31.3.22

Decénio

A manhã

era o farol que se juntava 

no bordo da janela

e murmurava verbos válidos

aos nossos ouvidos.

Não eram os sentidos em alvíssaras

a combinar com os lugares vazios

e os dedos entrelaçados

fugiam ao penhor do tempo.

Dávamos à manhã

o que nos pedia

e em troca

a manhã anunciava-se

luminosa

um viveiro de bocas suadas

corpos hasteados na vertigem

fazendo em seus refúgios

publicidade ao lugar desocupado

que dantes fora uma jura falsa

de desamor.

Éramos curadores da manhã

ou a manhã

como se fosse nossa porteira

e da portaria atirássemos ao futuro

o sortilégio

que vinha nos versos que as bocas entoavam

e nós

portadores do atlas escondido

desenhávamos a geografia

na simetria dos corpos alinhados.

Se dissessem

que éramos loucos

acreditávamos.

E nós 

falávamos os idiomas avulsos

até os que não sabíamos ser conhecedores

só para darmos asilo ao vocabulário reservado

e em jura solene

contássemos as sílabas da confiança.

Não partíamos de dados com números

e também éramos capazes 

de poemas escondidos das palavras

a celebração do silêncio abastado

que dispensava o logro das palavras.

De nós 

subia ao resto do dia

o sangue sem provações

a terra que partia no convés de um navio sem nome

a toponímia que era a que nos quiséssemos

a cada instante.

Desatámos os nós inteiros

com a destreza de marinheiros

e as cordas ficaram à espera das mãos

o mar inteiro sob a nossa tutela.

Da geografia sem adiamentos

colhemos os violinos que ciciam nas paredes.

Hoje

sabemos que o tempo não é uma dilação

e o coabitar numa medida sem avesso

é a quimera que soletramos

sílaba a sílaba

enquanto dizemos ao mundo

como deve desenhar a fala

como não pode respirar as preces.

Em contemplação do horizonte

no miradouro que se afivela no olhar

abotoamos os centímetros de um vulcão

e toda a lava vertida

é a fecunda prova dos versos 

que soubemos ser.

Pois em nós

os verbos não têm tempo

e o olhar funde-se na matéria funda,

a maresia de que somos feitos.

#2347

[Crónicas do vírus, CMXXIV]

 

Legados da peste (235):

O elixir

para memória futura 

– estava escrito

no habitual lodo antropológico –

era uma (má) distração.

30.3.22

Anagrama de trinta e um

O trinta e um

é um cabo dos trabalhos

um adamastor que cega o caminho

o lídimo assarapantado

que não sabe como desfazer

os equívocos em barda.

O treze,

segundo os melhores peritos

em cabalística

e os afonsos de variadas superstições,

é a personificação do azar.

Talvez não seja por acaso

que o trinta e um é anagrama do treze.

Inquiram-se

os peritos em cabalística

e os afonsos de variadas superstições. 

#2346

[Crónicas do vírus, CMXXIII]

 

Legados da peste (234):

A metamorfose 

do sangue,

depois da maré 

de veneno.

29.3.22

O dicionário sem lugares-comum

A fita adesiva conspira

na sudação das palavras havidas

entre um resgate soporífero

e o latir de um cão de fila.

Dizem que são mastins

nas eu povoo-os 

no lagar da indiferença:

as suas vozes tonitruantes

só esgaçam

as suas gargantas aturdidas.

Mandam as convenções 

– diz-se, à lapela sem flor

do passo que, 

em passando,

o ardina reformado murmura 

as rimas que se sublevam contra

o silêncio.

Ah!

a fita adesiva

contra-ardósia militante

no vulgar bocejo dos lugares-comuns

que ainda ninguém determinou serem

não-lugares.

#2345

[Crónicas do vírus, CMXXII]

 

Legados da peste (233):

Uma guerra faz esquecer

outra (anterior) guerra?

28.3.22

O “véu dos ignorantes”

Lisérgico

o perigo parteiro do medo

desarruma o arnês

e somos todos lançados

no precipício do mundo coabitado.

