15.5.24

Figura de estilo

O fogo posto

colhe a ideia hostil

perseguindo a absolvição

um reduto útil onde amanhece a vontade

no estuário que ornamenta a janela. 

 

Fogem os vultos assanhados

espartilhando as luzes desmaiadas

contra as injúrias que soam no silêncio

vazio o coldre participado de mentiras

no caudal estrénuo que inventa a noite. 

 

Em sentido

os mecenas visitam a fome inaugurada

juram a fome sem número

na moldura das mãos caiadas.

#3151

Juro:

sonhar,

acima das possibilidades. 

14.5.24

O assunto

O assunto 

olha de lado

desconfiado

maroto

receoso 

que o mudem de lugar

e que passe a ser

página datada

féretro

de toda a validade 

passada. 

O assunto

quer ser centrípeto

quer achas contínuas

para não deixar 

de estar ateado

e sempre, 

sempre

ser assunto. 

O assunto 

não tem medo 

do que haveria de ser

o medo maior:

que de tanta presença

de tão quotidiano se tornar

seja reduzido 

à indiferença.

Injustiças indocumentadas (354)

O ilegível

tornou-se

elegível

contra o anátema

do ininteligível.

#3150

Fujam, patrícios:

do  nevoeiro cheio vem

o almirante da gravata

pronto para a bravata.

13.5.24

Desfiladeiro

Em cada partida

as cinzas do futuro

a escotilha 

que esconde a janela

no pântano impróprio

o estremecimento 

onde findam os pesadelos

arcaicos. 

 

No paço que foge das vozes

o silêncio povoado de claraboias

irrompe com ferocidade

amotina-se com os punhais dormentes

no miradouro que espia as almas

incapaz de ser a sua própria 

atalaia. 

 

As juras são escombros

a decomposição anotada em ardósia

um gato a fugir do cão rival

as ondas desatadas na planta da piscina

ou a maré propositadamente baixa

o autógrafo gasto no chão possuído

pelos deuses arrancados 

aos tronos. 

 

Os garfos coreografados 

falam para a orquestra

não lhe dizem estar desafinada

os olhos desamestrados são peritos

em subjetividade

o mar imenso onde se esconde 

a hermenêutica que desaloja

o sentido único das palavras. 

 

Nos maios sucessivos

em véspera de um estio castigador

as malas são esconderijos

uma hibernação do avesso

antes que a frívola volúpia dos versos

contamine as mãos por inaugurar

o vento desassisado se amontoe

na garganta curada.

Injustiças indocumentadas (353)

Os quinze minutos de fama

duram muito menos

que quinze minutos.

#3149

Lidos os oráculos

crescia o apetite 

pelo passado.

12.5.24

#3148

Sob o fogo tempestuoso

as veias trespassadas

pelo pranto contumaz.

9.5.24

#3147

As marionetas,

ao menos,

não têm mau feitio.

8.5.24

Injustiças indocumentadas (352)

A mão de semear

desabrocha 

num legume 

ou num fruto?

Tutorial sobre a feitura de parágrafos

Não tenhas a régua e o esquadro

à mão

não te aflijas

nada se mede por uma métrica;

quando ter enjoarem

com resmas de doutrina

sobre

a medição do parágrafo perfeito

atira-lhes com a impureza crónica

essa latência que despoja 

as grandes ambições da humanidade.

 

A petição da autonomia

também se aplica 

aos parágrafos.

#3146

Altamente:

“conduta altamente criminosa”,

altamente.

7.5.24

Dúvidas deitadas aos diamantes

Das dúvidas às dúzias

não dissipadas 

mas dádivas

o dorso dorido ainda dançando

na dorna dividida pelo deão. 

Desmontada a dívida 

desmatam-se os daninhos

antes que debruçados sobre os dedos

desfaçam as dores desajeitadas

que desarranjam os diademas. 

Das dúzias que duvidam

deste ou daquele drama doloroso

dão-se os dotes datados

contra as divindades 

que destroem o dia dúctil.

Injustiças indocumentadas (351)

A festa

não tem de ser 

rija

sem que seja

mole.

#3145

O futuro

é o nonsense 

averbado na pele perdulária.

6.5.24

Solenidade

As manhãs são claras

quando nós queremos. 

 

Os malmequeres exibidos

destronam barragens 

antes que do dormitório se levantem

os compadres destemidos

e ciciem

contra os rostos letargos

os candeeiros vetustos que ainda escrevem

velhas grafias. 

 

No oceanário 

viceja um ecossistema diametral

irradia uma luz singular

que descafeina as grandes ilusões do tempo. 

A descrição dos mineiros das almas

são sempre parciais

metódicas farsas que dão sentido à mentira

agarrando o vento desbragado que entoa o Sul. 

 

As tardes

escondem-se no silêncio dos gatos dormentes

a planura cheia de jarras

e os olhos vazios deitados 

nas pétalas despojadas.

Injustiças indocumentadas (350)

Portagens

há muitas

seu palerma.

