O tempo
nunca deixou de ser
(a)manhã.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Virtudes eclipsadas:
protestava o elitista
com o consentimento
do moralista incorrigível,
que de pantanas está o mundo
e já não têm serventia
as preces encomendadas
aos druidas habituais.
O monárquico afoga-se nos prantos
enquanto emagrece no saudosismo
o boçal já não acredita
que as mulheres tenham direitos
(ou, vá lá, um leve direito ao orgasmo)
o latifundiário todavia falido
lamenta que queiram banir as touradas
o reacionário beócio levanta estandartes
contra os prevaricadores que sopram a poeira
o beato condói-se só de supor
que se fornica desalmadamente
por este mundo
dentro.
Em movimento paralelo
o ilustre intelectual força consensos
sob a capa ultrajante do único pensamento
(que jura abjurar)
o profeta de futuros apocalipses
embebeda-se
porque o mundo já devia ter acabado
o erudito continua convencido
que deve ser um pastor das iletradas massas
(cansou-se de genuflexões arcaicas)
o pastor social
dependem de um rebanho para apascentar
a ditar imperativos categóricos
enquanto enche a boca de democracia
e engana os tolos com papas
e um jovem precocemente militante
convencido que é lente dos mais velhos
arrota postas de moralidade.
O crepúsculo
amadurece por dentro
da pele.
O olhar
tingido pela madurez
sem adiamento.
A carne
não desarma
das intendências.
A claridade
arrasta as intempéries
sujeitas a outras latitudes.
Digo
que as feridas abertas
dispensam suturas.
Digo
que as cicatrizes vindouras
são o espelho de um estado contínuo.
Aprendi
a prescindir da severidade
em nome de um nome vindicado.
A centelha
continua desfolhada
a par do hino madrigal.
Trago
a manhã arrumada
no dorso.
Não finjo
estados estultos
fantasmas perfunctórios.
Tirei ao medo
um paradeiro e um património
e fiquei a par da liberdade.
Arrumei
as luvas do desencanto
jurei desenganar a angústia.
Apalavrei
este desprendimento
nas cicatrizes tatuadas.
Espero
com juros imodestos
a paga em volta.
Ou então
com o selo da modéstia
apenas o saber da vida perlongada.
Gravado a fogo
o nome ouro esperava santuário
enquanto as juras submergiam
no vulcão atónito
vertiam uma babugem
como se fosse
parte de uma fala interminável.
Os dados fugiam do tabuleiro
e as pessoas não iam a jogo
grevistas sem saberem no despojado chão.
O nome era o ouro arrematado pela boca
e a língua nómada
arrancava as palavras escondidas
gravando a medo a pose desautorizada
o meigo afago que desenhava o rosto
desmentindo os pusilânimes algozes
os que erravam nas cicatrizes das pessoas
agravando a insónia.
De cada vez que o sol se levantava
os espelhos armavam-se
contra a tirania dos farsantes
os déspotas também arrancados de dentes
mordendo por dentro das horas consecutivas.
Dizia-se dos adiares
que eram escotilhas
o lugar sereno
onde as pessoas guardavam os alfaiates
fossem de moda feita ou por inaugurar.
Lívidos
os outrora reféns
narravam a bondade dos torcionários
como os demoviam das monstruosidades
antes que fossem demitidos das graças
e devolvidos fossem aos arcanos mosteiros
onde lápides convocavam o futuro.
Sem ficarem órfãos da chuva celebrada
os miríficos tecedores de palavras
escondiam-se dos outros
juntando-se
aos poemas intemporais.
De nada sabiam
os meãos paladinos
que viravam as palavras do avesso:
sua era uma coutada sem morada
e da pele assumida ficavam de pé
as sílabas profanadas
as sílabas que faltavam
para um sentido inteiro
ser dado aos deuses.
Um sonho confessável
é poder escrever
com todas as letras sanguíneas
procederei em desconformidade.
Deste pensamento bastardo
os estilhaços que povoam a praça
são parco mandamento.
Deste ao pensamento bastardo
o salvo-conduto matricial
a sibilina provocação nos rostos
condenados.
Daqui ao pensamento
abastardam-se as estradas famintas
convocada a espuma onde se alinha
a disfarçada desonestidade.
Deteste o pensamento bastardo
antes que se anteponham
as existenciais dúvidas.
Era este expoente arregaçado ao luar
a ousada medida de um salto imprevisto
as páginas amarrotadas dignas de museu
espalhadas pelo destino dos estilhaços.
O ternurento lamento
ecoava a comiseração
que retalhava a carne.