 

Salgado o substantivo coevo

admite-se a concurso

uma coroa de espinhos como cama

e um vinho avinagrado

como arma dos admirados.

 

Por este andar

é noite 

e ainda não sabemos

da missa pela metade.

#2344

[Crónicas do vírus, CMXXI]

 

Legados da peste (232):

Encontrámos a chave

para a desconspiração.

27.3.22

Da janela

Não colhas

os dissabores 

na urze tardia 

do outono.

#2343

[Crónicas do vírus, CMXX]

 

Legados da peste (231):

A fala desembaraçada

contra a tirania

sem rosto.

26.3.22

#2342

[Crónicas do vírus, CMXIX]

 

Legados da peste (230):

O tempo

já não tem o vagar

como bússola.

25.3.22

Dos avessos ao avesso

Desde a matéria sensível

a ousada faca que se espeta

no dorso cínico da 

(assim dita)

verdade. 

E depois

há os que se investem numa missão:

não dar tréguas aos párias

por delito flagrante

contra a 

(assim dita) 

verdade,

eles, párias, 

monstros que são o rastilho dos contratempos

da descompostura da gente

(assim vista, em autorretrato)

decente. 

E a ninguém é dado interrogar

se as cores das peças dispostas no tabuleiro

não estão do avesso.

#2341

[Crónicas do vírus, CMXVIII]

 

Legados da peste (229):

Voltamos a falar

de rostos 

seráficos.

24.3.22

Às de copas

A corda mansa

amacia o corte na carne,

assoreado na corte malsã. 

 

A corda amansa

e na mansão acobreada,

açorado amanho a curva do dia. 

 

Acorda mansa

na mansarda recortada

e na coorte marca o covil.

#2340

[Crónicas do vírus, CMXVII]

 

Legados da peste (228):

Agora 

temos mangas curtas

para tanto braço.

23.3.22

A caducidade do silêncio

A boca muda

sílaba forte do silêncio

bandeira apessoada

no lugar de um gangue de palavras

ou apenas

o azimute do pensamento peregrino

instrumento da demorada demanda

pelo magma fundente.

 

A boca muda:

prescinde do silêncio estrutural

deitada sobre cadeiras de verbos

prolixa procuradora da fala

que muda a mudez centrípeta

agora orbital

num, talvez,

arroubo de despensamento

que caduca. 

#2339

[Crónicas do vírus, CMXVI]

 

Legados da peste (227):

Um cortejo de sombras

sitia a memória do futuro.

22.3.22

(Sistema) ABS

O cortejo a esmo

sísmico mear 

aproveitado pela maresia

que aos homens meãos

não se imputa cuidado mapear. 

 

Os pesares arrumados

calam lamentos pendidos

pelas mãos caiadas de audácia

desprendida dos apesares e dos poréns

que dantes tingiam o olhar com sombras. 

#2338

[Crónicas do vírus, CMXV]

 

Legados da peste (226):

A ferrugem

arrancada à boca,

o mosto indesejável

dos anos sem cortina.

21.3.22

Despoesia

Considere-se a varanda estendida sobre o ocaso.

De cada vez que o vento cicia

os arbustos pendem sobre o precipício

e isso faz-me lembrar vidas várias

que se convidam para o palco deletério.

Os braços não sossegam no sopé da maré-cheia

convidam os vultos a serem pagãos

sob a égide da bravura de um guerreiro limítrofe.

Se ao menos 

os desensinados não povoassem o medo

e os verbos não subissem nos poros das sílabas

a madurez das folhas não as faria outonais

e seria a escotilha a avisar da chegada.

De mangas arregaçadas

os pescadores mentem as preces que os protegem

dos mares não lúcidos e das marés assanhadas.

É um pouco como devia ser com os demais,

protestam curas militantes 

e crentes de variegadas cepas,

peticionando a usura das sotainas apessoadas

sem contar com os desalinhados

uns 

que não se aninham a deuses e seus mandatários

e outros 

que distraidamente povoam a indiferença.

Em vez dos mapas derruídos

os novos profetas convocam 

as lentes desembaciadas

e desenham,

a tinta-da-china,

os olhos açorados de desempoeirados anciãos.

