[Crónicas do vírus, DCCXCIII]
Legados da peste (109):
o medo
não se paga
com a tença do abismo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Era sem saber da lareira
que o Inverno se acomodava
entre os poros cansados
e as preces não atendidas
dos seus inimigos.
Se ao exílio comparecessem
os arrojados embaixadores da fecundidade
prover-se-iam de toda a carne a jeito,
a vantagem não artificial na boca do desmedo
rindo, gulosamente,
contra os padrões.
Não sabendo do exílio
não se sabia do seu paradeiro
a loucura espalhada pelos átomos de todo o chão
chamando pelos fugitivos desamparados
seduzindo-os com a armadilha do fingimento.
E eles
já não sabiam
se era de exílio que cuidavam apascentar
ou se era apenas o idioma estilhaçado.
A fábrica ao longe,
marcando
o horizonte que separa do desconhecido,
moderava as sílabas
que medravam das bocas famintas.
Não era o túmulo onde,
serenos,
druidas esquecidos
povoavam a errática condição.
Os vultos não consentiam a identificação.
Ninguém anda pela rua
a perguntar os nomes.
[Crónicas do vírus, DCCXCII]
Legados da peste (108):
não fosse errática a peste
maus não seriam
os ofícios dos regentes
(segundo o estalão benevolente).
[Crónicas do vírus, DCCXCI]
Legados da peste (107):
pandemia-pandemónio
um leve travo
a manicómio.
Os nomes não eram surdos.
Plantados contra as ervas daninhas
cresciam pelo mosto do orvalho
desmentindo os oráculos sombrios.
De cada vez que vinham à boca
eram resgatados ao desaparecimento
e ficavam a adejar sobre a impossibilidade
como se fossem elixires à mão
irrecusáveis convites para ladrões de almas.
Na contingência da estrada sem noite
marcávamos os olhos com areias vivas
e sabíamos
que um destes dias os frutos colhidos
dariam conta da nossa safra.
Até lá
jogávamos os nomes contra os estilhaços do dia
amparados pelas mãos invioláveis
e pelo verbo
que só as nossas bocas sabiam entoar.
[Crónicas do vírus, DCCXC]
Legados da peste (106):
a peste terça as garras
e espreita
com seu insidioso estar.
Um tempo perdido
arrancado ao céu embaciado
jura que não será repetido.
Os tiranos sem punição
com a bênção de deuses ínvios
mastigam almas sem guarida.
Tiram à sorte a sua cautela
súbditos sem fala
enquanto olham, passivos, o devir.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXIX]
Legados da peste (105):
um passo atrás
serve para
depois
dois à frente?
[Crónicas do vírus, DCCLXXXVIII]
Legados da peste (104):
há sempre tempo
para dar um passo atrás.
Não há mudez por antecipar.
É o Evereste de todos os dias
a fala imperativa
o estorvo derradeiro
à solidão.
Não se conjugam verbos
no nevoeiro que tudo embacia:
contadas as sílabas
com o vagar da indolência
sobra um tudo imenso
à conta da narração.
A fala fica
então
à espera da comenda
antes que o sangue se cale.
Lá fora
novembro tardio.
De uma árvore à espera da nudez
o outono repara
no grasnar de uma ave.
Já anoitece
a uma hora gentil no Verão.
Não se enlouquece
nas cortinas desamparadas
que são a estiva do dia.
Seja o isco da temporada invernal
a hibernação fingida no temor das tempestades;
tanta embriaguez dos elementos
joga-se contra a pele impreparada
e as varandas medem a estultícia dos homens.
Não sei da torre de Babel.
Às tantas
anda perdida no estômago de um labirinto
e as vozes que emudecem
podiam ser portadoras de tanta tinta;
mas os vultos
querem ser perenes
ornamentar os sonhos
esperar
pelas preces ditadas por combinações improváveis
enquanto os peixes fogem do isco
e das uvas quase podres
se lobriga um vinho de paranças singulares.
Desajeitado
não me proponho à dança.
Quisessem outras artes
(murmuro
sem disfarçar o esgar de ironia).
Se atravessarmos o canal
medindo o peso de cada onda
deixaremos em doação uma parte de nós.
Desminto o novembro farsante:
as páginas estavam perdidas
a meio da ferrugem que tingiu as palavras
e a mudez passou a ser critério.
De mim não escutarão
palavras exangues
oráculos imprecisos
o leite diuturno em cabazes de pele
estrofes desarrumadas na tirania da métrica
juras sem filamento
ou almocreves em desvario.
Se a estas desmodas me dou
sei que de mim não se espera hipoteca.
É o que o novembro a destempo
ajuramenta.
Marco
a tinta-da-china
o lugar.
Desfaço
com as mãos frias
as ameias.
Devolvo
no esgar mecanicista
o verbo.
Imagino
no sofá de um poema
o sangue último.
Acabo
no anoitecer válido
a especular.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXV]
Legados da peste (101):
o rosto cansado
de uma liberdade
condicional.
O relógio das parecenças
só sabe falar com metáforas.
Mal se afunda
num dezembro sorumbático
desfia um rol de provérbios
até a linguagem ficar exangue.
É da cepa dos gongóricos
– esses aspirantes à erudição
farsantes de um conhecimento pronto-a-vestir.
São parecidos
e não sabem ser
mais do que isso.
