Um começo,
como todos os começos.
Uma névoa indistinta
adeja sobre a madrugada.
O corpo ainda letárgico
esboça o movimento.
Se fosse em sonhos
dir-se-ia a representação de um pesadelo
a bruma mestiçada com o lodo do cais
tirando lucidez ao olhar.
I
Os dentes metálicos começam a ranger.
Embebem-se no óleo gracioso,
um unto imperativo.
Encaixam-se
com uma dose de engenharia certeira
que deixa os lúdicos boquiabertos.
Oxalá os pássaros
não se esqueçam da alvorada.
E as pessoas saiam à rua
na habitual vertigem
que cuida da idiossincrasia da cidade.
Oxalá os profetas se guardem,
com as suas espadas diligentes,
para as empreitadas difíceis
e sejam tutores das enfermidades.
Os joelhos doridos ensaiam um passo
– o passo que estreia o dia.
Oxalá os nomes sejam bem ditos
sem nuvens densas desviando da estrada.
Estremunhado
engravata-se até ao tutano.
Não lhe apetecia,
a gravata é um nó górdio
sebenta da artificialidade.
Não adianta o adiamento:
mais vale sair à rua
respirá-la na pureza do ar impuro
abraçando as outras pessoas
num amplexo de afetos
em míngua.
II
Na paragem do autocarro
um estrangeiro desorientado.
Às vezes
acha-se tão forasteiro entre os nativos
que admite ser ele o estrangeiro.
Os olhos espartilham o mutismo
que dissolve a identidade.
Deve ser do emudecimento,
da contingência do desprazer dos outros.
Não por acaso
o estrangeiro mete conversa com ele.
Sente-se em casa.
III
A dieta dos sentidos
alimenta a fome que não tem.
Os outros saíram,
amesendam algures.
Retira-se para o terraço
e deita o olhar sobre a cidade.
Ela está aos seus pés.
Não fosse a desidentidade
diria ser o imperador da cidade.
Mas o que interessa a vaidade do poder?
O que interessa a adulação,
em gesto oportunista,
se não como o curvar diante do poder?
É só
(que é um tanto)
a hipocrisia dos medrosos.
Aplaca a rebeldia:
ainda falta meia jornada para acabar o dia.
IV
Os dentes pútridos do mendigo
poluem a esplanada.
Há gente incomodada
– um casal bem-posto reverbera,
com desdém,
a coabitação com o mendigo
em tão distinta esplanada.
O empregado de mesa passa ao lado,
diz que não tem a ver com o assunto.
Prosseguem os protestos
dos figurões apessoados.
Ele levanta-se
e prega uma bofetada com a mão inteira
no elemento masculino da parelha.
Vira as costas
antes do agredido esboçar reação.
Ganhou o dia.
V
O avião desenha um fio delgado
no céu cintilante.
Vai a caminho do poente
promete sulcar o largo oceano.
Ele soergue o rosto para o sol tardio
fecha os olhos sob a acomodação do calor
e sonha.
Sonha que seguia no avião
trinta e nove mil pés acima
e desenha com os dedos
no ar que se apresta ao papel de folha
o nome de um país ao acaso.
Talvez nesse sítio
o resto valesse a pena.
Entra nos oxalás entoados em forma de sonho.
Oxalá houvesse destino.
Oxalá voasse naquele avião.
Oxalá derrotasse o desamor
– a começar o da sua pessoa própria.
Um gato vadio roça-se nas pernas.
Mia a fome que o corpo esquálido mostra.
Afasta o gato.
Não seria uma côdea que matava a fome.
nem a fome se consome numa refeição.
VI
A televisão mostra cores garridas
uma cornucópia de cores
entaramelada com vozeria maciça.
Por que está acesa a televisão
se a atenção não lhe dá atenção?
Ao menos há o boletim meteorológico
e um ator
que declama trinta segundos de poesia.
O resto
é o silêncio empedernido
um pomar infértil
as montanhas sem água
as botas gastas
os pés cansados
os voos embaraçados das garças
uma nuvem que embacia o sol
o entardecer reflexivo.
Junta os papéis por grosso
sem ordem da ordem que tinham.
Num gesto repentino
amarrota os papéis e deixa-os órfãos
no banco de onde esperava o ocaso.
VII
Porventura
o dia gasto foi em vão.
Ou talvez não:
pusera em sentido o casal pimpão
que não parava de bolçar o vómito elitista.
As ilações que nadam entre a espuma do mar
bóiam no pensamento.
Imerso numa encruzilhada de pensamentos
e com a dor das cólicas de quem não comeu
contradiz-se nas preces que prometeu
não entoar.
O atavismo da vida
é um embaraço maior
– desenha com dois dedos em cima da mesa
enquanto duas lágrimas se desprendem
do olhar cansado.
A tremenda roda dentada,
esteio de tudo
o sargaço que cura maleitas várias,
não é desengano.
As dores são dores
mas aos olhos sobe um módico de riqueza:
as vias tortuosas
são parapeitos estreitos
onde o pensamento gosta de se deitar
– o pensamento que se curva
num passo suicidário.
Os dementes estão por todo o lado.
Os piores são os que vestem smoking
e discursam com eloquência.
Se calhar
chegou a hora dos aposentos
onde os lençóis deixados em desarrumo
querem arrumar o sono em desasossego.
VIII
E o sono
foi analgésico?
Não sabia dizê-lo.
Era como se andasse em círculos concêntricos.
Deixara de saber
se o sono era um sonho
ou o sonho era o fermento do futuro esboçado.
Sempre soubera
que não tinha jeito para arquiteto.
Os riscos arrevesados e tortos
antes fossem substituídos pelas palavras.
Mas o bloco de notas ficara perdido
nas areias molhadas pela maré alta
entretanto.
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