20.12.15

Almanaque em branco


Tinha uma rosácea esculpida
no peito aberto.
Era um couraçado
e bebia o sal dos mares
enquanto devolvia árvores
às florestas.
Outras vezes
era um nenúfar principiante
murmurando entre as águas
pardas.
Era como se soubesse tudo
na penumbra das incertezas.
No fim de contas,
apenas tirava a medida
do desconhecimento.

17.12.15

Elipses

As pedras solitárias
são como garfos no meio de uma mesa
abandonada.
As pedras pontiagudas
punhais celestes que tiram o sono
do asfalto.
As pedras desordenadas
corpos férteis, miradouros
estremunhados.
As pedras chãs
comportam-se como lordes ingleses
em pecaminosos desvarios.
Vejo as pedras voadoras
os cilindros quentes enterrados no jardim
as nuvens acobreadas
a vozearia de cantores que se acham cantores
e mais pedras
esventradas ou ancestralmente intactas
e o granulado que delas se solta
a compor as sobrancelhas do ancião.

As pedras
têm muito a dizer.

(Houvesse quem lhes perguntasse.)

14.12.15

Pós-qualquer-coisa

Enquanto lá fora
as folhas ganham vida
despojadas no chão.
Enquanto lá fora
a chuva agride a relva
e o rio ganha volúpia.
Enquanto lá fora
os reis habituais reinarem
na também habitual sobranceria.
Enquanto lá fora
se escondem na consciência
os sótãos da expiação.
Enquanto lá fora
as nuvens correm céleres
na exata medida da preguiça.
Enquanto lá fora
as palavras entoadas
forem pregões vetustos.
Enquanto lá fora
os joelhos tiritam de frio
por o medo subir à boca de cena.

E
enquanto lá fora
houver três dentes de tristeza
lágrimas furtivas de desencanto
punhais espetados à mercê do desamor
cães vadios destratados
velhos e menos velhos corroídos pela solidão
casas lúgubres medonhamente húmidas
o odor fétido das fábricas
ideias comidas pela desonestidade
sapatos rotos que deixam entrar a chuva
rumores transfigurados em certezas
ruas pútridas de gente
e gente órfã de si mesma:
eu encontro refúgio cá dentro
onde se acastelam miragens
doces enovelamentos de ideias por provar
palavras que apetecerem
e sempre,
sempre,
uma desdança sem gente por perto.

11.12.15

Roda dentada

0
Um começo, 
como todos os começos.
Uma névoa indistinta
adeja sobre a madrugada.
O corpo ainda letárgico
esboça o movimento.
Se fosse em sonhos
dir-se-ia a representação de um pesadelo
a bruma mestiçada com o lodo do cais
tirando lucidez ao olhar.

I
Os dentes metálicos começam a ranger.
Embebem-se no óleo gracioso,
um unto imperativo.
Encaixam-se
com uma dose de engenharia certeira
que deixa os lúdicos boquiabertos.
Oxalá os pássaros
não se esqueçam da alvorada.
E as pessoas saiam à rua
na habitual vertigem
que cuida da idiossincrasia da cidade.
Oxalá os profetas se guardem,
com as suas espadas diligentes,
para as empreitadas difíceis
e sejam tutores das enfermidades.
Os joelhos doridos ensaiam um passo
– o passo que estreia o dia.
Oxalá os nomes sejam bem ditos
sem nuvens densas desviando da estrada.
Estremunhado
engravata-se até ao tutano.
Não lhe apetecia,
a gravata é um nó górdio
sebenta da artificialidade.
Não adianta o adiamento:
mais vale sair à rua
respirá-la na pureza do ar impuro
abraçando as outras pessoas
num amplexo de afetos
em míngua.

II
Na paragem do autocarro
um estrangeiro desorientado.
Às vezes
acha-se tão forasteiro entre os nativos
que admite ser ele o estrangeiro.
Os olhos espartilham o mutismo
que dissolve a identidade.
Deve ser do emudecimento,
da contingência do desprazer dos outros.
Não por acaso
o estrangeiro mete conversa com ele.
Sente-se em casa.