Já outrora se dizia

que a antiguidade é um posto.

Ninguém cuidou de inaugurar a manhã

desconvocando a penumbra ensonada

para deslembrar

que a antiguidade é só um passo

e decidido

para a decadência.

Os seniores acatam sem resistência.

Sabem do exaurido da carne

dos ossos escombros

e o despensamento atraiçoa em desfavor da maré.

Suas 

são as varandas arqueadas sobre o precipício.

Despenham-se numa maresia inspiradora

enquanto resgatam

em precipitada cadência

os fragmentos representativos do estatuto 

vigente.

São eles que atendem a porta

quando os demónios amedrontam os pueris.

Desmentido o posto da antiguidade

que seja consagrada

como matéria-prima que debita a estabilidade

que participa dos corsários 

em tribunais sumários

contra o passado habitado 

por fantasmas e medos.

A tiracolo

os velhos trazem os olhos cansados

de quem soube colher 

as costuras do mundo inteiro.

Até que nas grutas da memória

sobre o vocabulário minimalista

em defesa dos sucessores que se habilitam

na vertigem de quem desacredita da senescência

os velhos aparem as unhas da mentira

e acertem contas com a anestesia geral

dos demais.

#2337

[Crónicas do vírus, CMXIV]

 

Legados da peste (225):

Vindimados

os anos plúmbeos

conseguimos ser o que éramos 

antes dos escombros?

20.3.22

Finitum est

A aritmética da morte

é isso mesmo

aritmética

a tradição dos corpos inertes

cadáveres que fermentam

no mosto das elegias prometidas

falésias onde se despenham

vidas

vidas extintas no vendaval precoce

um passaporte crepuscular

sem visto selado por embaixada

nem requerimento à espera de ser deferido

uma aritmética

fria e banal

como banais deviam ser 

as irremediáveis coisas

no andar mais fundo que a ossatura permite. 

Uma aritmética

sem mais

contabilidade lutuosa

vociferação dos vivos 

que protestam

em lugar antecipado

a morte que há de ser 

seu paradeiro. 

#2336

[Crónicas do vírus, CMXIII]

 

Legados da peste (224):

Corremos 

atrás do tempo perdido

ou dizemos aos relógios

para repetirem a contagem?

19.3.22

#2335

[Crónicas do vírus, CMXII]

 

Legados da peste (223):

A peste ainda não partiu

e a selvajaria vem recordar

que somos o nosso próprio algoz.

18.3.22

Concurso de oráculos e a meia-desfeita do futuro que os desmente

O oráculo dos feiticeiros

atira o dia solitário

para o templo sem morada

e os escombros do futuro

juram que não juram nada

depois de esconjurados em devido tempo.

 

Se o fingimento 

é arrematado à indulgência

não cuidem os prometidos escansões

de dirimir os medos

com poções enfeitadas pelos magos;

um destes dias

será o tira-teimas

e não é de esperar

que os teimosos saldem o pleito

com a coroa atribuída aos laureados.

 

Quanto ao demais

ficava deleitado na plateia

a assistir 

ao cortejo dos adivinhadores do reino

vendo-os assoberbados

a tirar as bainhas do futuro

a partir de seus puídos oráculos.

#2334

[Crónicas do vírus, CMXI]

 

Legados da peste (222):

Liberdade sitiada

por os rostos 

ainda não desalfandegados 

de seus açaimes.

17.3.22

Vocabulário

O sangue

à porta subindo

e toda a lama

portadora de almas

ou as almas

abraseadas pelo medo

extintas pelo sangue

combustível.

Um pedaço do Saara em nós

Hoje

puseram o dia

a preto e branco.

#2333

[Crónicas do vírus, CMX]

 

Legados da peste (221):

Quem fica a cuidar

das cicatrizes 

da desliberdade?

16.3.22

Ópera dos (que estão) sentidos

Não é a contabilidade da redenção

nem um patriotismo celeste

ou a arqueologia arcana

que determina 

a raiz quadrada do pensamento. 

