9.9.15

Paredes altas

Os tijolos cheios de musgo
cansam as mãos.
O suor que lava o rosto
desdiz as facilidades.
Porém,
entre a espuma do mar que beija a areia
há conchas pequenas que enchem a alma.
As mãos suadas evocam as conchas
por entre o musgo dos tijolos.
A fala entaramelada testemunha
o cansaço dos ossos.
A parede é alta
descobre armadilhas
parece que não se deixa transpor.

Mas a parede esconde um sortilégio.
Não se sabe
o que mostra no lado escondido.
Pode ser a fruição da bondade
com campos intensos e flores garridas
montanhas suaves atapetadas por urze
os cimos ainda tapados pelas neves eternas.
Ou pode ser uma cornucópia de estultícia
um abraço ardiloso de maldade
e rios fétidos
envergonhando com as suas escuras cores.

As facas pendidas terçam a incerteza.
Mas as mãos suadas não se intimidam.
Agarram as pontas dos dedos
pedaços pequenos de tijolos
e escorregam
escorregam vezes sem conta
no visco que os enroupa.
A eternidade dos tempos adeja
em forma de ameaça.
Pois as mãos pertencem a quem não é imortal
e o engenho não é imorredoiro.

O muro
o tão alto muro
o muro que parece crescer
assim que as mãos derrotam um pedaço de tijolo
personifica uma promessa.
Não se sabe que rosto se esconde
no lado oculto da promessa.
Nem assim as mãos se demovem
à medida que o corpo restante ordena
que o musgo dos tijolos se dissolva
no suor das mãos.

Depois se verá.
Quando o promontório for tomado
e a alta parede for lugar de contemplação
saber-se-á que estimativas faltam
para o descer
e pisar
talvez
seguro chão.

7.9.15

O roubo das almas

À espera.
A névoa que se acama
um feixe de luz tíbia.
A espera demora-se.
Os candeeiros provocam
uma luminosidade opaca.
A espera impacienta.
As luzes sondam as portas
um bafo quente derrete a lucidez.
As esperas todas.
Montadas em série
(talvez em sequência linear)
e a luz decantada pela névoa
cintila entre os poros.
Dizem
que a paciência derrota as esperas.
Dizem que é virtude.
Só não dizem
que as esperas em interminável sucessão
determinam a corrupção das almas.
E luz nenhuma aguenta a provação.

3.9.15

Desconversar

Os ramos secos fecundam
as letras madraças.
Troca-se prosa que caçoa dos sentidos.
Às duas por três
os ramos secos extinguem-se
e fica apenas o chão nu.
Podíamos podar árvores centenárias
ou apenas beber cálices de vinho
enquanto a alma tergiversa.
Ou então
para não sermos apóstolos da indiferença
medrar no sofá e em filmes suecos.
Nem tudo pode ser contumaz
– advertem os senhores da sensatez.
É quando soam as sirenes:
chegou a hora do desconversar.
Chegam depois novas retumbantes:
estaríamos a loucurar
(rezam as novas empoeiradas).
Que seja assim.
Antes uma loucura fecunda
do que a linha direita que fede
a desloucura.
Se preciso for desconversa-se.
As vezes que forem precisas.
Até que toda a desloucura
caiba dentro de uma touca de amianto.

2.9.15

Manifesto

E da janela aberta
enquanto o vento nos beija
a alvorada em forma de renascer.
Nos vidros em orvalho
escorre a tinta da china
testemunha das nossas palavras.
Não importa o tempo que faz.
Pela janela aberta
extraímos a raiz quadrada
da intemporalidade que somos.

1.9.15

Ato falhado

Dizem-me as coisas penumbras
que da cor púrpura não se espere muito.
Atónitos, 
canalizadores das almas desaguam no estertor
que é serem quem são.
Recolhem poeira
a inútil poeira rarefeita
e tiram as medidas de lições perenes.
São saltimbancos
que pontuam as vidas outras
mercê de não saberem o que fazer com a sua.
São
(e nem chegam a dar conta)
genuínos atos falhados.

24.8.15

O devorador de lugares

Passo pelas curvas traiçoeiras
pelas terras áridas
pelas mãos várias.
Passo pelas luas coloridas
pelas avenidas largas
pelos poços escuros.
Passo pelas cordas de uma guitarra
pelo musgo do cais
pelas voltas de um carrossel.
Passo pelas asas de um corcel
pelas pedras pontiagudas
pelos antros temíveis.
Passo pelos lugares todos
e por outros que aprouver
guardando as facas no bornal da memória.
Passo.
E as mãos tremeluzem
só de saberem o passo pelo passo estugado
nos olhares diferentes
nos cheiros da terra
e pelas singulares estrofes de um poema
sem sal.

