27.10.23

#2945

O tempo

nunca deixou de ser

(a)manhã.

Injustiças indocumentadas (214)

Quem

(consegue ver)

corações

(de certeza)

caras.

#2944

Sentado ao colo do Outono

conto as folhas puídas

que atestam o tapete acobreado.

26.10.23

Carapaus de corrida

Virtudes eclipsadas:

protestava o elitista

com o consentimento 

do moralista incorrigível,

que de pantanas está o mundo

e já não têm serventia

as preces encomendadas 

aos druidas habituais. 

O monárquico afoga-se nos prantos

enquanto emagrece no saudosismo

o boçal já não acredita

que as mulheres tenham direitos

(ou, vá lá, um leve direito ao orgasmo)

o latifundiário todavia falido

lamenta que queiram banir as touradas

o reacionário beócio levanta estandartes

contra os prevaricadores que sopram a poeira

o beato condói-se só de supor

que se fornica desalmadamente 

por este mundo

dentro. 

Em movimento paralelo

o ilustre intelectual força consensos

sob a capa ultrajante do único pensamento

(que jura abjurar)

o profeta de futuros apocalipses

embebeda-se 

porque o mundo já devia ter acabado

o erudito continua convencido

que deve ser um pastor das iletradas massas

(cansou-se de genuflexões arcaicas)

o pastor social

dependem de um rebanho para apascentar

a ditar imperativos categóricos

enquanto enche a boca de democracia

e engana os tolos com papas

e um jovem precocemente militante

convencido que é lente dos mais velhos

arrota postas de moralidade.

#2943

Sentado no bolor,

bolça a podridão 

e inspira 

um gole de ar reatado.

25.10.23

Caudal

O crepúsculo

amadurece por dentro

da pele. 

 

O olhar

tingido pela madurez

sem adiamento. 

 

A carne

não desarma

das intendências. 

 

A claridade

arrasta as intempéries

sujeitas a outras latitudes. 

 

Digo

que as feridas abertas

dispensam suturas. 

 

Digo

que as cicatrizes vindouras

são o espelho de um estado contínuo. 

 

Aprendi

a prescindir da severidade

em nome de um nome vindicado. 

 

A centelha

continua desfolhada

a par do hino madrigal. 

 

Trago

a manhã arrumada 

no dorso. 

 

Não finjo

estados estultos

fantasmas perfunctórios. 

 

Tirei ao medo

um paradeiro e um património

e fiquei a par da liberdade. 

 

Arrumei

as luvas do desencanto

jurei desenganar a angústia. 

 

Apalavrei

este desprendimento

nas cicatrizes tatuadas. 

 

Espero

com juros imodestos

a paga em volta. 

 

Ou então

com o selo da modéstia

apenas o saber da vida perlongada.

#2942

Trouxe o verbo sem freio

colado à audácia destemperada

sem saber como batizar a fala.

24.10.23

Sem órbita

Gravado a fogo

o nome ouro esperava santuário

enquanto as juras submergiam 

no vulcão atónito

vertiam uma babugem 

como se fosse

parte de uma fala interminável. 

Os dados fugiam do tabuleiro

e as pessoas não iam a jogo

grevistas sem saberem no despojado chão. 

O nome era o ouro arrematado pela boca

e a língua nómada 

arrancava as palavras escondidas

gravando a medo a pose desautorizada

o meigo afago que desenhava o rosto

desmentindo os pusilânimes algozes

os que erravam nas cicatrizes das pessoas

agravando a insónia. 

De cada vez que o sol se levantava

os espelhos armavam-se 

contra a tirania dos farsantes

os déspotas também arrancados de dentes

mordendo por dentro das horas consecutivas.

Dizia-se dos adiares 

que eram escotilhas

o lugar sereno 

onde as pessoas guardavam os alfaiates

fossem de moda feita ou por inaugurar. 

