1.2.21

#1891

[Crónicas do vírus, CDLXIII]

 

Não chegam

as letras do alfabeto

para emoldurar 

o retrato da peste. 

31.1.21

Fora de moda

Não se diga

uma palavra

sobre as modas

que o silêncio

as devolve

as desmodas.

Na casa decimal

avalia-se o encargo

à revelia da lei,

não vá a ambição 

de estar in

perder-se na mealha rota

e acabar no entreposto

onde se arquiva 

out.

#1890

[Crónicas do vírus, CDLXII]

 

Assentamos nas ruínas

que herdámos 

da fragilidade.

30.1.21

#1889

[Crónicas do vírus, CDLXI]

 

Agora

de túnica vestido

o mundo espera.

29.1.21

Torre de marfim

Torre de marfim:

onde as vidraças

não cobram franquia

e as palavras se emaranham

numa gólgota medieval.

 

Torre de marfim:

onde, 

circunspectos,

fiscais fazem a corte ao zelo

e sonham

em sonhos sem sono

com judiciosas armadilhas

onde, 

impreparadas,

as pessoas são caçadas.

 

Torre de marfim

até ficar condenada

à verrinosa ferrugem

dos apóstolos da decadência.

#1888

[Crónicas do vírus, CDLX]

 

Um deserto

sem horizonte,

o ato isolado

que se demora.

28.1.21

A profecia que ninguém viu

“Estou pronta”,

avisou, 

a profecia,

com um pé delicado porta fora

sem saber da chuva torrencial.

“Estou pronta”,

repetiu, 

a profecia,

ao notar a indiferença da audiência

assim se sabendo sozinha.

“Digo outra vez:

es-tou pron-ta!”,

silabou, 

a profecia,

com todo vagar,

a convocar a atenção

quase em súplica

– quase como se fosse preciso

desenhar em legendas

a gramática da advertência

que encorpava

a profecia da profecia.

Ninguém a ouviu.

Quando a profecia se abateu

o esquecimento de todos

embaciou o olhar

e ninguém deu a mão 

à profecia.

À profecia

que órfã ficou.

#1887

[Crónicas do vírus, CDLIX]

 

À força

exílio,

antes que a forca.

#1886

[Crónicas do vírus, CDLVIII]

 

O paga do abuso

na sede

de sermos animais sociais

é a misantropia à força.

27.1.21

Punchline

Não prometo tréguas

se nunca dancei com a guerra.

Aos tiranetes da razão

brindo 

com uma infusão de loucura

e pé ante pé 

assombro-os

com o vulto de que me faço.

Aconselham

que ninguém mate com ferros

para em ferros não ser morto:

esse é o vão a que não me agarro;

deixo-o para os agiotas 

que vomitam 

por cima da métrica assisada. 

#1885

[Crónicas do vírus, CDLVII]

 

Não posso mudar 

de concelho

mas posso mudar

de conselho.

#1884

[Crónicas do vírus, CDLVI]

 

A revisitação da quarentena

como pretexto 

para a procrastinação de muitos.

#1883

[Crónicas do vírus, CDLV]

 

Desaprendemos

os nomes

dos corpos outros.

26.1.21

Gigante desadormecido

Ora:

é esta filigrana

que nos deixa em cabelos de ouro

o sono que entronca nos corpos nus

diamante sem bruto capataz

uma cornucópia tatuada no peito

com um nome sem recusa,

nos olhos vigilantes

não tementes.

À hora incerta

não declaramos um êxtase na alfândega

e ninguém nos quer prender.

O lobo uiva as sílabas sopesadas

e tiramos à sorte o devir

uma senha que escolhe o sortilégio

condensando nevoeiros baços

sobre as cortinas onde se esconde

a indigência.

Por ora

sabemos as páginas onde nos escondemos:

descontamos as onomatopeias

e a pontuação em desacerto

até do fundo do rio,

decantado o lodo,

extrairmos os ossos legados:

a mais pura 

das imperfeições,

percebemos logo.

A nossa, 

incomparável e incalculável,

imperfeição.

#1882

[Crónicas do vírus, CDLIV]

 

Esta matemática

que desassossega,

almirante 

de um sinal escatológico. 

25.1.21

Manifesto contra a nudez

Açambarco a roupa

que a nudez me embaraça.

Se ao fundo do lago vou

é por saber que, 

submerso,

o corpo se resguarda

do olhar invasivo.

O corpo imerso

cuida da sua tolerância.

