16.3.24

#3092

Atravessas a vau

os espelhos abotoados

que fogem da memória.

15.3.24

Oficina

Retificação de motores

era a placa à porta da oficina

e lá dentro

pude espreitar

carcaças desnudarás

cilindros e correias

quase todas untadas em óleo negro e gasto

blocos de motor esventrados

uns em cima de estrados

outros, os pobres, jazendo pelo chão

desenfeitando o chão

e não percebi

os motores que estavam para cirurgia

e os outros

à espera de autópsia

depois de por eles terem assinado

testamento vital

e a trasfega de peças úteis acontecer

para motores outros então ainda mutilados. 

E fiquei sem perceber

se os olhos tinham passado

por uma oficina chamada retificação de motores

ou se era uma metáfora em maiúsculas

um sonho remediado.

Injustiças indocumentadas (313)

As bestas

não precisam

de ser quadradas.

 

(Se forem

elevadas ao quadrado

é caso para pensar)

Injustiças indocumentadas (312)

Os outros

não somos nós

por mais que tentemos.

#3091

O eclipse acorda os medos

às sombras regressa o império.

14.3.24

Simetria

Tiro desta fala

o testemunho maior

cobro

às varas que contam o futuro

os olhos embaciados

que se passeiam nas livrarias. 

 

Desejo o estatuto decaído

os telhados contrabandeados

as bocas teatrais e desemudecidas

um espartano anoitecer

na margem da loucura. 

 

Apago as luzes do dia

as cortinas baças abatem-se no equinócio

e sinto o aroma da Primavera

o corpo que nu se entrega

aos dedos que exaltam fantasias

o sentado sentir por dentro do sangue

enquanto as respostas se encomendam

ao próximo apeadeiro 

sem nome.

#3090

Um salto em altura 

até chegar

ao sonho cristalizado.

13.3.24

Deu-la-deu

Ana-ina-não

Tão-tão

Parlatão

Charlatão não

Um-dó-li-tá

Escabeche

Taran-tan-tan

Chelique

Ora bora

Borra 

Pim-pam-pum

Pin

Plin

Atchim

Cof cof

Psiu

Chiu

Ufa

Ala

Trim trim

Splash

Vruuuum

Miau.

Injustiças indocumentadas (311)

Um contratempo é uma dádiva

pois investe contra o tempo

não o deixa envelhecer.

#3089

Descubra-se o amanhã

mal se transforme em hoje

mas não se antecipem oráculos

não queiram

apanhar o futuro pelos colarinhos.

12.3.24

Floresta (a prazo)

Estendemos os dedos

acreditamos

que por eles as bocas tocam na lua. 

Não trocamos a luz clara do dia

pela noite postiça

dedilhamos os postais arrematados

de cidades forasteiras

onde vendemos diademas

e das ruas trouxemos as melodias dos idiomas. 

Deixamos tempestades por conta do ontem

brindámos aos dias consecutivos

não quisemos a abundância estéril

ou a indigência de palcos fátuos:

somos inventores do encanto

à medida que revelamos os negativos do dia

e juramos

na furtiva despedida do entardecer

não sermos dádivas da indigência

ou astrolábios das florestas desencantadas.

#3088

Movia-se a planetas

o ânimo à altura

das estrelas.

11.3.24

O véu da ignorância

Tu não sabes 

que as miragens escondem a carne submersa

os carris rombos que desassossegam os párias

que é pelas praias ermas

que se juntam os denunciantes do ouro

a matéria vaga em que amanhecem os olhos. 

Tu não sabes

que as vésperas albergam a gramática impopular

que os destinos se confundem com o dia abastado

e as sombras medram em folhas roubadas. 

Tu não sabes

que há idiomas sem verbo

e outros que recusam bandeiras

ou que se levantam poetas de uma casta rara

que escolhem estrofes singulares

e falam com a usura de figuras de estilo

devolvendo ao leitor 

a liberdade que antes não havia. 

Tu não sabes

dos punhos caiados pelo luar expoente

das marés caídas sobre os rochedos gratuitos

das costas das ondas 

que guardam segredos dos marinheiros

e dos mares que empenham os segredos

dos demais. 

Tu não sabes

e não queres saber

que há lugar na geografia do tempo

para não saber destes saberes.

Injustiças indocumentadas (310)

Não há

ideias feitas

só há

ideias por fazer.

Injustiças indocumentadas (309)

Não há nada tão gratuito

como o relógio da igreja

que dá as horas.

#3087

Os braços

rasavam o sol a eito

no alpendre ermo.

8.3.24

#3086

Disse:

vamos parentesiar

as desinterresâncias

as dores que comem as almas

as vírgulas que entaramelam a fala.

Injustiças indocumentadas (308)

Ainda bem

que o nervoso

(ainda) é miudinho.

7.3.24

Extinção

Plastifico o sangue 

não vá latejar na ebulição

e eu seja vulcão contrariado. 

 

Componho os telhados efémeros

contra a fala das velhas tempestades

é da carne feita que se fabricam as sílabas. 

