31.12.16

Pontes sábias

As pontes sábias
tangentes ao suor carregado
secam as lágrimas marejadas
vertidas em arcádias outonais. 
As pontes sábias
amarelecem páginas cansadas
ao ritmo do vinho velho
para serem mestres tutoras dos esquecidos. 
São sábias
as pontes desaproveitadas
sob os pés de gente enquistada
nos terríveis patamares da insídia. 
Sobram as sábias pontes
que recolhem no seu antepasso
os exilados das cores desmaiadas. 

30.12.16

Pecúlio

Arruaço
as ideias matrizes 
contra os embustes disfarçados.
Sem ousadias militantes
(a não ser
dedilhar os farsantes
acobertados nos lugares-comuns). 

Desajeitam-se os calibres
os pesos que precisam de contrapesos
os esquálidos contrafortes da igualdade
o verso e o reverso
as faces diametralmente descasadas. 

É pouco. 

Procuro janelas
que se desdobram em janelas outras
múltiplas janelas
abrindo-se de par em par
abraçando-se às aragens diversas
as que têm origens acima das contagens
janelas de ogivas férteis. 

Procuro corredores largos
onde o pensamento se espraie 
em seus deslimites. 
Corredores
atapetados pelos olhares múltiplos
em sintaxe esperanta 
no desembaraço de espíritos desacorrentados.

#117

God slave the queen.
(And the queen became atheist.)

29.12.16

Demiurgo

Um plano misturado pelas mãos
enquanto os ossos das montanhas arrefecem
e os bastardos penhores do fogo
montam cerco.
Não saberia dizer aos olhos ávidos
se não fossem os montes à mão de semear
como se a mão neles pudesse pousar
a agarrá-los.
A paisagem não foge.
As mãos trémulas
têm de a encontrar
num sortilégio a desfazer.

28.12.16

Arrefecido

A mostarda ao nariz
o mastro arrimado
as nuvens escurecidas
o amuo no estirador
e a culatra em pulgas.

Não adianta.
O nariz já se consumia
em sua perfunctório ensimesmar.

As regras encavalitadas
o suor sem préstimo
as imitações pueris
os poços poeirentos
e as maças apodrecidas.

Não adianta.
A camisa-de-forças
era estertor bastante.

27.12.16

Sobreiro professoral

Debaixo das cicatrizes
o velho sobreiro medra
um invejável elixir.
Não sabem da poda
os poltrões citadinos
disfarçados em farpelas
congeminadas por bisturis.
De hoje para amanhã
dandies ocultos fruirão
nas margens dos montados.
Deem-lhes bolotas
que já estão habituados.

26.12.16

Intermitências

Perguntam aos ossos matinais
se trazem com eles as pedras angulares
que decifram as veias do mundo. 

Perguntam se as representações
se misturam com a métrica suspensa
entre dois lampejos da lua esquartejada. 

Perguntam aos angariadores de almas
por que sortilégios se movem
para não conseguirem arrematar vivalma. 

Perguntam às mulheres enlutadas
se não se lembraram de despojar o véu escuro
que freia o ar límpido. 

Perguntaram aos loucos sem carteira
se não preferiam habitar
com os loucos encartados. 

Perguntaram aos músicos distraídos
se eram apenas ociosos
ou se era travessia na praça da desinspiração. 

Perguntaram
se não havia folhas caducas para varrer
em vez da sofreguidão dos prazeres. 

Perguntaram às mães
pela quimera do amor singular dos filhos
à espera de curarem orfandade precipitada. 

Perguntaram
se as rodas perfeitas
saberiam vencer os estorvos sem espera. 

E perguntaram às memórias
por que teimam
em inquietar o pensamento devolvido. 

Perguntaram
e continuam a perguntar
pois perguntar é prova de vida
e perguntar não é critério imperativo
de respostas em fonte aberta.

25.12.16

Prognóstico reservado

A verdade:
não há maneira de a virar
contra a mentira
por mais que a mentira
se componha de verdade
– ou do que como ela seja estimado –
ou a sua máscara seja
ou uma convulsão circense
ou o aparato de uma paisagem extática.
A verdade
é que não há verdade por arrematar
e essa é a verdade sublime
que transfigura as mentiras todas.
A verdade
devia ser banida do vocabulário.

24.12.16

Sirenes opacas

Sirenes emudecem o chão
do teatro algoz.
As corças observam, altivas
o despedaçar dos corais antigos.
Sobre o despojar do musgo
as migalhas do vento
dispersam sementes várias.
Tudo há de ser como dantes
– admitem os cultores dos costumes.
Não valeram de nada
as sirenes estridentes.