16.8.15

Tesoura de poda

O ouro fundido nas nuvens.
A alquimia do dia
adocicada nos frutos colhidos.
As flores, vetustas,
sereias delgadas em formosa coreografia.
A vontade segredada em rima
um esteio solar.
Valem as cartas jogadas.
Os trunfos capazes
num naipe entre as mãos suaves.
Das nuvens douradas
uma chuva sortilégio.
Diurna.

14.8.15

Maçã de Adão

Fez-se constar que o pecado
ficou entalado na garganta de Adão.
Ofereço as minhas dúvidas.
Não se fez constar
que outra além de Eva
tenha sido apetite do Adão.
Termos em que uma interrogação
É servida em lume brando:
o que está atravessado na garganta de Adão
por que ficou nesse estado?
A menos que Adão
tenha ocultas amantes e grasse na mentira
ilustres doutores de medicina
são convocados a depor.
Dispensem-se os homens da lupa em riste
em demanda da consciência do Adão.
Faço constar
em porventura especulativo exercício
que os letrados em medicina diriam
ser o bagaço do vinho roubado
em caves de abastados proprietários
que cristalizou na garganta do Adão.
Vingança destes
(ou lembrete divino)
Adão amanheceu com a garganta protuberante.
Jamais se leu tamanha versão dos factos.
Se não
Marx chamar-se-ia Adão.

13.8.15

Sangue quente

As veias em ebulição.
Fervem no contraste das facas depostas.
O sangue levita
em sucessivas ondas convulsivas.
Depois vem o suor
em cascadas descendo a pele ruborizada.
A contemplação das coisas
obnubilada pelas persianas que descem
sobre o dia.

O aroma das framboesas
repara os males possíveis.
Refresca o olhar que tergiversa:
enxagua o suor decadente
mapeia as veias frementes
até que o sangue se sirva em arrefecimento.

Mas pode ser efémero:
que a faca do tempo resolve
num ardil premeditado
desatar uma tempestade sem agenda.
Fica tudo à mercê do caos
e o sangue volta a ferver
por dentro das veias incendiadas
devolvendo o suor ao corpo num frémito.

É sabido
as tempestades são efémeras.
E por mais que sejam duradouros
os seus efeitos
o corpo não aguenta duradouramente
a combustão das veias
que é nutriente do sangue quente.

Cessa o suor.
Cessam os sobressaltos
que amesquinham o tempo presente.
Cessam os vagares
que aprisionam o tempo.
O céu desprende-se da cortina de sombras.
Resplandece
nas suas cores vivazes
lembrando que apenas importa o dia presente.
Resplandece
o céu admirável
perfumando o tempo
com  o aroma das framboesas.

Lá longe
o sangue quente já é só
matéria do reino das memórias.
É sabido
o efeito heurístico das tempestades.

11.8.15

Pele lavada

Já sabíamos
os mistérios da alvorada.
Éramos armadores dos seus segredos
enquanto a bruma subia por cima
da copa das árvores.
Já sabíamos
que as lágrimas furtivas
não se embebiam em fortuna.
Éramos lugar-tenentes da sobriedade
e nem nas folhas rasteiras víamos ardil.
Já sabíamos
a sapiência dos mastros.
Éramos forcados ambulantes nas hastes alheias
e no fim levávamos o troféu.

Já sabíamos
que o mel e o ouro são nossos.
Por mais que o mar cicie o contrário
as mãos colhem das algas a maresia inteira.

Já sabíamos
que os poros se enchiam de luar.
Éramos argonautas sedentos do neófito
em forma de coroa de diamantes.
Já sabíamos
que o suor se insinuava nos poros.
Éramos ambidestros na decantação da cicuta
enquanto a lua nova antecipava a luz inteira.
Já sabíamos
que os olhos se enchiam em troca.
Éramos timoneiros de todas as naus
em que olhos doirados fossem embarcadiços.

Já sabíamos
das rosas com espinhos abruptos
das uvas amarelecidas e gastas
dos rios desbragados, iracundos
dos espíritos macilentos
das arcadas desabitadas
(e daquelas habitadas por inumana gente)
do restolho das árvores
dos ocasos dedilhados na fronteira da lucidez.
Já sabíamos
tudo isto e outro tanto.
Éramos os diligentes penhores das palavras
enquanto cerzíamos a intensidade
por dentro de nós.

Já sabíamos
que só podíamos contar
com os frutos que nascem das nossas mãos.

