Tudo era estaleiro
provisório e inacabado
domínio da obra nunca feita.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Não me deito na luz desmaiada. Tenho dentro de mim o crepúsculo que se dá a verter na falésia sem nome. O avesso da claridade avulsa no relógio perdido, uma jura de memória cumprida. Um estuário intemporal.
Corpos em lágrimas
navegam nos dias sem sombra
conspiram contra as conspirações
em dialetos escondidos dos dicionários.
Abraçam as árvores crepusculares
poemas que ficaram por escrever
usam a didascália para adivinhar o sol
na métrica rebelde que fica por cuidar.
Lágrimas de corpos
desenham mapas na custódia do sol
convertem as convergências em dissidência
em idiomas à mostra nas mãos abertas.
Um curso de mercurocromo
pois da velha radiação
sobram os esqueletos gastos
e das dores não somos reféns
– e a carne não precisa
de negras nódoas.
Um qualquer estoico
bebendo na fonte original helénica
compensaria
a amalucada insensibilidade ao sofrimento
com um vinho de tasca
um comprimido lisérgico
e um lampejo de ópio para arrefecer a febre.
Mas isso somos nós
ausentes da medicina
verdes em substâncias
(ou seja: a-substanciados).
Eram todas estas contradições
a trovejarem
sobre todos os ontem de que és feito:
um pião a rodar ao acaso
a ementa por gastar
ao longe um uivar de cães sem sono
as artes talvez de pesca deixadas para trás
um diplomata perdido na conspiração da tarde
e tu,
tão melancolicamente jovem,
convencido do passado
empenhado
até à medula mais funda das pobres moedas.
Não encontravas
o mel que dizias rimar com as palavras
mas só as que tinham a tutela da tua boca;
em vão
sobre o vau em que giravam os rostos avivados
uma serenata sem musa ocupava o som,
deletéria,
arrematando os nós da alma
contra as tempestades
no atroz medo que não te pedia licença
à mostra do vento
em incontáveis esgares que disfarçavam
o rosto.
Ouvias dizer que o luar tudo curava.
E falavas com a lua
noites a eito
sem perceberes
que não eras curador de um diálogo.
De cada vez
que o teu peito esbarrava no lodo do cais
subias as muralhas
outrora inacessíveis
só para dizeres
com a voz inteira com que foste criado
que podiam tirar a argamassa do medo
coar o colostro dos demónios
para te declares dono do estuário todo.
E ainda que desmentissem
a posse desse império
não te importavas:
esse foi um usufruto apenas declarado
nas tuas interiores áleas
feitas de sangue dourado.
Se fosse radialista
nunca passava Ana Lua Caiano.
Se fosse turista
nunca seguia os roteiros.
Se fosse otimista
não apertava a mão ao Costa.
Se fosse tribal
mandava o Ventura à merda.
Se fosse consensual
desmentia os gurus das almas.
Se fosse transparente
não tomava hóstias ecuménicas.
Se fosse teimoso
aconselhava atores canastrões
a serem apenas canastrões.
Se fosse mecenas
subsidiava o silêncio sabático
de uns quantos soi-disant artistas.
Se quisesse reconhecimento
vendia a alma a mercadores de almas.
Se fosse erudito
calava a angústia.
Se fosse criança
era só para poder dizer
quando for grande quero ser.
Se fosse adulto
era para voltar à infância.
Se fosse resistente
só me importava com o porvir.
Se fosse engenheiro
tocava piano.
Se fosse elegante
não enchia a boca de tolos.
Se tivesse frio
não vivia aqui.
Se fosse preguiçoso
não tinha vergonha dos adiamentos.
Se fosse míope
era refém das ideias cristalizadas.
Se sofresse de medo
precisava de meia-dúzia de gatos.
Se não fosse por nada
tinha a mania de muito.
Se não fosse pela cristaleira
era o elegante elefante
mesmo no meio da sala.
Queria ser corsário
servir às árvores as lágrimas
sentar no miradouro o vinco da noite
e segredar
só ao teu ouvido
o paradeiro das quimeras sem noite.
Queria
que de mim soubesses o amor
em estrofes imunes a regras
até deitarmos ao luar vigilante
as candeias que acedemos com as bocas
nós
periscópios de nada
mecenas em nossa posse
imperadores.
Todas as mãos são ecuménicas
beijam-se no avesso da lua
onde se encontram no atear da vontade.
Não se evitam
no lacustre evocar das calendas
pois mãos desse modo quase incestuosas
perfumam as convenções decadentes
com o pestilento unto que as desaprova.
Os murmúrios chegam para fazer uma voz.
Despertencem,
vagarosamente gastos
no diamante baço
roubado aos braços dormentes
adestrando coisas inverosímeis
que acabam na malha das possibilidades.
Pudessem os rios
nascer nas sombras dos rostos
pudessem alistar-se nos navios mercantes
e trazer vestígios dos lugares alcançados
só para os oferecerem
com a mão sabiamente estendida
até povoarem um sol da meia-noite
e serem caução de paisagens geladas
sepultando os abismos perpendiculares.
A boca do cão
fermenta a saliva
e as palavras embaciam
esbracejadas contra o cais tardio.
Mendigos disputam a madrugada
no ainda sono para os demais;
arrastam-se
as ácidas pestanas
disfarçam o dia nascido puído
– e eles,
robotizados no sofrimento fatiado,
arrastam-se pelo dia fora.
O ladrar dos cães
sente-se distante
mas ninguém sabe da matilha.
Houvesse ossos rejeitados por um talho
para a matilha ganhar um fio condutor
e os mendigos escolarizados
teriam então a arte de serem gregários.
Os cães
(dizem)
ficam a léguas da racionalidade
mas são os mendigos que mendigam.
Confissão,
um avesso escondido
quase a perder a linhagem
de segredo.
E:
segredo
verbos proscritos
no desembargo
de uma confissão.
Um adeus salgado
desaprova a melancolia.
A floresta funda
desamanhece os animais
os ramos ainda crepitando de sono.
Um filão esconde-se no silêncio.
Sujas são as águas
povoadas pela fala domesticada
reservadas num enquanto hesitante
como se fossem um robe matinal.
O orvalho escreveu uma estrada
e sei que não desfalecem
os mapas autistas:
se seguir as mãos superlativas
elas levam-me à harpa
que enfeitiça a História.
Esteiros de águas paradas
a banda larga no sonho das mãos
cavalgam marés iracundas
no salão de festas sem diplomatas.
Arroios inflacionados por tempestades
debandam detritos pretéritos
perdidos no tempo gasto
a caminho de um paradeiro ao acaso.
Motejos caídos no pano avulso
combinam com a leveza da tarde
deixando senhores de queixo caído
dantes sisudos por ora estrelares.