Não se blasona

 

(não que não houvesse 

causa própria)

 

nem se exibe

atentatório

contra o zelo da estética.

Trago a roupa ao corpo

em vergonha própria.

Diletante

capitalizo a nudez

contra o jugo do preconceito

ao lado de quem o toma 

como caução.

#1881

[Crónicas do vírus, CDLIII]

 

“Depois da peste”:

haverá

um depois da peste?

#1880

[Crónicas do vírus, CDLII]

 

Depois da peste,

recriar

ou morrer?

24.1.21

#1879

[Crónicas do vírus, CDLI]

 

A peste:

a quinta estação

contra o avoengo calendário?

23.1.21

#1878

[Crónicas do vírus, CDL]

 

O perfume da distopia:

parecer fora-de-lei

ao visitar a rua. 

À revelia

Digo-te

que me torno o alçapão

por onde se decompõe

a bandeira do ocaso

erradicando

os errantes dandies

que afocinham nas faldas do passado.

 

Digo-te

que não trago em mim

o avental descabido

nem me povoam

palavras desabridas

ou contextos milenares

ou me acorrento ao murmúrio contrafeito.

 

Já te tinha dito:

não contem comigo para

messianismos indigentes

farsas habilitadas por bem-postos senhores

concursos de malbaratada erudição

uma esgrima de emoções

ou palcos de gente meã

disfarçada de sociais galantes.

 

Digo-te

assim mesmo

que sou astronauta 

por dentro do império

recolhido em meu labirinto.

Toda esta simples complexidade

noite por dentro do dia

mentira contada a todas as mentiras

presa com armas de caça

pressentimento virado do avesso,

assíduo contumaz:

um poeta à revelia.

22.1.21

O burocrata

O burocrata

não lê poesia.

Não lê;

só lê

as detalhadas ordenanças

que estipulam o irrisório

e depois esquecem

lana caprina.

O burocrata

não tem orgasmos

(a não ser

quando lê as ordenanças

que o conduzem à excitação

e etecetera e tal).

O burocrata

não sabe o que é o mundo

nem a cor de gastronomia forasteira.

O burocrata

usa gravatas lilases.

O burocrata

respeita escrupulosamente

a monotonia.

O burocrata

sabe de cor

os corredores do bafio

e detesta fragâncias.

O burocrata

não transige na métrica

que é o seu vocabulário.

O burocrata

hiberna.

Oxalá

o burocrata

soubesse sonhar.

#1877

[Crónicas do vírus, CDXLIX]

 

Neste janeiro

só os pássaros

podem voar.

21.1.21

Motivo

Daquela angra

uma colher sobre o mar

e nem sal

nem um pouco do suor estimado

em maresias tardias.

Altivo

veio crismar

o oceano:

eram faustosas

as estrofes a ele dedicadas

mas eram apenas uma farsa:

nos fardamentos encorpados

as algas faziam de eruditos

escorregadiças,

ardilosas,

em seus cenhos de fealdade.

À doca veio encontrar-se

com a usura das marés.

Num póstumo candelabro

as virtudes apanhadas por junto,

num único molho,

reduzidas a um módico,

eram a angular estafeta

entre as ideias avulsas.

Que ninguém procurasse 

a coerência:

ninguém demandara aquele pedestal

com essa incumbência.

#1876

[Crónicas do vírus, CDXLVIII]

 

Os dias de não mais

(epifania da liberdade)

estão para quando?

20.1.21

#1875

[Crónicas do vírus, CDXLVII]

 

Jogamos o jogo

ou deixamos que outros

atirem os dados?

Justiça

Apodrecem nas mãos

as vozes estilhaçadas.

E não se insurgem

os mundos que se escondem

da indigência malsã.

 

Estilhaçam na pele

os rostos decadentes.

E não se conformam

os povoados que se fingem

no teatro ensinado.

 

Decaem no corpo

os sexos resgatados.

E não se arruínam

os desejos que se adestram

na imaginação caudalosa.

#1874

[Crónicas do vírus, CDXLVI]

 

Regressamos

às nossas torres de marfim

aquartelados contra os fantasmas.

19.1.21

Céu sanguíneo

Um céu sanguíneo

a ler o dia 

ainda matinal,

moeda franca

de um olhar sem arestas.

O céu sanguíneo

esculpe a curvatura do tempo

e ao longe

num trejeito efémero

a névoa dissolve-se

no rosto desapossado.

#1873

[Crónicas do vírus, CDXLV]

 

Para a alfaia do medo

é preciso 

(saber como)

meter medo.