4.10.23

Descompetência

Diz 

que são matinais 

os suores perdidos

no prefácio do dia. 

As ruas 

vão ganhando gente

ou dir-se-ia

vão perdendo o silêncio

matricial

enquanto a luz adolesce

e já não há corpos domados

pelo sono. 

Sobe

na pura verticalidade

um sangue paradoxal

feito de letargia e vontade

é o motor de arranque da cidade

que não espera por luares quiméricos

não espera

que sejam visíveis 

as palavras sem estribilho. 

O peso de uma nuvem

cerca a claridade;

o vento que a trouxe

deita-se na pele descaucionada

as miragens também têm 

rostos paradeiros

sem que se exilem 

num ontem fantasma. 

As pessoas 

são forasteiras entre si

não falam

entreolham-se na curiosidade furtiva

ou num arremedo de lascívia

o óbice de consciência que não se esconjura

metodicamente 

desconfiam até da sua desconfiança

como se fossem 

apátridas uns dos outros

que são terra sem linhagem. 

O retumbar dos carris

à passagem dos comboios suburbanos

o zunido soado por condutores apressados

(a confirmação

do princípio geral da despontualidade)

a vozearia de um bando de rapazes 

o rumor de fundo da cidade:

já tanto se descompõe a quietude

que doentio seria o silêncio. 

De que verbos fala o silêncio

se o desconhecemos 

na gramática em uso?

Os madrigais

pedem meças a um estado original

todavia irremediavelmente desvirginado. 

Está é uma doença sem redenção

chamem-lhe 

um coma vertiginoso

ou estado terminal 

se apetecer procriar uma especulação 

apocalíptica:

o senso nunca foi comum

cunhado por portas enviesadas

por onde entram 

os que afocinham na subserviência

nos contraplacados 

vendidos como madeira nobre. 

Ficamos 

com o dia entre as mãos

e não sabemos o que fazer com ele 

– o que fazer dele. 

Somos reféns 

da imperícia.

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