 

[Comentário: o PS fez aprovar a extinção das portagens nas SCUT quando o recusou fazer enquanto esteve no governo]

#3144

Na embriaguez do poder

o abismo que anestesia.

5.5.24

Elevador social

Não sejam endossadas as culpas

para o elevador:

a lotação está esgotada

a tradução que se saiba:

 

frívola ambição ou ansiedade legítima;

 

arqueado pela sobrecarga

o elevador não se alça ao apetecido

arreia 

com o peso sem mesura.

#3143

No salto da vida

o rancor do desvivido.

4.5.24

Injustiças indocumentadas (349)

Qualidade de vida:

qualidade devida.

#3142

O ermo pesar

e as lágrimas de atalaia

diz-se do sofrer

a humana aceitação:

um desdireito humano.

3.5.24

Despoluição

Cortês

o aspirante engoliu o ar com uma garfada

e bolçou o cavalheirismo untuoso

que só os distraídos apreciam. 

Convenceu-se

que ia derrubar uma árvore

para transformar em paginas 

à espera de palavras

quando lhe disseram

que faltavam os conhecimentos de química

e uma motosserra que não encravasse. 

Desiludido

e já não cortês mas antes enfurecido

o estroina 

estacionou na esplanada do jardim

e ditou alto o pedido:

rapaz

 

(dito com o desdém 

de quem atinge a cátedra

ao encontrar quem esteja 

num lugar inferior

na escala das castas)

 

traz-me uma caneca de meio litro

e um pratinho de caracóis. 

Os dedos encardidos 

escarafunchavam as cavidades dos caracóis

e ato contínuo

eram atirados para dentro da boca

onde era possível encontrar

“muitos e escurecidos

dentes cariados à mostra”. 

Ocorreu-lhe desopilar 

– ainda não se convencera

da impossibilidade de ser o artesão

na improvável demanda de transformar

uma árvore em resma de papel. 

Meteu-se ao caminho,

não sem antes ter dobrado 

a dose de cerveja,

ajeitando as calças puídas 

que escorregavam pelas nádegas abaixo

e já cambaleante

pergunta à estátua do professor de medicina

se lhe vendia uma aspirina. 

Indignado com o silêncio da estátua

chamou um táxi 

para o levar até à outra margem

onde o esperava 

o tubarão na companhia da esposa. 

“Ó tubarão” 

– enquanto apontava 

na direção do bote encalhado no lodo –

“a tua mulher está a precisar de uma dieta”

fugindo aos tropeções

antes que uma gaivota 

encomendada pela senhora tubarona

uma dose inteira de diarreia atirasse 

em cima de si. 

Saltou o tempo

como o atleta salta a corda

e acordou numa cama. 

Disse

numa cama,

não era a sua cama. 

Dado o conforto da cama

e as formas baças das paredes

e o pensamento que não conseguia ficar em pé

deixou-se ao vagar do sono. 

Quando acordasse

seria a altura de ser cortês

a quem lhe deu abrigo. 

 

(Mal sabia que era a rata da biblioteca 

– explicação ao leitor 

mais dado às coisas lúbricas:

rata da biblioteca

como feminino

dos ratos de biblioteca – 

e nem assim se tomou de pânicos

muito embora da rata de biblioteca

muitos dissessem

que tentara vezes à prova de conta

que um homem da cidade

bem que fosse o mais obtuso

lhe tirasse a condição pura 

com que viera ao mundo.)

#3141

Limpava o nevoeiro aos olhos

os garfos falando, exuberantes,

e tantos outros reféns ainda do sono.

2.5.24

Material

Os ossos falam pela manhã invernal

como violoncelos que arranham a dor. 

 

O miradouro esconde o luar caiado

na penumbra dos versos destroncados. 

 

Pela voz dos lobos furtivos

a rebelião encosta-se aos dedos. 

 

Atravessam a parede bocas famintas

logram o seu mantimento no avesso da pele. 

 

E os desajeitados deuses

insistem na alfabetização das almas puídas. 

 

Sozinho no escafandro

teimo no colóquio do medo trivial. 

 

Sobram as candeias gastas

a tradução da decadência sem costuras. 

 

O grito mancha o estuque neófito

os demónios (já) não aconselham a juventude. 

 

Sob a aparência de corpos

a ostentação dos envaidecidos mastins. 

 

À mão do poema as sílabas inteiras

um dicionário da audácia completa.

Injustiças indocumentadas (348)

Estando o inferno

cheio de intenções benévolas

o inferno merece 

(no mínimo)

uma estrela Michelin.

#3140

Há quem procure

e com um afã desesperado

o seu triângulo das Bermudas.

1.5.24

Autodeterminação

Lembro

os dias de fora

a boca pelo mar dentro

a pele povoada pelo verbo louco

as palavras que subiam pela mão. 

 

Lembro

a chuva forasteira

um olhar a devolver o paradeiro

a carne amanhecida num tremor

um atlas com o teu nome.

#3139

Digo ao espelho 

que a moldura lhe ficava bem

se ele me acusar de violar 

a dieta.