15.4.20

#1500

[Crónicas do vírus, LXVI]

Estas estradas
não foram feitas
para este deserto de veículos.

14.4.20

#1499

Os males que vêm por bem:
agora
somos paradigma
epílogo homérico.

Antologia

Qual é a tua metáfora favorita?
Aquela 
do ar cheio de sol
que não deixa a pele constituir-se ruga.
Ou aquela
da ardósia militante 
que se insubordina contra a extinção
e esbraceja uma espada sem lâmina.
Podia, ainda,
avançar com a hipótese destoutra:
a parda noite
covil de vultos
refúgio das almas gentis
que hibernam durante a noite
e a deixam para os vultos errantes.

Não sei 
se tenho metáfora favorita.
E essa talvez seja
a minha metáfora favorita.

Deixa que diga
em abono da sinceridade
que clareio os olhos
(como se tomasse um colírio)
ao pressentir a nortada austera
e às ondas que descompõem o mar
junto a fúria das minhas mãos gastas.
Não sei se será admissível
ao concurso das metáforas
mas esta passa a ser 
a minha antologia.

E tu, 
já sabes os alinhavos 
da tua antologia?

Tenho de ir ao dicionário
E depois continuamos a conversa.
Prometo.
Em nome do dicionário.

#1498

[Crónicas do vírus, LXIV]

Princípio geral da imobilização.

#1497

[Crónicas do vírus, LXIII]

O sofá 
vale
ouro?

#1496

[Crónicas do vírus, LXII]

A ausência
elevada a regra.

#1495

[Crónicas do vírus, LXI]

Entre 
quem muito procura o saber
e os que não sabem o que não sabem.

13.4.20

As mãos suadas pelo passado

O inventário da lua
à luz do dia
tradução da alma amuralhada.
As cinzas não sobram
no planalto dos sonhos.
Prováveis peões em trovas alheias
oferecem-se na pior das generosidades:
a útil idiotia que os veste
não transige no harmónio da razão
(o que quer que seja a razão)
e o bazar dos inquisidores
não hesita na opressão.
O inventário da lua
arruma as teias armiladas
os coices amontoados
no poço do esquecimento
o tear com as cadeiras destroçadas
uma lágrima vestida no firmamento.
Não se luta
se não a favor da vontade.
O arquétipo sem omissão
entre duas mãos suadas pelo passado.

#1494

[Crónicas do vírus, LX]

O que é feito
dos vícios de rua?
(Meirinhos da moralidade 
vingados pela mão favorável 
da praga.)

#1493

[Crónicas do vírus, LIX]

Lá fora
uma tela baça,
a preto e branco.

12.4.20

Retórica

Conta
o que não é dito
na mesma medida
do que é dito?
E entre
o dito e o não dito
há intermediário,
exegeta capaz do sonho
a não banal escavação
das palavras intuídas?
Ou tanto faz
dar o dito pelo não dito?

#1492

[Crónicas do vírus, LVIII]

A higiene
tornou-se canónica.

#1491

[Crónicas do vírus, LVII]

A morte 
tem a última
palavra.

#1490

[Crónicas do vírus, LVI]

Jardim de Éden:
o despertador da natureza,
a avisar.

11.4.20

#1489

[Crónicas do vírus, LV]

Do exílio caseiro
ao PREC capilar.

Revisão da matéria dada

Do nada digo nunca
estaleiro da metamorfose
quando a alvorada semeia o dia.

A espada embaciada roça o rosto
e ao medo amiúde mostro
o mastro da indiferença.

Do nada,
digo nunca
material de reserva
no alfaiate das memórias.

Do nada digo,
nunca:
e provo o sal da safra 
em sílabas sardónicas
por saber que a solenidade 
é uma sombra dos sentidos açambarcados.

#1488

[Crónicas do vírus, LIV]

Desta vez
Jesus não ressuscita
ao terceiro dia.

10.4.20

#1487

[Crónicas do vírus, LIII]

A epidemia estatística 
– uma outra epidemia.

Shortlist

O ocaso lisérgico
idioma nu
singelo,
apóstrofe de Sísifo
vitral em praça velha.

Não por acaso
vulnerabilidade
rima com
fragilidade
como se a cabeça sem chapéu
fosse letra a desprecisar de acento.

#1486

[Crónicas do vírus, LII]

Cinquenta minutos
em espera para reabastecer a despensa.
Um certo odor a apocalipse.

#1485

[Crónicas do vírus, LI]

Haverá a.c.
(antes do coronavírus)
e d.c.
(depois do coronavírus).

9.4.20

#1484

[Crónicas do vírus, L]

O paraíso dos patrões:
depois de tudo
todos voltarão
com fome de trabalhar.

O beijo do vento

A maré
trouxe os godos polidos 
em seu vazamento 
no despontar da geada,
o rarefeito ar frio da aurora.
Andava uma mulher curvada
julgo 
na colheita dos godos.
Espalhados,
os despojos da maré-alta
desenhavam um caos sobre o areal:
mastros de árvores idas
a polifonia dos plásticos imensos
a areia suturando uns limites desarranjados
dois ou três pneus avantajados
mas sem notícias de garrafas desembarcadas
que já não deve haver náufragos por contar.
Da janela
a resplandecência dos lisos godos
à medida que o sol desenvergonhava
e semeava uns quantos raios
incendiando as pequenas pedras,
que aparentavam um polimento de primor.
A mulher sacudia a areia dos sapatos
quando o vento mudou de parâmetro
e arquejou pela barriga do mar,
até então ameno.
Por sorte,
a maré vazava.
O mar estava poltrão.
Deixou o vento em solitária fala.
Como a mulher 
que inaugurara o dia na colheita dos godos.

#1483

[Crónicas do vírus, XLIX]

O dia em que voltou
a ser feudalismo.

#1482

[Crónicas do vírus, XLVIII]

Ecos,
o horizonte
a clarear.

8.4.20

#1481

[Crónicas do vírus, XLVII]

Minimalismo
é o verbo
o alfobre da paciência.

Fiz-me fevereiro

Fiz-me fevereiro
no rosto hercúleo 
resistente ao inverno
frugal, 
contudo,
nas vestes encenadas.
Fiz-me fevereiro
por divergências com a primavera
e ao assunto que interessa
fui de marcha-atrás
para não parecer guloso.
Por mais serranias que desandasse
não havia neve
nem vestígios antropológicos dela
e de pouco me serviu
o fevereiro que trajei.
Pedissem-me um parecer
e não chegava a tal estatuária:
em remissão
seria fiel depositário do silêncio,
já que tanto se diz
antes a mudez sitiada
do que palavras em pose néscia.
Assim mo disse 
o fevereiro depois do tempo
depois da vã demanda da neve.

#1480


[Crónicas do vírus, XLVI]

A quarentena 
não faz diferença
aos gatos de casa.

#1479

[Crónicas do vírus, XLV]

Uma lua singular
a tomar conta 
da esperança.

7.4.20

#1478

[Crónicas do vírus, XLIV]

Pode ser
que o ano comece
a 9 de junho
(mais ou menos).