23.12.16

#116

A caixa negra
esconde matéria crepuscular
que crepuscular se guarda
até ao fim do tempo. 

Portfolio

Rostos por todo o lado
rostos nos sonhos
rostos-pesadelo
rostos caiados nas frontarias dispersas
rostos em sorrisos cínicos
rostos nervosos em trovoadas estridentes
rostos inteiros em pedaços de dia
rostos com rugas por dentro
rostos longínquos
rostos entronizados em ameias altas
rostos salgados
rostos tirados a preceito
rostos imóveis
rostos cibernéticos
rostos ungidos com flores sangradas
rostos sem medo de nada
rostos negação
rostos cantados
rostos novelos
rostos expressivos
rostos pueris
rostos marcados pela temível roda dentada
rostos fugitivos
rostos.
E eu como ilha no meio deles.

22.12.16

Categorias operativas

Odeio ismos. 
Os rótulos adjacentes
as categorias herméticas
as peias por cima dos ombros
a desopulência dos maneirismos binários
o raciocínio ligeiro e cerce
a fantochada de uma esgrima pueril
as desavenças sem chão
as arritmias das oposições gratuitas
os olhos vesgos pela lente baça
os corredores estreitos por onde amesendam
os fartos vilões da mesquinhez. 

Odeio que tenha de ser um ismo qualquer
que me amordaça às frugais paisagens
de quem assim se reduz. 
Odeio ser atirado para os braços de um ismo 
sem ter pedido esse lugar
e depois
aturar os algozes das categorias herméticas
dedilhando as minhas incoerências
quando uma ideia se soergue
contra o ismo em que me meteram. 

Odeio as sindicâncias dos outros
à mercê dos ismos a que me prenderam. 

Odeio não ter liberdade para alojar ideias
no promontório que me apetecer
sem logo aparecerem os mastins dos ismos
a descobrirem um (ou mais) para minha trela. 

Lamento
a estreiteza dos frequentadores de ismos,
imodestos marceneiros das ideias acantonadas
aviltantes de si mesmos na cegueira sua. 

Lamento (e odeio)
que se tenham inventado ismos.

#115

Os cinco sentidos
não ajudam à inteligibilidade das coisas
(ou desajudam à sua inteligibilidade;
o que não vai dar ao mesmo).

21.12.16

Cinzeiro

Uma diligência no oráculo
uma vírgula fora do lugar
a barba fonte de vernáculo
e a roseira sem vagar.

Uma especulação vulgarizada
uma semântica bombardeira
a face fria e vaporizada
e a camélia em viço e costureira.  

Uma clepsidra do avesso
uma exclamação a despropósito
a nuca com olhos de gesso
e a esteva com sabre compósito.

Uma mãe-de-água duradoura
uma frase esboçada a preceito
a orelha patrona da audição dura
e a acácia que desce até ao peito.

20.12.16

#114

A carne que atormenta,
a quente carne nas mãos,
e um vulcão efervescente
à espera de uma centelha. 

Equinócio

Que beijos sábios
enfeitam o meu peito?
Que mãos suadas
se entretecem no meu corpo?
Que olhos fundos
indagam minhas estrelas?
Que cálice poente
aquece o meu devir?
Que luar candente
anoitece o meu lugar?
Que poema ávido
empresta sossego ao meu ser?
Que manhã precoce
tira freio ao desejo?

19.12.16

Imersível

Esplendorosas constelações idosas
desembaraçadas de poeiras estiolantes
adormecem na potente aurora. 
Milhafres vociferantes
irrompem em voos rasantes
contra as carecas que boiam. 
A estufa exala o tempero dos trópicos
para gáudio do ecossistema mendaz. 
Esplendorosas asas que planam
tomando o céu como império
sobre a fazenda capitular de pé curto,
antes que vento vespertino
desmonte a temperança. 
Os pássaros gorjeiam,
num anátema caótico de grasnares mucosos
e a fatia de um bolo
furtada por menino guloso. 
Os todos arrumados a um canto
sem certezas desempoeiradas
nem certidões venais,
alisam o chão agora aprumado. 
Num bloco de notas
desenhos avulsos arrancados à letargia. 
Uma safra diletante
com artesãos cansados, mas diligentes
porque 
“o futuro não pode ficar nas mãos do acaso”. 
Suspensas no céu clareado pelo luar
estrelas difusas falam aos mortais
desprendendo curtos postais ilustrados
que enfeitam a soleira do olhar. 
Os mortais 
talvez esquecendo a mortal condição –
desmentem desperdícios amontoados sob os pés. 
Anestesiados
pelo esplendor de que são ilhas furtivas
não lhes apetecem infortúnios.