 

Se aos alvores 

forem as mãos tentaculares

na sua sede pela sede do conhecimento

não se apostrofem as intenções assim delidas

nem 

aos procuradores da angústia 

se enderecem culpas;

no refúgio demandado

o travejamento das almas

encontra região demarcada

e, seja como for,

das intenções não confessáveis

não se dá conta de paradeiro conhecido.

 

Aos segredos

fica reservado

o lugar do segredo 

sem sepultura.

#2332

[Crónicas do vírus, CMIX]

 

Legados da peste (220):

O rosto puído da desumanidade

dita o olvido da guerra 

ainda não vencida.

#2331

[Crónicas do vírus, CMVIII]

 

Legados da peste (219):

Derruído o crepúsculo

ficou de atalaia

o mosto da manhã reavivada.

15.3.22

Perdido a meio da tradução

Como se explica

que feriado em inglês

seja dia santo

e em português

apenas feriado?

Bolçar, depois do noticiário

O ramo prístino

itinerante

em vez 

da palavra-arremesso

e o peito nu

sem contrato

apenas 

guerreiro das guerras proibidas

ou o verso condomínio

quimérico

em vez

de vendas baças

e da falésia

sem vinculação

apenas

um eu formulado

na pauta 

onde vagueiam

miragens.

#2330

[Crónicas do vírus, CMVII]

 

Legados da peste (218):

Resgatado o leme

só falta saber 

do Norte.

14.3.22

Tempos desinteressantes

Cortam-se as sílabas no invólucro do medo. 

A fala intumesceu

e as palavras assoaram o ranho 

dos dias pesarosos e lamentáveis. 

As armas falam pelos corpos. 

As águas poluídas são o mosto dos dias farsantes. 

O desalento levanta-se na roda-viva do tempo

à espera dos provérbios roubados

e da insídia que coloniza 

a geografia dos Homens. 

As cores foram anestesiadas

e até o tempo não se terça

a propósito dos arco-íris. 

Temos medo do amanhã. 

Temos medo 

do que nunca deixamos de ser.

#2329

[Crónicas do vírus, CMVI]

 

Legados da peste (217):

O idioma da guerra

é o esperanto que nos cobre 

de infâmia.

13.3.22

Agilidade antropológica

E quando 

só ficarem espadas

sem ninguém

para as empunhar?

#2328

[Crónicas do vírus, CMV]

 

Legados da peste (216):

Estivemos 

na boca do inferno

e agora estamos

à boca do inferno.

12.3.22

#2327

[Crónicas do vírus, CMIV]

 

Legados da peste (215):

Tomar partido

pela ética assimilada

no reatar do sangue avivado. 

11.3.22

O des-lamento do pecado (ou: só se lamentam os des-pecados)

Um vulto esbraceja

sentado

na embocadura da voz

e diz, em matinal murmúrio,

que o pecado está de atalaia

só à espera da nossa distração. 

E nós

obedientes

julgamos a matemática possível

para ao velho vulto

a vontade fazer. 

E o vulto

sossegadamente 

escolhe outra freguesia

que os fogos por atear 

passam da conta humanamente possível. 

E depois 

há quem não entenda

que as igrejas 

andam à míngua de freguesia. 

#2326

[Crónicas do vírus, CMIII]

 

Legados da peste (214):

Cai a cortina da peste

e a palco

sobe a nudez da guerra. 

10.3.22

Derruição

Era uma água inaugurada

as patas desdentadas da noite

em talhadas de fúria servidas.

A boca arrancava o suor do chão

numa métrica desmatada

no provérbio dito em idioma alheio.

E as pessoas diziam

entoemos o pão que o amanhã dará

antes que os vitrais de estilhacem 

– antes que as modas sejam olvido

e dos desastres lacrados no atlas

seja servida a lenha em lenta combustão.

O quarto sem luz

emancipa-se do medo diuturno

e os rostos emprestam-se ao dia seráfico

antes que os versos terminem gongóricos 

– antes que as partículas acelerem

e o céu expluda para lá da fronteira

numa chuva de flores crepusculares.

E dessa água inaugurada

bebem os cavalos a sede das estepes

pois das neves ausentes se entendiam

em cofragem que desfalece

na fragilidade que povoa os Homens.

