2.7.24

#3201

Tudo era estaleiro

provisório e inacabado

domínio da obra nunca feita.

1.7.24

Injustiças indocumentadas (382)

Estar mortinho por 

é como andar 

em tronco nu 

no Inverno.

#3200

A chuva 

que não dorme

e adia este Inverno

que inferniza.

30.6.24

#3199

Encontro marcado com o marasmo: 

o destino em forma de abreviatura.

#3198

Há 

na ausência de um ponto final 

o entusiasmo galopante 

do infinito.

29.6.24

#3197

Há mudança 

(plural); 

à mudança 

(singular).

28.6.24

Afurada, S. João

 

Não me deito na luz desmaiada. Tenho dentro de mim o crepúsculo que se dá a verter na falésia sem nome. O avesso da claridade avulsa no relógio perdido, uma jura de memória cumprida. Um estuário intemporal.

Loja

Corpos em lágrimas

navegam nos dias sem sombra

conspiram contra as conspirações

em dialetos escondidos dos dicionários.

 

Abraçam as árvores crepusculares

poemas que ficaram por escrever

usam a didascália para adivinhar o sol

na métrica rebelde que fica por cuidar.

 

Lágrimas de corpos

desenham mapas na custódia do sol

convertem as convergências em dissidência

em idiomas à mostra nas mãos abertas.

#3196

De lés a lés 

a vergonha ao léu. 

27.6.24

Medalha de comportamento assim-assim

Um curso de mercurocromo

pois da velha radiação

sobram os esqueletos gastos

e das dores não somos reféns 

– e a carne não precisa 

de negras nódoas.

 

Um qualquer estoico

bebendo na fonte original helénica

compensaria

a amalucada insensibilidade ao sofrimento

com um vinho de tasca

um comprimido lisérgico

e um lampejo de ópio para arrefecer a febre.

 

Mas isso somos nós

ausentes da medicina

verdes em substâncias

 

(ou seja: a-substanciados).

#3195

Sem o dolo da farsa 

sobe a palco a maresia 

dos mecenas sem nome.

26.6.24

Trovoada de Verão

Eram todas estas contradições

a trovejarem 

sobre todos os ontem de que és feito:

um pião a rodar ao acaso

a ementa por gastar

ao longe um uivar de cães sem sono

as artes talvez de pesca deixadas para trás 

um diplomata perdido na conspiração da tarde

e tu, 

tão melancolicamente jovem,

convencido do passado

empenhado

até à medula mais funda das pobres moedas. 

Não encontravas 

o mel que dizias rimar com as palavras

mas só as que tinham a tutela da tua boca;

em vão

sobre o vau em que giravam os rostos avivados

uma serenata sem musa ocupava o som,

deletéria,

arrematando os nós da alma 

contra as tempestades

no atroz medo que não te pedia licença 

à mostra do vento

em incontáveis esgares que disfarçavam 

o rosto. 

 

Ouvias dizer que o luar tudo curava. 

 

E falavas com a lua

noites a eito

sem perceberes 

que não eras curador de um diálogo. 

De cada vez 

que o teu peito esbarrava no lodo do cais

subias as muralhas

outrora inacessíveis

só para dizeres

com a voz inteira com que foste criado

que podiam tirar a argamassa do medo

coar o colostro dos demónios

para te declares dono do estuário todo. 

 

E ainda que desmentissem 

a posse desse império

não te importavas:

esse foi um usufruto apenas declarado

nas tuas interiores áleas 

feitas de sangue dourado.

#3194

Dos bastidores 

ecoa a opacidade 

e os vultos transgridem 

a transparência. 

25.6.24

Se fosse radialista nunca passava Ana Lua Caiano

Se fosse radialista

nunca passava Ana Lua Caiano. 

 

Se fosse turista

nunca seguia os roteiros. 

 

Se fosse otimista

não apertava a mão ao Costa. 

 

Se fosse tribal

mandava o Ventura à merda. 

 

Se fosse consensual

desmentia os gurus das almas. 

 

Se fosse transparente

não tomava hóstias ecuménicas. 

 

Se fosse teimoso

aconselhava atores canastrões

a serem apenas canastrões. 

 

Se fosse mecenas

subsidiava o silêncio sabático

de uns quantos soi-disant artistas. 

 

Se quisesse reconhecimento

vendia a alma a mercadores de almas. 

 

Se fosse erudito

calava a angústia. 

 

Se fosse criança

era só para poder dizer

quando for grande quero ser. 

 

Se fosse adulto

era para voltar à infância. 

 

Se fosse resistente

só me importava com o porvir. 

 

Se fosse engenheiro

tocava piano. 