III
A dieta dos sentidos
alimenta a fome que não tem.
Os outros saíram,
amesendam algures.
Retira-se para o terraço
e deita o olhar sobre a cidade.
Ela está aos seus pés.
Não fosse a desidentidade
diria ser o imperador da cidade.
Mas o que interessa a vaidade do poder?
O que interessa a adulação,
em gesto oportunista,
se não como o curvar diante do poder?
É só
(que é um tanto)
a hipocrisia dos medrosos.
Aplaca a rebeldia:
ainda falta meia jornada para acabar o dia.

IV
Os dentes pútridos do mendigo
poluem a esplanada.
Há gente incomodada
 – um casal bem-posto reverbera, 
com desdém, 
a coabitação com o mendigo
em tão distinta esplanada.
O empregado de mesa passa ao lado,
diz que não tem a ver com o assunto.
Prosseguem os protestos
dos figurões apessoados.
Ele levanta-se
e prega uma bofetada com a mão inteira
no elemento masculino da parelha.
Vira as costas
antes do agredido esboçar reação.
Ganhou o dia.

V
O avião desenha um fio delgado
no céu cintilante.
Vai a caminho do poente
promete sulcar o largo oceano.
Ele soergue o rosto para o sol tardio
fecha os olhos sob a acomodação do calor
e sonha.
Sonha que seguia no avião
trinta e nove mil pés acima
e desenha com os dedos
no ar que se apresta ao papel de folha
o nome de um país ao acaso.
Talvez nesse sítio
o resto valesse a pena.
Entra nos oxalás entoados em forma de sonho.
Oxalá houvesse destino.
Oxalá voasse naquele avião. 
Oxalá derrotasse o desamor
 – a começar o da sua pessoa própria.
Um gato vadio roça-se nas pernas.
Mia a fome que o corpo esquálido mostra.
Afasta o gato.
Não seria uma côdea que matava a fome.
nem a fome se consome numa refeição.

VI
A televisão mostra cores garridas
uma cornucópia de cores
entaramelada com vozeria maciça.
Por que está acesa a televisão
se a atenção não lhe dá atenção?
Ao menos há o boletim meteorológico
e um ator 
que declama trinta segundos de poesia.
O resto
é o silêncio empedernido
um pomar infértil
as montanhas sem água
as botas gastas
os pés cansados
os voos embaraçados das garças
uma nuvem que embacia o sol
o entardecer reflexivo.
Junta os papéis por grosso
sem ordem da ordem que tinham.
Num gesto repentino
amarrota os papéis e deixa-os órfãos
no banco de onde esperava o ocaso.

VII
Porventura
o dia gasto foi em vão.
Ou talvez não:
pusera em sentido o casal pimpão
que não parava de bolçar o vómito elitista.
As ilações que nadam entre a espuma do mar
bóiam no pensamento.
Imerso numa encruzilhada de pensamentos
e com a dor das cólicas de quem não comeu
contradiz-se nas preces que prometeu
não entoar.
O atavismo da vida
é um embaraço maior
 – desenha com dois dedos em cima da mesa
enquanto duas lágrimas se desprendem
do olhar cansado.
A tremenda roda dentada,
esteio de tudo
o sargaço que cura maleitas várias,
não é desengano.
As dores são dores
mas aos olhos sobe um módico de riqueza:
as vias tortuosas 
são parapeitos estreitos
onde o pensamento gosta de se deitar 
– o pensamento que se curva
num passo suicidário.
Os dementes estão por todo o lado.
Os piores são os que vestem smoking
e discursam com eloquência.
Se calhar
chegou a hora dos aposentos
onde os lençóis deixados em desarrumo
querem arrumar o sono em desasossego.

VIII
E o sono
foi analgésico?
Não sabia dizê-lo.
Era como se andasse em círculos concêntricos.
Deixara de saber
se o sono era um sonho
ou o sonho era o fermento do futuro esboçado.
Sempre soubera
que não tinha jeito para arquiteto.
Os riscos arrevesados e tortos
antes fossem substituídos pelas palavras.
Mas o bloco de notas ficara perdido
nas areias molhadas pela maré alta
entretanto.