Lívidos

os outrora reféns 

narravam a bondade dos torcionários

como os demoviam das monstruosidades

antes que fossem demitidos das graças 

e devolvidos fossem aos arcanos mosteiros

onde lápides convocavam o futuro. 

Sem ficarem órfãos da chuva celebrada

os miríficos tecedores de palavras

escondiam-se dos outros 

juntando-se 

aos poemas intemporais. 

De nada sabiam

os meãos paladinos 

que viravam as palavras do avesso:

sua era uma coutada sem morada

e da pele assumida ficavam de pé 

as sílabas profanadas

as sílabas que faltavam

para um sentido inteiro 

ser dado aos deuses.

Injustiças indocumentadas (213)

Dispensas algo

ou dispensas algo

a diferença

entre abdicar e prover.

#2941

Insistia no visível

o apuro ilógico da transparência

como se as casas dispensassem

as cortinas.

23.10.23

Injustiças indocumentadas (212)

Um sonho confessável

é poder escrever

com todas as letras sanguíneas

procederei em desconformidade.

Fogo ao ferro

Deste pensamento bastardo

os estilhaços que povoam a praça

são parco mandamento. 

 

Deste ao pensamento bastardo

o salvo-conduto matricial

a sibilina provocação nos rostos 

condenados.

 

Daqui ao pensamento

abastardam-se as estradas famintas

convocada a espuma onde se alinha

a disfarçada desonestidade.

 

Deteste o pensamento bastardo

antes que se anteponham

as existenciais dúvidas.

#2940

O voo rasante

corta as unhas da coragem;

mas ninguém precisa

de coragem.

22.10.23

#2939

Saída em beleza

em homenagem

à estética

 

(que nunca deve ser

omitida).

21.10.23

Turno

Era este expoente arregaçado ao luar

a ousada medida de um salto imprevisto

as páginas amarrotadas dignas de museu

espalhadas pelo destino dos estilhaços. 

 

O ternurento lamento 

ecoava a comiseração 

que retalhava a carne. 

 

Dispensáveis 

os pensos rápidos

um ataque silencioso ao magma anestesiado

e no fim de todas as contas

a ira é apenas arraçada

o mosto diuturno cimentando 

a ordem do tempo. 

#2938

O perjúrio

não é ouvirmos conversas

elas são servidas 

em explosivas garfadas

aos ouvintes involuntários.

20.10.23

Injustiças indocumentadas (211)

Não tenho palavras,

disse.

Lamentei 

tamanha penúria.

Avalanche

Um pressentimento

sobe a palco

selado para sarar o futuro

cobrindo a cortina de sombras. 

 

Os vultos são recusados

ficam à porta dos sonhos

a sua não é a gramática válida. 

 

Desta vez

eu é que subi a palco

e soube ser a matéria que sou

sob o jugo das luzes que irradiavam. 

 

Por ter sentido

que as luzes sabiam do meu magma

desimpedi as fronteiras ainda hasteadas

só à procura de mim

só à espera que o tempo

seja bom conselheiro.

#2937

Lá choveu,

meteu meteorologicamente conversa,

e ela, alegrando-se, perguntou:

onde?

Injustiças indocumentadas (210)

O senhor secretário de Estado

tomou (tanto) em consideração

que (já) devia estar enjoado.

 

[Entrevista radiofónica ao secretário de Estado do Orçamento]

Injustiças indocumentadas (209)

Fina é a nódoa

que só se deita

na boa fazenda.

#2936

Jogas as palavras

num labirinto arregaçado

na frase que está por vir.

Injustiças indocumentadas (208)

Isto

não é

o Texas

pois não.

19.10.23

Saltar à corda

Um espelho que se despenha

vertical 

no eixo do vazio

cozinhando no fogo embainhado.

No vale tardio 

os camponeses esperam 

pela pendência da velhice

amestrados em segunda grau

a contar os clérigos exilados.

 

Arrestam as suas artes ao pelourinho

preferem uma oferenda às divindades

antes que uma errante vingança

se abata.