Por fora

os faróis não deixam ninguém sozinho.

Na cumeada

acendidas pela noite sem claridade

minúsculas vírgulas vermelhas bruxuleiam

sem saberem se o vento as socorre

ou se deixa ao convés ermo e deserto

a embaixada dos órfãos da loucura.

As apostas correm as páginas da geografia

reféns de apóstatas de lucidez

que irrompem numa correria irreparável

contra as barragens que nos dividem do medo.

Até que a falésia se despenha atrás de nós

sem deixar vestígios

e a pele curtida na angústia

abandona o seu tirocínio inválido.

#2325

[Crónicas do vírus, CMII]

 

Legados da peste (213):

As antenas

sintonizadas

no desexemplo 

que não deixamos de ser.

9.3.22

#2324

[Crónicas do vírus, CMI]

 

Legados da peste (212):

A guerra,

ou o Homem

metamorfoseado

em peste.

#2323

[Crónicas do vírus, CM]

 

Legados da peste (211):

A guerra,

a continuação da peste

com a marca do Homem.

8.3.22

Dos homens imprestáveis

O que se penhora

não tem fundo

e do fundo do vulcão

os pertences gastos fogem do periscópio

onde levita o sangue sem fala.

Temperamento colérico

nas brandas que espevitam o céu baço

cobra o preço último

enquanto a multidão coloniza as ruas

em silêncio.

As ruas servem de corrimão

aos que sem elas

seriam desamparados.

Em pose observadora,

como se fosse antropólogo,

junto as estrofes que desentorpecem a espécie

junto-as num compêndio de significados

enquanto retiro aos demónios

a albumina que os protege;

antes desprotegidos os demónios

do que por eles acossados

os inocentes.

E há inocentes?

Há verbos que se conjugam

na tumular profecia em abono dos inocentes,

ou tudo não passa da soberba

de quem dá aval a conceitos por determinar?

Dos púlpitos sem pertença

o vazio esvoaça

contundente

emasculadamente impuro.

Nos preparos

o tóxico raciocinar adere à retórica

e os lugares soam a prisões

melhor:

a navios onde viajam desterrados

que não têm cais que os queira

e por isso

talvez estejam destinados ao naufrágio.

Nunca se disse

que os eugenistas eram higienizadores.

Os palcos errantes 

somam-se à cacofonia dos eruditos.

Oxalá fossem militantes do silêncio

que em poemas seria substituto perfeito

da prosápia sem arrefecimento.

Por enquanto

o sofrimento só pertence ao dicionário.

Não se vê que seja um senão

se até os deuses advertem

com mnemónica diligentemente doutrinada

que o sofrimento não se divorcia do Homem.

A menos que hoje

por ser dia em que a mulher é celebrada

(e porque se achou apenas um dia

no imenso calendário de um ano

para celebrar a mulher

é matéria que ultrapassa a lógica)

não se diga que os homens merecem palco

pois eles 

são os procuradores máximos da beligerância

fautores máximos da impiedade 

com lugar direto ao banco dos réus

onde juízas aprumadas no escorreito manejo das leis

esperam pela vingança sem opróbrio.

Pois delas é a mitologia

e dos homens

a fé cega na marcial expropriação do tempo.

As flores que daqui se ouvem

Queria voltar a ser criança

só para dizer

que queria ser forasteiro 

quando fosse adulto.

O sonho maior

era sair sem mapa 

que me pudesse ensinar 

um destino.

#2322

[Crónicas do vírus, DCCCXCIX]

 

Legados da peste (210):

Diríamos

redenção

se tivesse havido

pecado.

7.3.22

Nervo

Falo da metáfora

que se aviva 

na limalha do ocaso.

 

O crepúsculo macilento

é refúgio dos sortilégios,

e a fala 

debate-se com a vertigem

arrancada ao precipício da noite.

 

Falo por metáforas

que o medo de ser entendido

fala por cima.

#2321

[Crónicas do vírus, DCCCXCVIII]

 

Legados da peste (209):

O irrisório dano da peste

comparado com o dano 

que o Homem pratica 

em si mesmo.