30.6.23

Injustiças indocumentadas (126)

Alguém sabe

onde Judas 

perdeu as botas?

#2829

O olho do furacão

nunca dorme.

29.6.23

#2828

Deviam

dar ordem à ordem

para ser menos

ordem.

28.6.23

Magistério

Abotoado o saber 

o dia casava-se com os frutos silvestres

amortalhados entre os arbustos. 

 

As mãos macias 

diziam

que era de serenidade 

que o entardecer se fazia

pressentindo o luar como dádiva

para que na sua luz demiúrgica

fossem os sonhos murados. 

 

Sem saber

um motim interior açambarcou o cais

como se as amarras voejassem sem rédeas

ordenadas pelo vento castigador

e não houvesse chão 

entre o corpo e o mar. 

 

A convulsão enfureceu os verbos

e toda a gramática era errante

sem as alvíssaras de um sextante

à mercê do vento avesso que trespassava o rosto

povoando umas rugas mais

o pesadelo sem âncora

com guarida para morder fundo

até ao osso. 

 

Mas era só isso

um pesadelo agitador

a conspiração dos vultos 

escondidos nos bastidores

por coragem ausente 

de mostrarem de que coragem (não) são feitos. 

 

Apanhados os destroços

a contabilidade dos danos 

pariu um rato. 

 

Os pesadelos 

não contam

no desembaraço 

da alma. 

#2827

Um martelo pneumático 

a percutir

vigorosamente

incessantemente

a fala gongórica,

a autêntica tortura do sono.

27.6.23

Ângulo vivo

Da luz

a penumbra tatuada

a boca que toca na boca

dedilhando os lábios

evaporando o medo

nas paredes que encobrem a noite 

dando os dedos ao cicerone

e os poros às escuras

tornam-se 

candeia que toca o vulcão 

que toca o amanhã anónimo

que toca a carne em fuga

até que dos verbos não soubermos a cor

e nos sobra

fogueira que sabe à lava que falamos.

#2826

Um manicómio colossal,

a loucura 

sob o alto patrocínio

dos embaixadores do poder.

26.6.23

O cidadão-ensaísta

Certeiro o rasgo

no reduto da torre de marfim

o selo escondido dos olhares indiscretos

como se da lã fizesse um disfarce

e a carne,

refugiada no labirinto arrematado. 

Depois do mundo

tiro o dia para saber da cidade

dos urbanos desvios à conta de predestinados

correndo por fora sem estar no fio do invisível

provoco o cidadão inerme

refém da letargia

antes que as cismas corram de vez

com um escol em vias de perpetuação. 

As lentes estão riscadas

baças com a humidade primeva

mas os olhos não deixaram de ter serventia

nem os circuitos cerebrais entraram 

em modo de segurança:

à vez

os mascotes enfeitados com autorictas

medem as falas no mercado das juras fáceis

contam com suserania dúctil

presas fáceis da mitomania que amura a cidade

preguiçosamente no coldre dos mandantes

só à espera

de serem as balas descartadas 

no tabuleiro em que são peões sem nome. 

Esta é a torre de marfim puída

uma cortina de espelhos

o jogo no baile dia disfarces

um cortejo de meãos inertes, domáveis,

especialistas em tudo e sabedores de nada

os que são agitadores sem fazerem vento

apregoando sucessivas mágoas e logo a seguir

transigem com os que atiram culpas

num sórdido tribunal de culpados sem pena

e de juízes sem toga. 

Não esperem da torre de marfim

um oásis. 

Não esperem

que a indigência fermente a excelência:

uns são o espelho dos outros

e estes o espelho do escol sufragado

e quando tudo está nestes preparos

quem pode contestar o palco onde todos se movem?

#2825

Estimada coligação de couraças:

a sobrevivência da cidade

agradece.

25.6.23

#2824

Cento e oitenta graus,

a popa empatada com a proa. 

24.6.23

A árvore sem nome

Aprendi com esta árvore (que nacionalizei para proveito próprio) como se pode ser uma metáfora sem perder a arrumação das ideias. A árvore soube ser centrípeta, um passaporte para identidades sem paradeiro. A cor lampejante das suas flores (mas efémera: dura junho) tomou conta do sangue que me transporta. O meu grupo sanguíneo são aquelas flores.