 

Se fosse elegante

não enchia a boca de tolos. 

 

Se tivesse frio

não vivia aqui. 

 

Se fosse preguiçoso

não tinha vergonha dos adiamentos. 

 

Se fosse míope

era refém das ideias cristalizadas. 

 

Se sofresse de medo

precisava de meia-dúzia de gatos. 

 

Se não fosse por nada

tinha a mania de muito. 

 

Se não fosse pela cristaleira

era o elegante elefante 

mesmo no meio da sala.

Injustiças indocumentadas (381)

Alegre mente

alegremente

alegre ente.

#3193

Como uma avalanche

avassaladora

a devassa em forma de ritual.

24.6.24

Considerações finais

Queria ser corsário

servir às árvores as lágrimas

sentar no miradouro o vinco da noite

e segredar

só ao teu ouvido

o paradeiro das quimeras sem noite. 

 

Queria

que de mim soubesses o amor

em estrofes imunes a regras

até deitarmos ao luar vigilante

as candeias que acedemos com as bocas

nós

periscópios de nada

mecenas em nossa posse

imperadores.

#3192

Levo o auto ao prontuário:

é a revisão dos vinte mil

as palavras precisam de inspiração.

23.6.24

Injustiças indocumentadas (380)

Viajem 

a viagem.

 

[Aconselhamento]

#3191

Para memória futura:

cortejar 

não é esquartejar.

22.6.24

#3190

Ainda

há bruxas.

 

[Extinção, em vias]

21.6.24

Centenário

Todas as mãos são ecuménicas

beijam-se no avesso da lua

onde se encontram no atear da vontade. 

Não se evitam 

no lacustre evocar das calendas

pois mãos desse modo quase incestuosas

perfumam as convenções decadentes

com o pestilento unto que as desaprova. 

 

Os murmúrios chegam para fazer uma voz. 

 

Despertencem, 

vagarosamente gastos

no diamante baço 

roubado aos braços dormentes

adestrando coisas inverosímeis

que acabam na malha das possibilidades. 

 

Pudessem os rios 

nascer nas sombras dos rostos

pudessem alistar-se nos navios mercantes

e trazer vestígios dos lugares alcançados

só para os oferecerem

com a mão sabiamente estendida

até povoarem um sol da meia-noite

e serem caução de paisagens geladas

sepultando os abismos perpendiculares.

#3189

Extinto o dia

ateia-se a luz sobre o sono

a morada completa

de um palimpsesto da vida.

20.6.24

Matilha & mendigos

A boca do cão

fermenta a saliva 

e as palavras embaciam

esbracejadas contra o cais tardio.

 

Mendigos disputam a madrugada

no ainda sono para os demais;

arrastam-se

as ácidas pestanas

disfarçam o dia nascido puído 

– e eles, 

robotizados no sofrimento fatiado, 

arrastam-se pelo dia fora.

 

O ladrar dos cães 

sente-se distante

mas ninguém sabe da matilha.

Houvesse ossos rejeitados por um talho

para a matilha ganhar um fio condutor

e os mendigos escolarizados

teriam então a arte de serem gregários.

 

Os cães 

(dizem)

ficam a léguas da racionalidade

mas são os mendigos que mendigam.

Mordaça

Confissão,

um avesso escondido

quase a perder a linhagem

de segredo. 

 

E:

 

segredo

verbos proscritos

no desembargo 

de uma confissão. 

#3188

Apanhado em falso 

sem o chão sob os pés

à mentira disse presente.

19.6.24

Seara dos ventos

Um adeus salgado

desaprova a melancolia.

A floresta funda

desamanhece os animais

os ramos ainda crepitando de sono.

Um filão esconde-se no silêncio.

Sujas são as águas

povoadas pela fala domesticada

reservadas num enquanto hesitante

como se fossem um robe matinal.

O orvalho escreveu uma estrada

e sei que não desfalecem 

os mapas autistas:

se seguir as mãos superlativas

elas levam-me à harpa

que enfeitiça a História.

Injustiças indocumentadas (379)

Isso passa

com uma passa 

que passa e passa.

#3187

No olho de lince

vertida 

a certidão de lucidez.

18.6.24

Banda larga

Esteiros de águas paradas

a banda larga no sonho das mãos

cavalgam marés iracundas

no salão de festas sem diplomatas.

 

Arroios inflacionados por tempestades

debandam detritos pretéritos

perdidos no tempo gasto

a caminho de um paradeiro ao acaso.

 

Motejos caídos no pano avulso

combinam com a leveza da tarde

deixando senhores de queixo caído

dantes sisudos por ora estrelares.