 

Açambarco as desilusões sem paradeiro

no sono dos gatos furtivos

adivinhando as aleias da noite lunar. 

 

As janelas escondem o amanhã sem passaporte

as viúvas remedeiam o desmedo

nas costuras puídas pelas velhas mãos. 

 

As vozes são tomas diárias de coragem

barcos frágeis que fundeiam a despeito. 

 

O vivo sal enfeitiça as musas

desta fraca linhagem se diz soberania

os povos possuídos pela imoderação. 

 

E se ao enxofre digo oxalá

deixo ao cuidado dos copos cavernosos

esta herança feita de garfos antónimos. 

#3085

As mãos

que fazem as paredes

que arborizam a alma

que se devolve

a um rosto.

6.3.24

O avesso das profecias (ou profecias do avesso)

Já não sabia 

o que fazer com o futuro:

eram tantas as profecias

contra um futuro singular

que quase todas as profecias

participavam no erro.

Não ficou inquieto.

É da natureza das profecias

estarem destinadas a errar.

Por isso sempre disse

que preferia

as profecias sobre o passado.

#3084

Contra a tirania dos adjetivos

substantivar, 

como se fosse a fortuna

do caviar.

5.3.24

Amortecedor

Atiro paralelos aos pesadelos

convencido que os espanto

e depois

apenas titular de um responso

habilito a hábil transferência de pesares

de velha viúva 

para o jovem amordaçado pela angústia

o ancestral viveiro das dúvidas existenciais

que já não assombram a velha. 

 

Talvez haja telhados sem telhas

uma ardósia que dispensa o giz

crianças a pedirem o tempo vagaroso

mistérios que se emanciparam do anonimato

pais furtivos que não juram filhos. 

 

Colhe-se o incenso de ouro

que procede de sílabas serenas 

que sobem à boca literal. 

Ninguém pergunta pelos deuses

já tomaram conta dos desertos

só sabem ser curadores 

de ermos lugares sem gente. 

 

Um dia destes

tiro uma fotografia com o pneu abandonado

ou peço a um gato de rua

que seja poeta na minha vez

enquanto 

de fora

contemplo o ocaso dos sentidos

a perfeita elegia do dia. 

#3083

Um ombro

mesmo à mão

um arnês contra

a melancolia.

4.3.24

Crónica dos bons costumes

A burla 

trouxe sal para os olhos

dos burlados.

Mal deram conta do burlão

os heróis encapotados

assobiaram para a lua,

que estava magnífica

a lua.

O burlão correu os quatrocentos metros

em tempo pré-olímpico

não contava com uma barreira 

quando desfez uma esquina

e foi a esquina 

com a ajuda da barreira

que o desfez.

Ficou estatelado

queixava-se de dores lancinantes

talvez tivesse uma ou duas fraturas

ou então

eram 

(diria o povo tão obediente aos costumes)

as dores de consciência

da malvada da consciência.

Apurada a presença da polícia

os oficiais de serviço não escondiam o enfado:

tiveram de interromper o jantar

e as cervejas nem a meio iam

agora vão ficar mornas e imprestáveis.

Os oficiais de serviço

chegaram em câmara lenta

e, com denodo e elevado sentido de solenidade 

(ou, chamemos-lhe: complexo de farda),

prenderam o meliante

porque a ambulância chegou mais tarde

(os paramédicos não interromperam o jantar

e ainda por cima dava na televisão

o Vitória de Setúbal).

O burlão contorcia-se em dores

e o povo mesquinho

partidário do olho-por-olho-dente-por-dente

dizia com os pulmões inteiros

“é bem feito, seu pulha, é bem feito”.

 

Para crónica dos bons costumes

não está nada mal

anuiu o observador imparcial.

#3082

O corpo

toca a redenção

no poema vago 

que coloniza a manhã.

3.3.24

O tempo sem modo

Só do luar temos as mãos que juram o tempo. Dizem: a última vez. Nós é que ultimamos a vez em que nos deitamos ao poema. Sua é a palavra sem medo, o sortilégio expropriado à sorte. Não gostamos de profecias. Não queremos saber quando é a última vez. 

#3081

Não importa

dezoito ou dezanove

ou outro algarismo qualquer

desde que 0 > 1.

2.3.24

Injustiças indocumentadas (307)

Ninguém sabe

aonde fica

a fábrica de fazer tempo.

Renorte

Assaltas as vozes sísmicas que levantam

o medo. 

Juntas os estilhaços que herdaste

contas as espadas puídas

e adivinhas

os litros de sangue derramados

a estultícia que soa aos séculos atravessados. 

Povoas as fortalezas:

crês que não têm validade

os oráculos escondidos atrás dos ossos

os chapéus desfilados no fingimento de eruditos. 

Antes fossem atrasos 

os disfarces de progresso

antes houvesse indigência a atapetar as ruas

esgrimindo os rostos transidos de medo

e todos os desejos tivessem assinatura diária. 

Para depois

em cantos desastrados

descobrirmos os tentáculos que tudo sufocam

e num golpe certeiro

cortar a goela destes mastins

para então deixar assentar 

a luz fria que destoa da servidão.