Injustiças indocumentadas (125)

Aos costumes

disse:

atleta de baixa competição.

#2823

A tela sem moldura:

a vida dispensa o arnês. 

23.6.23

Delta

Como se fosse um delta

todas as ramificações 

cintadas a um labirinto ousado

e tudo esbarra

numa constelação de dúvidas

descarnado desde a raiz

até à madrugada gentil,

uma embocadura que ganha estuário.

Injustiças indocumentadas (124)

Arma branca,

o racismo

pode ser do avesso.

#2822

Não sabemos

das revoluções 

que são todos os dias.

22.6.23

O velório das farsas e outros quinhentos sobre o futuro

Dita o fogo ateado na carne

o modo de sobrevivência

 

(e não se fale em sobrevivência por acaso,

se é um estado acima da vida).

 

Ontem 

dizia-se que dantes 

é que era bom

e-não-sei-que-demais-lamúrias

mas isso era 

porque nada era o que se sabia

sobre o futuro. 

 

O fogo que se promete 

é em piras futuras

e aquele há demandado

agonia no caudal das memórias

a funda espada 

que dilacera o que sobra 

do frescor que se esvai. 

 

E não se prometam elixires 

que disfarçam a madurez

ou a farsa da decadência emulsionada

a menos 

que as ilusões 

sejam o império por diante.

#2821

Habitamos 

sobre os escombros

que soubemos ser História.

21.6.23

Estendal

Somos os escultores 

em que tremeluz a fala

os dedos húmidos limpando as arestas

e as estrofes militantemente anónimas

contra o sequestro encenado pelos mastins.

Injustiças indocumentadas (123)

Em boa verdade – diz-se;

sem enunciar as diferenças

entre uma boa verdade

e uma verdade simplória.

#2820

Não se esperem cordilheiras

do rato parturido pela montanha.

20.6.23

Motor de combustão

Lágrimas exaustas cobrem o rosto da angústia. 

O dia é um sacrifício. 

As pontes quebradas 

não entram no condomínio da alma

despovoam as margens

deixadas a esmo na noite testemunha. 

Feitiços inviáveis emparedam o sono

e o silêncio entranha-se no sangue, 

nos ossos

à espera de se tornar a gramática imperativa

destronam a fala 

em sucessivos golpes de solidão. 

Podia ser um dia de tempestade

mas não passa de fingimento

a tempestade enquanto metáfora

ditando a convulsão insubmissa que agita

até os vulcões adormecidos.

Podia ao menos

ser um dia testemunha. 

A angústia podia ser timorata

faça-se a encomenda 

aos procuradores das intendências;

se não for para passar pela casa da partida

os terramotos crepusculares afeiçoam a carne

e tudo por dentro se subleva

subindo 

ao promontório sempre ocupado pelo nevoeiro. 

Oxalá fosse o suor 

a percorrer as avenidas gastas

as sílabas encontrassem o seu tempo

e a agonia fosse a geografia dos outros. 

Até cantar em coro com as aves na sua migração 

e nelas saber o regaço

a petição do exílio. 

Titânio

Se nem por dentro dos sonhos

somos miragem

se nem na coutada da noite

bebemos da árvore centrípeta

se nem no luar ornamentado

subimos os degraus da maresia

se nem no coaxar das rãs

participamos na insónia;

se é no ousado dissidir

que somos 

nomes inteiros

matéria vulcânica ateada

braços de cepa audaz

noite sem vultos a adejar

os ramos frondosos de uma praia

enseada a aprender a falar o futuro 

– combine-se a procuração contra os agiotas

que não é de medo que se assanham as bocas

nem de uma alma venal aos olhos de suseranos

que falam as estrofes de titânio. 

#2819

Não irá vestida a agonia

na passerelle da discórdia.

19.6.23

Injustiças indocumentadas (122)

Tantos cortam na casaca

e contudo

tão poucos alfaiates inventariados.