Suas não são as páginas escorreitas
eles apenas lagares do lugar-comum
verbo repetido
no espelho em que não são eles
a imagem devolvida.
Se fossem filhos de si mesmos
seriam os primeiros parricidas.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXIII]
Legados da peste (99):
não se diga
a destempo
que encerrado
está o assunto.
O jornal começava na página quatro.
A tarde esperou que a andorinha se deitasse.
O polícia abusou da bolacha americana.
A tia vetusta subiu a saia um dedo acima do joelho.
O artista internacional sorriu ao porteiro do hotel.
No cemitério não havia portas abertas à noite.
O estroina fazia-se à vida à boleia do elétrico.
Os versos arrumados combinavam uma conspiração.
O rio não adormeceu a convite do luar.
A mulher sozinha perdeu-se no jardim central.
As velas nas casas não eram um idioma.
O rústico habitar remoto dispensava companhia.
O medo de ter medo rimava com a loucura.
Os dados percorriam o suor dos dedos.
Os amantes desamparados fugiam das lágrimas.
O vinho colhido aprendia a saber os dias.
Os candeeiros apagados amaldiçoavam a noite.
Os socalcos dispunham-se na vertigem do entardecer.
A tiara açaimada escondia-se dos aspirantes.
O grande palco indiferente não dispensava as almas.
Em vez de um sensato abocanhar do dia
a demencial escapada nos interstícios da boémia.
A véspera colonizava a emergência do futuro.
As pessoas avisadas não sabiam do futuro.
Colmeias inteiras ensinavam os misteres.
À mesa dos reis sabiam-se pútridos comensais.
Na voragem dos pressentimentos achava-se um escudo.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXII]
Legados da peste (98):
viradas do avesso
as bandeiras
falam um idioma árido.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXI]
Legados da peste (97):
o espelho da desídia,
viperino,
a tomar conta da clepsidra.
Tira as teimas
de cima do joelho
e atira os despojos
para a rasante do rio.
Se não chegar a incumbência
sopra
(em seco)
umas velas de aniversário
e destina ao oráculo que vier
as impressões digitais antes das cesuras.
Dizem os sábios
que a armadura dispensa o polimento
se na carne estiver embebido
o estandarte desarmado.
E se as teimas forem teias
que se desprendam as sílabas
das arcanas algemas que sopesam as eras.
Esta mortalha
sopra um amarelo iracundo
resolve a litania rastejante
num abraço entre as sílabas cantantes
movimento que sabe não ser perpétuo.
Queria dizer:
eu sou perpétuo;
mas logo a mortalha residente
desocupa as estridentes esperanças
no torno onde se afeiçoam os lúgubres peões.
Os vultos
com parecenças com abutres de atalaia
dirão
que um dia haverá
sem ser o amanhã da véspera.
[Crónicas do vírus, DCCLXXIX]
Legados da peste (95):
ficámos entre mãos
com uma caricatura
do que fomos.
De nota artística:
o roube eloquente
disfarçado de autoria
militava a favor da estultícia.
Os narradores enfeitiçados compunham a sala.
Do lado de lá da lombada
a audiência
num frémito enquanto as palavras não eram
embuçadas.
Não se sabia do entardecer
que (consta) tinha sido convocado
mas continuava empedernidamente contumaz.
(Acontece
às almas dissidentes
que evocam um sentido de misantropia
de cada vez
que uma multidão é a manta que os acolhe.)
De vez em quando
um murmúrio assaltava o estranho silêncio:
reclamava a seu favor
a atenção das divindades de atalaia
em vez das vezes perdidas
nos corredores da impaciência.
Os luares emaciados não desistiam.
Pediam vozes fundas
que trouxessem no dorso das sílabas
os parapeitos coloridos de verbos famintos.
Às regras enquistadas
sobrepunha-se a angústia escondida
no avesso da língua turgida.
As bocas esperavam
para serem os úberes das vozes que irrompiam
contra a mudez.
(Os roubos invisíveis
tomavam conta das almas sentidas
enquanto a geografia se tornava um verso
e os animais não fugiam do retrato.)
Soubessem das chaves do desmedo
e todos subiriam a palco.
As janelas continuam do avesso
cumprindo-se juras sem fiel depositário
à espera que seja noite
e do crepúsculo se levantem as falas inteiras.
Os bravos meãos silenciados
não arredavam pé:
deles seria o sapato sem paradeiro
ou apenas se cumpriam
como os labores que não perdem pela demora
– e o palco continuava em deserção.
Não importava nada.
Os olhos eram todos campestres
tributários de uma singularidade desarmante
e neles se compunham as estrofes
que pediam sonhos em vez de ouro.
[Crónicas do vírus, DCCLXXVIII]
Legados da peste (94):
a miragem
tão demandada
é o antídoto cabal.
[Crónicas do vírus, DCCLXXVII]
Legados da peste (93):
nunca deixamos
de estar a tempo
de alinhavar a marcha-atrás.
O som das árvores
ecoa na planície
o ostensivo ranger de dentes
que pede meças ao silêncio.
Os oráculos, hiperativos,
dedicam-se à prestidigitação do passado
movendo-lhe as costuras
até serem a sombra pálida
do espelho que protesta contra o pretérito.
Os dedos imprevidentes atiram-se ao futuro.
Pecam por defeito:
se as medidas estivessem calibradas
o futuro seria apenas
uma remota lembrança.