10.10.23

#2926

Ao acudir o degelo

o caudal desamparado

a gramática 

dos excessos prístinos.

9.10.23

Dívida em forma de poema (ou poema em forma de dívida)

Devo um poema

a não sei que credor

é destas dívidas obituárias

em que verto amianto

antes que sejam perenes

e nem o aforro alheio 

seja refrigério.

Mal que seja maior

o de depositar um poema líquido

os débitos não choram futuros

e os espelhos cobram honorários

pela honra amesquinhada.

#2925

Bebemos os milímetros 

da paisagem irresistível 

para a apalavrarmos 

nas memórias intemporais.

#2924

Dividimos 

para anarquizar

e ninguém 

nos pode censurar.

8.10.23

Islândia

Foi preciso

avivar a ira dos deuses

para bela ser a obra

das suas mãos genéticas.

5.10.23

#2923

Dividíamos sarilhos

para nada ficar ao acaso

e depois celebrávamos.

4.10.23

Descompetência

Diz 

que são matinais 

os suores perdidos

no prefácio do dia. 

As ruas 

vão ganhando gente

ou dir-se-ia

vão perdendo o silêncio

matricial

enquanto a luz adolesce

e já não há corpos domados

pelo sono. 

Sobe

na pura verticalidade

um sangue paradoxal

feito de letargia e vontade

é o motor de arranque da cidade

que não espera por luares quiméricos

não espera

que sejam visíveis 

as palavras sem estribilho. 

O peso de uma nuvem

cerca a claridade;

o vento que a trouxe

deita-se na pele descaucionada

as miragens também têm 

rostos paradeiros

sem que se exilem 

num ontem fantasma. 

As pessoas 

são forasteiras entre si

não falam

entreolham-se na curiosidade furtiva

ou num arremedo de lascívia

o óbice de consciência que não se esconjura

metodicamente 

desconfiam até da sua desconfiança

como se fossem 

apátridas uns dos outros

que são terra sem linhagem. 

O retumbar dos carris

à passagem dos comboios suburbanos

o zunido soado por condutores apressados

(a confirmação

do princípio geral da despontualidade)

a vozearia de um bando de rapazes 

o rumor de fundo da cidade:

já tanto se descompõe a quietude

que doentio seria o silêncio. 

De que verbos fala o silêncio

se o desconhecemos 

na gramática em uso?

Os madrigais

pedem meças a um estado original

todavia irremediavelmente desvirginado. 

Está é uma doença sem redenção

chamem-lhe 

um coma vertiginoso

ou estado terminal 

se apetecer procriar uma especulação 

apocalíptica:

o senso nunca foi comum

cunhado por portas enviesadas

por onde entram 

os que afocinham na subserviência

nos contraplacados 

vendidos como madeira nobre. 

Ficamos 

com o dia entre as mãos

e não sabemos o que fazer com ele 

– o que fazer dele. 

Somos reféns 

da imperícia.

Injustiças indocumentadas (198)

A voz.

Avós.

A vós.

#2922

Partidário

da militância

de nada.

3.10.23

Embaixador

A luz violeta atravessa a pele enevoada

abraça o cansaço vertido na penumbra

e mesmo os boémios fartos esmorecem

ficam à mercê do arrebatamento dos sonhos

despojados dos seus espelhos feéricos

derrotados pela rima convulsiva dos opulentos.

 

Se a tarde não fosse esquecida

voltavam todos à esplanada

onde foram escansões das almas avulsas

a sua maior impertinência

desde o pequeno furto não documentado

já que o rescaldo da adolescência foi pueril

e inocentemente pacato.

 

Agora

as bandeiras brandidas desassossegam o palco

entram punhais mastigados pelas úlceras 

e todas as palavras se arrependem

as noites não dormidas sobem à boca de cena

como se um luar imprevidente convocasse

a redenção imperativa.

 

Eles não acreditam na redenção.

 

Se acreditassem

estavam em delirante negação do tempo 

e não têm coragem de costurar tamanha bainha.

 

Os corpos partem no etéreo enamoramento

mal suam contra as veias ateadas

as bocas falsificam os silêncios achados

verberam as falas mansas que soam a ardil

e depois

antes que uma dobra do tempo seja selada

na lombada da memória

esconjuram os meãos que tomam conta do fado

sublevam-se contra as vozes ordeiras

compondo o hino matricial do caos

porque se as pessoas são um ideal

se elas se aposentam na sublime destemperança

de quem desalinha do medo institucionalizado

não respondem por hinos ou bandeiras

não respondem à ditadura de velas aluídas.

 

Desobedecem galhardamente

porque sabem e precisam

de ser gente de si mesma pária

mas legítima diante de um espelho alheio

sem importar que esteja desbotado.

Injustiças indocumentadas (197)

Águas furtadas;

e ninguém se queixa.

#2921

Que meças as meças

antes de as pedires.

Injustiças indocumentadas (196)

Cansados

à primeira

vista.

2.10.23

O maestro que erradicou a melancolia

Erradicaste a melancolia

com o alto patrocínio da UNESCO.

Os teus pares

 

(e os ímpares também 

– que não és de discriminar 

por feição aritmética)

 

rasgaram os maiores elogios

e tu ficaste sem saber aonde estacionar;

não é de agora

nunca soubeste abraçar as loas

tu que, amoedado na humildade,

sempre habitaste na penumbra

e nunca aceitaste do desanonimato.