Injustiças indocumentadas (121)

Chamou-lhe um figo

e por que não

“eu sei lá”

uma framboesa?

#2818

Acusado de crueldade

respondeu

que foi apenas pessoa.

18.6.23

#2817

Sem que fossem as sombras

a decantação do medo

no verossímil refúgio

onde a vontade se faz alta.

17.6.23

#2816

O dia 

confessa a tontura da alma

à espera de absolvição.

16.6.23

Injustiças indocumentadas (120)

Os anjos não têm costas.

E essa

é a definição de incapacidade ao quadrado.

#2815

É desta maré avassaladora

eivada de imperativos irrecusáveis

que fujo com as forças que tenho.

15.6.23

Bonsai

O vulcão líquido atravessa os ossos

fica com um quinhão 

que amedronta os sismos qualificados

e em equações sem propósito joga-se o belo

jogam

os anfitriões que mostram as sílabas do pecado.

 

São os despojos que confecionam as paredes

sem que da estultícia dos sacerdotes

recolham as baias dos costumes.

Se não for pelas espadas argutas

que seja através dos colóquios 

onde se antecipam os títeres doravante.

 

Todos mostram as mãos

como se houvesse um mandado do tribunal

e as curvas retorcidas fossem prova dos párias.

Não interessa.

Todos combinaram

em silêncio

que as mãos ficam prostradas

assim como quem finge não saber o idioma

ou não ter faculdades mentais.

 

Às vezes

o húmus referencial subleva-se

e nem o odor pestilento

cobra as dívidas futuras

nem as sereias amestradas

coabitam com as fontes agelastas. 

#2814

Os verbos rimavam com

depostos todos os sem

que dantes eram embaraço.

14.6.23

#2813

O tesouro

voa com o vindouro

deixando o chão deserto.

13.6.23

Botânica

A flor bela

devora

a flor bala.

Antes fosse

a flor bola

lamenta a flora bala

quase a cair na boca

da flor bela.

Tudo

sob os auspícios

da flor bula.

Injustiças indocumentadas (119)

Tarde.

É tarde.

À tarde.

#2812

Atravessam as cores

atravessam os vulcões

com os nomes ensandecidos

com os olhos assestados no futuro.

12.6.23

Visto

De um nome não se diga 

indiferença. 

De um nome

sejam rasurados os poros 

em manhãs ausentes,

a diligência dos arrependidos. 

De um nome

fugido à escravatura 

urdindo os verbos crepusculares

enquanto se amacia o verbo do porvir. 

Dos nomes se digam

bem alto

as clepsidras luminosas

o verbo oponente num horizonte sem freios

os nomes

inteiros ou pela fração que calhar

em sucessivas marés sem algemas

os nomes que chamam por nomes

antes que sobre eles caia

o silêncio. 

#2811

Uma luz deposta

empresa crepúsculo

à pele faminta.

11.6.23

#2810

O circo desmontado

as feras hibernadas

a arraia-miúda

de olhos marejados.

10.6.23

#2809

Encorpas 

numa muralha de palavras

avenida que amanhece

numa clareira.

9.6.23

#2808

Nas fronteiras 

um marco geodésico

o passaporte 

para um sangue participado.

8.6.23

#2807

Esta marcha marcial

tem tanto de impante

como de parcial.

7.6.23

Marcial sem arsenais

Ascendo ao supor venal: 

transijo com os rumores,

a flácida matéria 

dos que deixaram de ser 

vitais,

convoco os leilões das almas

as almas em pessoa

ou por procuração

(também serve).

Amarro os braços

a uma camisa-de-forças

a jaula de onde não apetece fugir

mesmo que exposto como animal

e de mim se diga

que foi merecido.

Nunca tive medo da humilhação.

Nunca soube ser das dores da insídia.

Ouve-se o vento martírio

o ciciar das flores que crescem

um vírgula dois centímetros por hectare

o ritmo compassado da pele hirsuta

e sabemos

sem termos sido ensinados

que é como se um tsunami 

estivesse a bater à porta

e nós, 

impassíveis,

à espera

só à espera.