10.8.15

A agulha e o palheiro

Fecha o livro
fecha a boca
(não tem serventia ficares boquiaberto).
Não adianta acenderes velas
nem as preces aos anjinhos.
Esquece as ajudas
de quem pudesse ser ajuda
atira as esperanças contra a rede apertada
deixa-te suar
que ao menos o suor evapora a ira.
Tens um palheiro sem fim
e uma agulha para encontrar.
Deitas fogo ao palheiro?
Não compensa o arresto
por não valiosa agulha.
Pode ser que antes
te cheguem os vapores da loucura.
E então
tomado pela demência
um cálculo sem cálculo te faça aterrar
no terreiro onde acama a agulha.
E depois
desidratado de tanto porfiar
perguntarás às perguntas
para que serve aquela agulha.

6.8.15

Salto no escuro

As portas blindadas intimidam.
Mandam-se relógios contra elas:
sem efeito.
No chão três gatos
debatem-se com os despojos
do restaurante mesmo ao lado.
Bulham por um pedaço de bife
diante da indiferença das pessoas.
As férreas portadas
inamovíveis
são como elefantes em hibernação.
A vontade não se demove
nem por ver que as portas não tergiversam
acossadas pela ventania do ciclone.
Engendra-se estratégia
para o esbulho das portas.
Passa pela descoberta da chave.
Ou
como fazem os ladrões
por forjar uma chave
que deixe à mostra
a penúria da aristocrática porta.

4.8.15

Maresia

Maresia ao entardecer.
o frescor do vento esbarra no rosto
e eu respiro este perfume
que sacia os sentidos.
A maresia encomenda os sonhos
já não desterrados em paisagem etérea
antes
transfigurados matéria viva.
Desta maresia nutriente
refrigério que aplaca vultos
estonteante avenida:
onde a maresia dá forma
ao trono dos príncipes eternos.

3.8.15

Apólice

Não é em cima do joelho
que se alçam as mordomias do tempo.
É em labor reiterado
com destreza incluída
e uma certa dose de inspiração.
Não é ao calhas
ao deus dará
nas mãos de um oxalá qualquer
em lugar da falta de brio madraça.
Esta é a apólice
a imperativa apólice.
Para à noite
os pesadelos
não serem com as veias em suor.

31.7.15

Monopólio

Uns seráficos tiranetes
disfarçados de almas bondosas
entretêm-se ao jogo do monopólio.
Fazem de conta que não;
convencem-nos que são generosos
espalhando virtudes outrora ausentes.
E (protestam uns visionários)
empenhando-nos em hábitos saloios
e numa dependência que nos aprisiona
a autonomia.
Cai-lhes a máscara
aos tiranetes do monopólio:
só querem a gula da abastança
enquanto nos viciamos nos seus ardis.
E cai-lhes a máscara
aos visionários do oráculo sapiente:
que não desdenhariam outra forma
de monopólio.

30.7.15

Limites

Não nos limitamos
aos limites que estreitam desafios.
Que contrariam o letargo.
Os limites
de sermos além do que julgamos.
Com a força que nos é devida
abrigamos os limites na lonjura.
Como se o céu deixasse de ser estorvo
ou impedimento mental:
no devir de que somos tutores
a força depositada nas nossas mãos
levanta o limite dos limites.
Temos a fronteira nessas mãos ricas.
Não nos atemorizamos com a empreitada.
As mãos apoderadas
adiam a distância entre nós e o céu.

28.7.15

Prova de fogo

As cinzas arrestadas da montanha
pousam a meus pés
na planície que deixou de ser dourada.
Corvos dançam entre as nuvens
entre os pedaços de azul
que as nuvens deixam à mostra.
A mãe passeia o bebé no carrinho
cruza-se com um cão vadio
que fareja o oráculo do nascituro.
O mar encolheu-se na maré baixa
dir-se-ia temer a multidão na praia.
Os carros passam sem cessar
vão e vêm ao deus-dará
empalidecendo o asfalto que é seu chão.
No apeadeiro
duas adolescentes grasnam ao telemóvel
num idioma quase ininteligível.
À porta do supermercado
a senhora velha deixa cinco euros
no chapéu indigente do mendigo.
Uma folha de jornal perdida,
levada pelo vento que se pôs,
É lustre para prosa entediante
do neófito escritor careca.

A noite que se anuncia faz acender os lampiões
e uma penumbra consome a senescência do dia.
As pessoas jantam nos restaurantes
os namorados beijam-se no banco do jardim
o velho acabrunhado sobe a avenida, impassível
os turistas de nariz no ar celebram o desconhecido
o motorista do autocarro boceja no fim da jornada
e as estrelas congeminam-se para uma noite mágica
a antevéspera de todas as proezas juntas
numa só página de um livro.
Como se estivesse para vir uma parada de músicos
e a música fundida fosse uma partitura aguada
com estrofes compostas em forma de nenúfar.