 

Hoje dizem-te

que por “serviços inestimáveis à comunidade”

vão imortalizar o teu nome

na toponímia da cidade.

 

E tu

que outrora erradicaste a melancolia

aos outros prestando o serviço 

agora sujeito a menção honrosa,

vês-te preso 

nos insidiosos barbantes 

de uma odalisca chamada

angústia.

Injustiças indocumentadas (195)

Prescrita uma quinzena 

na mais pútrida das trincheiras

a quem usar a expressão

“teatro de guerra”.

 

[Teatro

não se pode casar com guerra 

como sua palavra sucessiva]

Injustiças indocumentadas (194)

Sem carne

não há canhão.

#2920

É o cobre que cobre 

a pele desprotegida,

o antídoto contra 

a modernidade.

1.10.23

Baunilha

Ontem esteve um vento arrematado

um vento de ir aos ossos

e num instante ao acaso

deixei que o sangue subisse a eito

podia ser que apanhasse as rédeas do vento

mesmo que fosse sinuoso o vento

e deixasse em apneia

as consumições terçadas por vultos 

sem remorsos.

#2919

O contrabando perene

arrevesa a autenticidade.

Ninguém se importa

com a farsa dos sentidos.

#2918

Não é a meia-haste 

o nervo atraiçoado.

30.9.23

#2917

Tira 

a gola da alta da angústia

afinal, 

é Outono com ares 

de Verão.

29.9.23

Disco riscado

Veja-se como é

um disco riscado:

a iteração exaustiva

um gaguejar apoplético

o síndrome

do cão que corre atrás da cauda

a beleza extinta do silêncio ausente

uma teimosia que desassossega

os acrobatas públicos que se repetem

à exaustão

a matança da criatividade

sem pena a preceito.

O disco riscado

que vai e vem sem sair do sítio

miragem de um patíbulo fingido

e gente em forma de farsa

ou farsas ocupando o lugar de gente

e uma loucura incandescente

tomando conta do chão

subindo pelas paredes

ciciando no rosto desprevenido

colonizando as raízes onde se esteia

o pensamento

– o pensamento:

esgotado por dentro

um enorme vazio vacinado e contínuo

contra os outros.

O disco riscado

em surdina

com-pa-ssa-da-men-te

de três em três segundos

esvaindo a loucura.

Injustiças indocumentadas (193)

Motivo

de força menor.

#2916

A meação 

de duas verdades

faz uma mentira 

completa.

28.9.23

#2915

Sete são os cães

um só o osso

já rabos de palha

contam-se aos milhares.

Bolo mármore

Pólvora húmida

a rabear entre as folhas caducas

(sim, é Outono)

farejando o mijo das divindades

como se houvesse carestia de epifanias.

Se outros Moscovos viessem em barda

os passaportes não precisavam de validade.

Cumpriam-se no luar extático

e as pessoas

em imoderado encantamento

seriam lúdicos aprendentes de idiomas

e, peritas em diplomacia sem ardis,

apanhariam o vento marmoreado

na passerelle sobre o rio habitado.

Não se assustem os gentios:

não é um terramoto

é só o barman

a abanar o shaker.

Injustiças indocumentadas (192)

Disseram-lhe

és um diamante em bruto.

Levou a mal

e cobrou em moeda bruta

(ao tresler que era 

um diamante bruto).

Injustiças indocumentadas (191)

É igual ao litro

mas

não é igual ao quilo.

 

[Apologia da diferença]

#2914

Apadrinhas

o miradouro do tempo

para não caíres 

nas suas más graças.

27.9.23

Furacão

O poente

deixa de soar o dia

abriga um porto esconderijo. 

Tudo é falado em surdina

as paredes travam as palavras

que emudecem 

na fronteira da casa. 

É o tempo preferido dos sortilégios

que assentam coreografias

com o estuque dos vultos arrematados 

a argamassa retirada ao anonimato

preparando de véspera 

a urdidura do dia consecutivo. 

Sucessivamente

num ritual que não veste regras

sem autoria determinada,

até ao momento em que escrevo. 

É o dia que vai contar o futuro

ornamentando a gramática com entorses

assim como os dias madrastos

que compõem um palco a que os pés não subiriam

se soubessem do futuro antes do tempo. 

Deposto o medo

o idioma fica como testemunha. 

O úbere da memória não tem paradeiro certo

os procuradores da angústia foram demitidos

e as preces dos desafortunados foram decantadas

tudo se compondo numa mirifica paisagem

onde se combinam urze e mel

chuva teimosa e fertilidade

os rostos que irradiam leveza

e as montanhas escarpadas 

onde a vida se leva difícil. 

Não se exorcize o olhar estremunhado:

o sangue pulsa nas paredes das veias

arrebata as bandeiras que são uma farsa

e o corpo insubmisso atira-se ao precipício

sabe que o pode domar. 

Dizem-se palavras avulsas 

– o auge da autenticidade

como se fosse preciso mostrar credenciais

como os embaixadores da lucidez. 

Mas não é de lucidez que se cuida;

o vento que assobia o desmedo

desafia a angústia que procurava atestado

os ossos são a matéria que não se transaciona

assumem os esteios que uma identidade afigura

antes que deuses assassinos colonizem o bem,

assim disfarçado, 

e todos nós,

distraidamente 

(ou apenas sitiados pela letargia)

sejamos matéria fungível

um longo bocejo refém do acaso.