Injustiças indocumentadas (118)

Aprende 

que eu não duro 

para sempre;

aprende

que de mais duro crânio

não há paradeiro;

e aprende

que a vaidade

extingue-se

como a vida.

#2806

A eternidade

é uma vírgula

no passado.

6.6.23

Injustiças indocumentadas (117)

Traz água no bico

(mesmo que esteja uma seca

de bradar aos céus).

#2805

Ponto e vírgula,

antes de mudar o assunto

que ainda não ficou tudo dito

sobre a pendência.

5.6.23

A viabilidade da fala

No estuário da voz

as sílabas cortam o vento

e acertam a nomenclatura

desafiando a orfandade.

Não será nesta voz

que se aninha o protesto:

o silêncio não tem gramática

e ainda que sejam viáveis

os apóstatas da cacofonia

até as palavras sem fundo

se sobrepõem ao silêncio:

o silêncio

é o pressentimento da morte.

Injustiças indocumentadas (116)

Se de bronze são

pífias são as leis.

 

[Continuação de “Injustiças indocumentadas (114)”]

Injustiças indocumentadas (115)

Se há leis de bronze

por que não as há

de prata ou de ouro?

 

[Continuação de “Injustiças indocumentadas (114)”]

Injustiças indocumentadas (114)

Uma lei é melhor

só porque é de bronze?

#2804

A armadura disfarça as fraquezas

ajuda a mentir 

com a dignidade da sua ferrugem.

4.6.23

#2803

A jogo 

sem medo

a muda 

arraia-miúda.

3.6.23

#2802

Escolha uma das seguintes

para a personalidade do momento

 

burlesco

grotesco

picaresco

 

sem justificar a escolha.

2.6.23

Valsa do peregrino

Um peregrino

 

(parecia um peregrino,

ou talvez fosse um mendigo)

 

avança devagar

apoiado na estrada.

Arruma com os pés as flores 

deixadas em bandeja no chão

como se o chão tivesse suplicado

um tapete aromático.

O peregrino

ajeita os andrajos

 

(seria um mendigo?)

 

e murmura

com ar de poucos amigos

o que ninguém consegue retirar

ao silêncio.

O peregrino

participa a solidão:

há quanto tempo

não fala com pessoas?

e esta interrogação

arbitrária como a suposição

só é válida para quem a formula.

Ninguém pode dizer ao certo

o que vai por dentro do peregrino

 

(e também não por dentro do mendigo).

 

A fivela à cintura descaiu

e o peregrino acerta-a:

não quer ficar

com as calças na mão,

o mendigo

 

(ou será o peregrino?).

#2801

Escondidos

como se fôssemos

o nosso próprio eclipse 

– não é vã,

a matéria anónima.

1.6.23

A pele do avesso

Virada a pele do avesso

um desassisado vulcão 

de frente para o precipício

sem rastilhos por atear

sem outras partidas

a servir de cais.

Do avesso

em vez de avulso

a lareira dentro da boca

e a incandescente tocha à espera de erupção

domando o sal que vem com a manhã.

Avesso me encontro

às tágides como trovoadas

inspiradoras que inspiram um avo

antes que sejam fermentadas 

pelo efémero que não entra no dicionário.

Ao vaso centrípeto

onde o sangue se deslaça

e tudo deixa de ser ontem

a pele avessada deixa de ser

em bordões de carne sem prescrição

a teimosia que derrota os mastins sem rédea.

E de volta do avesso

a pele desembaciada golpeia as uvas certeiras

antes que as abóbadas do apocalipse

sejam bilhete postal

antes

que as rodas desimpedidas sejam travejadas

no provável logro dos medos

na fatiada vida servida em fascículos

contra o princípio geral do bocejo

e a alardeada sinfonia 

dos que vão de braços em baixo.

Para saber da pele

é preciso levá-la ao avesso

extingui-la das viciosas coleções dos dias

macerá-la no vinho frágil

que a torna a mais vívida fortificação.

#2800

O vento 

foge depressa daqui

vem-se a saber

que este não é um lugar

favorito.