Na planície onde estou
as cinzas foram varridas
e a planície resgatou o vestido dourado.
O dia foi um triunfo inteiro.
Estou como um imperador em visita às hostes
apreciando a vastidão do território
e o respeito dos súbditos.
Naquela altura
em que as sombras se dissolvem
e deito a mão ao peito
só para dizer
em rima com o sentimento
como subi ao promontório
e extingui o fogo que tudo ameaçava consumir.

27.7.15

07:01

O despertador, estridente.
Persianas que se erguem sobre o dia.
O sono, ainda.
E torpor.
Devo vir de chapéu estendido
para o dia nascente?

Às vezes
antes ficasse na letargia
– penso,
ou julgo que penso,
tomado pela preguiça atónita.
A luz lá fora à minha espera
e o corpo madraço abraçado aos lençóis.
Não sei que luz está à minha espera.
O boletim meteorológico não é de fiar
(ontem adivinhava um dia solarengo).
Se calhar há andorinhas em viagem
ou gaivotas esfaimadas em pose de abutre.
Ou, se calhar,
deixasse eu de perorar em pensamentos
que há banho por tomar
e a lufa-lufa do escritório.

Talvez tenha sorte
daquela menina bonita se sentar ao meu lado
no elétrico para a baixa.
Ou da varina gorda rogar pragas vernáculas
a uns rapazotes estroinas que tropeçaram no cabaz.
Ou de ser vizinho de refeição daquela atriz de teatro
que deixa os homens loucos
só de cruzar as pernas.

Ou, apenas,
devo sair da cama porque é lá fora
que medra a vida.
Entretanto
07:19.
Faz-se tarde.
Entaramelado
resgato-me do torpor dos pensamentos.
Nós fomos feitos para trabalhar:
para engrossar o pecúlio dos abastados
e pedinchar salário de subsistência.
Pelo menos
é o que protestam as vozes incendiadas
pelos despojos das virtudes.

O ar torna-se denso dentro de casa
insuportavelmente pesado.
A demanda vem da rua.
Do bulício e da indiferença dos passeantes.
Vou-me à rua
na derrota das rarefações diárias.

Banho tomado.
07:56
a rua sente-me,
enfim.

24.7.15

Timoneiro

Um timoneiro bem apessoado
não perde a fleuma
ao sentir o ângulo morto
da penumbra.
Adestrado nos contratempos
o timoneiro não reserva o lado lunar
para as intempéries
(as de outrora e as que vierem a bombordo).
As tréguas
toma-as entre mãos
dos seus termos faz-se zelador.

22.7.15

Perguntas de retórica

Quanto de ti
prometes aos prantos leitosos
da tágide moderna?

Quanto de ti
entregas aos braços sedosos
da deleitosa ventura?

Quanto de ti
retiras do regaço cálido
da imperatriz abraçada?

Quanto de ti
dás ao preceito frutado
das mãos entrelaçadas?

E quanto de ti
se reaprende no feixe de luz
emulsionado pela sua aura?

As interrogações servidas às avessas:
pois de serem retóricas perguntas
afianças resposta loquaz:
tudo,
na singularidade de uma inteireza cabal.

Todos os sonhos extasiados
todos os olhares de mel
todos os frutos dourados
todos os recantos emoldurados
todos os dedos prometidos
todos os sentidos maiores
todas as estrofes sem dedicatória
toda a carne quente ao toque das mãos
todas as noites
os dias inteiros.

Da plenitude que extravasa
para fora do corpo e da alma.
Tudo.
E com a imensidão de que somos artesãos
com todo esse tudo.

21.7.15

O casaco do professor Miranda

O professor Miranda não brinca em serviço:
impoluta indumentária
o casaco não se tira 
nem que quarenta sejam os graus
e o suor desça dos sovacos ao resto do corpo.
Pois que o professor Miranda
atreito às convenções
(e talvez seu refém primeiro)
tudo fará para tudo fazer
sem despir o casaco.
É só imaginar.
Uma aula, decerto;
o repasto na cantina
(que nunca o professor corre o risco de nódoas
afearem o casaco);
um eletrocardiograma;
um evento que admita vestuário sem peias;
uma prova de natação;
uma viagem de automóvel;
o sono, na cumplicidade dos lençóis;
a passear o cão na rua;
a acompanhar o neto no cinema;
a comprar peixe à lota;
e
vá-se lá saber
nos privados banhos
noutras privadas funções
daquelas que exigem solidão
ou
vá-se lá saber
companhia de alguém.
Mas do casaco
do sóbrio casaco de respeitável linhagem
não prescinde o professor Miranda.
O casaco sem é nudez
para o professor Miranda.