E até os que se deitam ao paganismo

não insultam as divindades que não vêm:

ó embaixadores dos tempos

trespassados por mil soldadinhos de fancaria

aprovados nos ulteriores salões de boémia

tragam um excerto de futuro

para os embaixadores do medo

resgatarem a loja onde se desbarata o sossego.

 

As avenidas continuam sobrepovoadas

as almas à ilharga exibem a densidade:

as cidades arrumam-se depois

largas temporadas após se tremem esgotado

nos palacetes que guardam

as ideias barrocamente estultas.

 

Os olhos cruzados invadem-se

com o aparato da deselegância

sentem um burburinho 

a colonizar o sono postergado:

os dedos 

acobertam as páginas desimaginadas

que fogem sem trela por perto

ensaiando a tiracolo nas nobres decências

os homens encanecidos 

que não se escondem nem fingem 

um elixir

no enclave onde se apresentam as fardas.

 

Dão a noite por perdida,

agora que a insónia os enlaçou na alvorada

a destempo.

 

Se soubessem traduzir os incómodos

o dia por diante seria um longo eclipse

as persianas corridas fechando a luz do palco

e as pessoas

cabisbaixas

aprendendo com o porvir.

#2935

Adormeço

no regaço que congraça o sono

à espera da alvorada mecenas.

18.10.23

Levitação

O alvoroço ruge no dédalo da acalmia

desautoriza o medo que nos dizem contínuo

como se um estado permanente de intimidação

estivesse de atalaia

vigilantemente angariando a obediência. 

Lá fora

gatos vadios entretêm-se na coreografia do cio

desobedecem ao humano código de conduta;

obedecem na mesma,

o seu particular código 

de conduta. 

Peritos que mostram as credenciais à lapela

explicam que só todos formatados por regras

não seríamos uma anomia cacofónica

se persistíssemos na ausência de códigos,

empenhados no magma animalesco

reféns da ideia 

de que limítrofes são todos os demais

sem ambição de sermos alguém 

por fora das nossas fronteiras

nós, 

em cada individualidade concêntrica,

a granada desencavilhada no limiar 

do rebentamento

aos nossos pés. 

Muitas e elaboradas são as confabulações

avivadas pelo lastro do tempo

e a fonte da experiência,

provas incontestáveis de sermos 

um peão dentro da colmeia. 

Anestesiados

pelo saber enciclopédico

e pela humilde sujeição aos maestros 

que por isso nos regem

e esmagados 

pelos obscenos desexemplos contrafactuais,

os párias provam com a sua insubmissão

que são miasmas para o coletivo sobreviver:

aceitamos 

os códigos 

e as leis 

e os regulamentos

e todas as proibições 

e mandamentos inescapáveis. 

Confirmando-se

o Homem é lobo de si mesmo

autodidata da autofagia

viciado numa menoridade perpétua

que o torna meão. 

#2934

O rei não vai nu:

não andamos

numa monarquia.

Injustiças indocumentadas (207)

Nem em despojamento monástico

há quem seja pobre

e bem agradecido.

17.10.23

O mar mestiço

O mar mestiço

abraça a miragem. 

Combina a fúria

no mosto da tempestade

emancipa-se 

de todas as vontades. 

Tresleem na penumbra

um ocaso antecipado

e o mar mestiço

terça com seis braços

as espadas pusilânimes. 

 

Um mar destes

é luto de pescadores

e musa de poetas. 

São intransigentes

as injustiças 

que nos regem. 

 

O mar mestiço

não fala de lutos. 

Luta 

como se fantasmas se insinuassem

e pudessem ser um ónus. 

O mar mestiça-se 

para desarmadilhar conspirações. 

Amedronta e extasia

a uma só vez

enquanto caia o dia

com uma tela embaciada. 

 

Como há quem recuse

uma tempestade

como selo de bom tempo?

Injustiças indocumentadas (206)

É vão

o pesar,

terá sido 

em vão.