10.12.15

Eruditos pela metade

Argumentos colados com cuspo
no corrimão das desideias.
Fazem rir
(não sei quem mais:
se os fautores ou as desideias).
À custa da soberba,
da erudição de sopeira,
prossegue o lúdico,
longo momento.
Na escala da prosápia
os eruditos da copa de cozinha
confecionam ideias bastardas.
Em ânimo loquaz
sob os holofotes de onde irradia
a humilde audiência.
À espera de genuflexão
de um reconhecido curvar.
Assim manda
a erudição de alguidar.

9.12.15

Noite

As ruas vazias
são como a noite.
Enchem-se os copos
com os corpos vadios.
Refastelados
como as folhas outonais,
despojados de cama.
Os copos cheios
e depressa vazios
emprestam nuvens baças
às ruas vadias.
Não sobram
já nem outonais folhas.
As ruas estão vazias.
Vazias.
O chão molhado
perece em lágrimas reprimidas.
Da noite cheia
no nada das ruas vazias.
E a ponte tão perto
da alvorada timorata.

7.12.15

Os dados

Jogo os dados
ao acaso
no acaso de quem lança os dados
à quimera de um proveito.
Quase em jeito de roleta russa
o latejo impulsivo de saber
que o fado tem as medidas tiradas
pelo sortilégio dos dados.
Jogo os dados
e talvez não devesse fazê-lo.
Meto o olhar desembainhado pela coragem
na coreografia dos dados.
Os números entaramelam-se
na dança voraz.
Vejo o seis,
o quatro
o um que não quero,
os ímpares que vaticinam desdita
o seis,
outra vez,
o prometido seis,
decaindo para números menos queridos.
Teima em não sair número algum.
A alta parada joga-se em segundos
que parecem medida interminável
horas, dias, meses, anos – até.
Para vir a saber
que os dados dançam
enquanto não vier o sono final.
São os dados dançantes
o pergaminho onde se depositam
as palavras de uma vida inteira.
A quimera de um proveito
ou as cicatrizes de um infortúnio.
À espera dos dados dançarinos.

5.12.15

Sem freio

É outro o dia
e há maior proeza
que contar mais outro
no rol, já longo,
do tempo desembaraçado?
Se andasse à procura de um norte
diria que vem anelado
à bruma macia que se deitou no rio
à medida que o rio estima o desaguo.
Quando o leito do rio
se funde no mar que o abraça
e atrás do horizonte escondido,
atrás do fio último do mar,
ferve o ocaso.
Sabendo
que a penumbra depois
convoca o acerto de contas
com o dia que findou.
Na mesma penumbra
medra o tempo nascente.
O olhar desipotecado
que encontra templo
no dia amanhã.

3.12.15

Volta ao mundo

Aviões quase estratosféricos
e depois aeroportos apinhados.
Navios mercantes
e marinheiros indiferentes.
Estradas sem fim que povoam desertos
em automóveis decadentes.
Balões cheios de hélio
e paisagens tomadas nas minhas mãos.
Os comboios tonitruantes
e estepes que ficam para trás.
As fronteiras
as fáceis e as impossíveis.
Os meses todos em roda viva
sem calendário à imagem curta.
A chuva tropical
e as neves eternas nas montanhas.
Nos cantos todos do mundo:
os pássaros gaiatos
as avenidas vazias
as águas de cores diferentes
a gastronomia extravagante
os idiomas e as cores de pele
as camas onde o corpo repousou
as xícaras de porcelana ao pequeno-almoço
as senhoras simpáticas dos museus
o trânsito caótico
e a planura sem gente
os meninos em corrupio
a gente que calça pé descalço
os relógios avariados
as fumarolas vulcânicas
e a terra enegrecida
a noite frenética
e a noite sem gente
os garfos pousados no prato vazio
os copos bebidos
as páginas que já não são brancas
mercê das palavras amontoadas.
As chaves para o mundo inteiro
aconchegado
na pequenez das minhas mãos.
E tudo
sem sair do teu corpo.