#113

Junta
sobre as ruínas do terramoto
o olhar que confere o lugar
do pensamento mestre. 

18.12.16

#112

A vontade sitiada numa alcáçova
não é espécime válido:
sem a sua roda livre
não passa de desvontade, 
refém das suas ameias. 

Medicinal

Os ossos estatutários
não derrotados pelo cansaço cardeal
profetizam:
agentes corrosivos serão
e sem capitulação
dos mais tóxicos elementos.
Ossos-esteio
nos quais as malsãs divindades
não conseguem aportar.
Estatutários
ostentam a sua grandeza imperial.
São a sua própria centelha
essência das essências
onde se bebe a água pura.

17.12.16

Videiras

A fina haste da videira
descai na intempérie. 
A fina haste da videira,
entronização de um caule timorato,
decai na penumbra ditosa. 
Hão de medrar uvas doces
impregnadas de uma escura tez
dizendo aos céus que não as demovem.
Nem que frágeis sejam as hastes
de onde se arqueiam. 

16.12.16

#111

Ecos que se mestiçam
entre duas ondas alterosas
de um mar desbragado. 

Tiro ao alvo

Sob o pejo dos holofotes
mais fácil alvo dos atiradores. 
Não precisam de ser furtivos
que os limos confluem
e as atenções dão sobre si
tonitruantes cambalhotas. 

E, contudo,
reserva-se ao perfil discreto
dos apóstolos que fogem da ribalta.

Não consegue. 
Por mais
que sobre o pensamento
em demanda de um equinócio
as luzes todas desçam sobre o seu rosto. 

Já sabe:
segue-se a artilharia contínua
um esboço bélico
que narra o seu errado postulado da história. 

Não importa. 
Soube ser arquiteto de uma couraça
à prova da pior das balas
e as cicatrizes no que sobra do corpo
são caução para o demais. 

15.12.16

#110

Queria um tabuleiro
com peças sem serem xadrez
queria um manto soalheiro
sem perder a vez. 

Manual de instruções

Sabia
que as escadas adulteravam
a noite.
Que as mãos atadas
eram vistoria
a destempo.
Que os beijos prometidos
rimavam com areias
movediças.
Sabia
que o velho cais
esperava.
Que os ulmeiros desmaiados
desconfiavam do tempo
gasto.
Que as batinas embuçadas
aperfeiçoavam os ardis
militantes.
Sabia
que as rotundas podiam ser
ao contrário.
Que o poente
era um rio
sem horizonte.
Que as árvores outonais
regressavam à opulência
matinal.
Sabia
o que os livros emprestavam
ao olhar.
Que as marés desajeitadas
compunham as costuras
da alma.
Que um triunvirato entronizado
bebia até os sentidos ficarem
embotados.
Sabia
que essa era a melhor
lucidez.
Por saber
que em tais preparos
nada era o saber.

14.12.16

#109

Se não fossem os sonhos
o que seria de nós?
(Levanto o véu do sonho
e sondo matéria tangível.)

A desentronização dos medos


Absorvo a luz lenticular do relâmpago
em duas levas que se sucedem
no estertor da trovoada.
Reponho os predicados da alma no lugar
não vão os demónios tomar-me de assalto.

Já não tenho medo.
Não tenho medo da fuligem
que açambarca a noite comprida.
Não tenho medo das vozes ciciadas
nos intervalos das páginas.
À altura dos meus pesares
soerguem-se velas retesadas
que sulcam a névoa por diante.
As valas são ermos sem serventia
deslugares que não encontram mapa.

Continuo sem medo
na alvorada baça que tira estima ao dia.
Nem os medos de antanho
os que sonhos povoavam
ganham lugar no deserto que ganhou.
Atiro-me como cão esfaimado
às deliciosas fontes do conhecimento
à volúpia das artes
dos lugares dantes não visitados
às páginas em desassossego
à matéria combustível que acende o tempo
à perene mansidão do olhar.

Não me importunam
as fazendas inoportunas
as águas impróprias
os mapas obscurecidos.

Já não tenho medo.
É tão simples quanto isso.