Dispensáveis
os pensos rápidos
um ataque silencioso ao magma anestesiado
e no fim de todas as contas
a ira é apenas arraçada
o mosto diuturno cimentando
a ordem do tempo.
O perjúrio
não é ouvirmos conversas
elas são servidas
em explosivas garfadas
aos ouvintes involuntários.
Um pressentimento
sobe a palco
selado para sarar o futuro
cobrindo a cortina de sombras.
Os vultos são recusados
ficam à porta dos sonhos
a sua não é a gramática válida.
Desta vez
eu é que subi a palco
e soube ser a matéria que sou
sob o jugo das luzes que irradiavam.
Por ter sentido
que as luzes sabiam do meu magma
desimpedi as fronteiras ainda hasteadas
só à procura de mim
só à espera que o tempo
seja bom conselheiro.
O senhor secretário de Estado
tomou (tanto) em consideração
que (já) devia estar enjoado.
[Entrevista radiofónica ao secretário de Estado do Orçamento]
Um espelho que se despenha
vertical
no eixo do vazio
cozinhando no fogo embainhado.
No vale tardio
os camponeses esperam
pela pendência da velhice
amestrados em segunda grau
a contar os clérigos exilados.
Arrestam as suas artes ao pelourinho
preferem uma oferenda às divindades
antes que uma errante vingança
se abata.
E até os que se deitam ao paganismo
não insultam as divindades que não vêm:
ó embaixadores dos tempos
trespassados por mil soldadinhos de fancaria
aprovados nos ulteriores salões de boémia
tragam um excerto de futuro
para os embaixadores do medo
resgatarem a loja onde se desbarata o sossego.
As avenidas continuam sobrepovoadas
as almas à ilharga exibem a densidade:
as cidades arrumam-se depois
largas temporadas após se tremem esgotado
nos palacetes que guardam
as ideias barrocamente estultas.
Os olhos cruzados invadem-se
com o aparato da deselegância
sentem um burburinho
a colonizar o sono postergado:
os dedos
acobertam as páginas desimaginadas
que fogem sem trela por perto
ensaiando a tiracolo nas nobres decências
os homens encanecidos
que não se escondem nem fingem
um elixir
no enclave onde se apresentam as fardas.
Dão a noite por perdida,
agora que a insónia os enlaçou na alvorada
a destempo.
Se soubessem traduzir os incómodos
o dia por diante seria um longo eclipse
as persianas corridas fechando a luz do palco
e as pessoas
cabisbaixas
aprendendo com o porvir.
O alvoroço ruge no dédalo da acalmia
desautoriza o medo que nos dizem contínuo
como se um estado permanente de intimidação
estivesse de atalaia
vigilantemente angariando a obediência.
Lá fora
gatos vadios entretêm-se na coreografia do cio
desobedecem ao humano código de conduta;
obedecem na mesma,
o seu particular código
de conduta.
Peritos que mostram as credenciais à lapela
explicam que só todos formatados por regras
não seríamos uma anomia cacofónica
se persistíssemos na ausência de códigos,
empenhados no magma animalesco
reféns da ideia
de que limítrofes são todos os demais
sem ambição de sermos alguém
por fora das nossas fronteiras
nós,
em cada individualidade concêntrica,
a granada desencavilhada no limiar
do rebentamento
aos nossos pés.
Muitas e elaboradas são as confabulações
avivadas pelo lastro do tempo
e a fonte da experiência,
provas incontestáveis de sermos
um peão dentro da colmeia.
Anestesiados
pelo saber enciclopédico
e pela humilde sujeição aos maestros
que por isso nos regem
e esmagados
pelos obscenos desexemplos contrafactuais,
os párias provam com a sua insubmissão
que são miasmas para o coletivo sobreviver:
aceitamos
os códigos
e as leis
e os regulamentos
e todas as proibições
e mandamentos inescapáveis.
Confirmando-se
o Homem é lobo de si mesmo
autodidata da autofagia
viciado numa menoridade perpétua
que o torna meão.
O mar mestiço
abraça a miragem.
Combina a fúria
no mosto da tempestade
emancipa-se
de todas as vontades.
Tresleem na penumbra
um ocaso antecipado
e o mar mestiço
terça com seis braços
as espadas pusilânimes.
Um mar destes
é luto de pescadores
e musa de poetas.
São intransigentes
as injustiças
que nos regem.
O mar mestiço
não fala de lutos.
Luta
como se fantasmas se insinuassem
e pudessem ser um ónus.
O mar mestiça-se
para desarmadilhar conspirações.
Amedronta e extasia
a uma só vez
enquanto caia o dia
com uma tela embaciada.
Como há quem recuse
uma tempestade
como selo de bom tempo?