendar hipérboles.

Nunca tive de amesendar em urbes infames.

Nunca tive de costurar as feridas incensadas.

Nunca tive de mentir às mentiras.

Nunca tive de servir extáticos anciãos.

Nunca tive de atropelar a angústia.

Nunca tive de errar num labirinto.

Nunca tive amoras nas manhãs húmidas.

Nunca tive o passaporte do ocaso.

Nunca tive a chave de navios insubmissos.

Nunca tive a esmeralda sufragada em poesia.

Nunca tive disfarces do disfarce concêntrico.

Nunca tive medo da liberdade.

Nunca tive o penhor das almas sitiadas.

Nunca tive certezas sobre as dúvidas.

Nunca tive dúvidas a não ser sobre as dúvidas.

Nunca tive interrogações órfãs.

 

Tirando 

tudo isso 

que nunca tive

sou tudo 

por dentro

do que tive.

#2741

Como o navio

que invade a tempestade,

o dia que nasce

à espera de vésperas.

10.4.23

À parte da pátria que parte

À pátria que a pariu

a pútrida pátria

que se parte 

no presidiário partido.

À pátria putrefacta

penhor do pequeno possível 

pináculo da proverbial purga

onde se procrastina o porvir

para ser povoado por um punhado.

À pátria perdida no piolho pior

pústula e pérfida, 

possuída por pelintras não probos,

proclamo

por patrocínio em parte incerta

a apátrida pulsação que me percorre

em parte 

por seres parte da perversa porta

que se opõe à paciência

em parte

por seres pusilânime

na posse que prometes

e não é tua parte.