2.12.15

Os trabalhos de Montezuma

De cá de baixo
empilhados uns sobre os outros
os muitos trabalhos à espera.
De cá de baixo
pareço um grão de areia
no sopé da montanha.
Pode ser que a preguiça
consuma o tempo último.
Pode ser que não haja luzes radiantes
a povoar o porvir.
Em sabendo que a inação é timorata
devolvo-me aos trabalhos em espera.
A montanha não atemoriza.
E ainda que labirintos haja
nos alvores da empreitada
o amanhecer dissolve as tergiversações.
A montanha soergue-se
alta
tão alta
que sobe acima do que o olhar alcança.
– Mas isso são outros quinhentos,
segredo àquela parte que lobriga
o punhal que desfeiteia a bruma madraça
que embacia as mãos.
De hoje para amanhã
a empreitada terá um começo
– um recomeço,
corrijo, ato contínuo.
A tão alta montanha não assusta.
Ela embebe a medida de todas as medidas:
um cálice de doce vinho tardio
e as palavras encorajamento,
o incentivo maior.

1.12.15

O rapaz da neve

O rapaz
tinha a cara fria
da neve que flutuava.
Não sentia frio.
O rapaz
vinha abraçado a um sonho
e os sonhos não têm frio.
O rapaz
entoava uma melodia
que ninguém distinguia.
Não se importava:
a melodia era a centelha
do sonho.

30.11.15

O cárcere invisível

Não digo que sejam certas
as palavras ordeiras
do comendador.
Não digo que faça falta
um azimute afinado
e um ponto cardeal.
Não digo que somos néscios
em demanda de um fio de prumo,
um peso calibrado.

Todavia,
não me parece
que sejamos penhores
das almas outras.
Não me parece
que a tibieza algures
tenha folhos frondosos.
Não me parece
que os olhos alheios
sejam a medida dos nossos.
Nem menos me parece
que temos de alinhar as coordenadas
por uma bússola trespassada.

Já me parece
que a riqueza do ser
obsta ao penhor em mãos
que não sejam próprias.
E mais me parece
que as paredes embotadas
caiadas por mãos externas
são o rosto da descombustão.

Todavia,
em não sendo capazes da lucidez
depressa
somos cobaias do engodo.
Depressa
vemos os olhos hipotecados
ao devir dos outros.
Andamos para trás,
na melhor das hipóteses,
caímos na hibernação timorata.
Não pesamos o campo de minas:
somos existência por diapasão
que nos é estranho,
um eu adulterado
amestrados num rebanho ordeiro
treinados para o não pensamento autónomo.
Não somos a excelência que somos.

Nessa altura,
pode ser tarde de mais
para os alinhavos da alma.
Da penhorada alma
que não se importa com o redil.
Nessa altura,
já não há tempo para os pesares.
Sobra o tempo
para a titubeante errância
para o madraço que há em si.
Orlas de onde não escapamos
de nem sequer sabermos
contar os números
soletrar as cores
ler as pautas musicais
a hermenêutica de um texto;
enfim
de sabermos ser
sem de hipotecados nos sentirmos.

29.11.15

Pontas soltas

Doze gramas de alma
e frases inteiras em francês
(sem erros de gramática).
O chilrear do pássaro laranja
e o papel de embrulho garrido
(sem cornucópias a adornar).
A batuta de prata do maestro
e o comboio que matraqueia os carris
(na cadência ritmada das carruagens).
O rímel da senhora pomposa
e os rissóis de marisco na montra da confeitaria
(sem estarem estragados).
Os vestidos que secam no estendal
e o polícia que multa o rapaz
(sem carantonha de poucos amigos).
O cidadão que paga impostos
e o cão que deposita os dejetos no passeio
(sem, todavia, ser vadio).
O candeeiro público com a luz fundida
e mendigo que dormita, indiferente
(sem o frio invernal,
que aquece os doze gramas de alma).

26.11.15

A lua inteira
quase do tamanho do mar
onde, 
em seu ocaso,
se deita depois do cansaço
da noite.