5.8.16

Com as costas da mão

Uma panaceia para os curadores da irrealidade.
Um tabuleiro de jogo
em forma de caravela dos Andes
enquanto bebem azevinho
de uma chávena em forma de amora.
Talvez se lhes dessem verbos de troco
à medida que o sol se descamisa
e a língua verbena se desfaz em adjetivos fartos,
a eles venha o crédito de uma romaria pueril
com sapatos de corda atómica
e uma melíflua granada de mão
mesmo a troar sobre o despensamento.
Estiolam-se os amparos nos cotovelos
dentro de um bule madraço
onde a água não ferve
e os joelhos beijam
os traseiros músculos das pernas.
Afadigam-se em pré-adolescente algazarra
os eminentes vultos da fábrica
onde a lúdica abjeção se lobriga.
Se pudessem
tiravam uma talhada da lua
e serviam-se,
acompanhada de licor de avestruzes.

4.8.16

#48

Não me faças perguntas difíceis
que as viro do avesso
e no chão sem chão,
onde não tenho esteio,
foge-me da mão a espada sem travão.

Números primos

Pedregosas as montanhas
a que mãos transidas se lançam
num dia sem sol nem noite.
Sem artes outras se não as mãos
às vezes trémulas
outras inteiras
outras sequiosas de um planalto inteiro
com o fito de repousarem nos pastos planos.
Dizia ser uma ametista cerzida
em águas leves
o produto da multiplicação das mãos ávidas
com a matéria sobrante.
O verde reluzente dos campos
oferecia a distância necessária
à distância do som das ondas do mar
(tão longínquo)
de onde se evoca a maresia dos búzios
estilhaçados contra as rochas erodidas.
E talvez não fossem de tal arte as coisas
em deitando a pulsão lunar
(em sucessivas convulsões)
aos paredões húmidos a voz dolente,
em desinspirado arremedo.
Encontrei uma maquineta sem uso
fóssil de ferrugem
que porventura
seria o desfecho das horas sem remédio.
A força braçal toda metida
nas engrenagens da máquina gasta
e um navio ascendendo os montes inclinados
enquanto dois corvos
terçavam simpatia com um coelho
à medida das botas rombas
que subiam ao sol impróprio
por demencial teimosia.
Achei-me do lado contrário da encruzilhada:
os diademas desordenados
e os cantos alvares de sacerdotes sem rosto
hasteavam bandeiras vincadas
à espera de um entardecer sem pressa.

3.8.16

#47

Não sei
nem o que as certezas ensinam;
o biombo
que esconde biombos diametrais
desdobra as sombras infantes
sabendo nada e o seu espelho.

2.8.16

Palavras contumazes

Não me deixaram prender as palavras
no mais alto clamor da manhã.
E nem uma candeia acesa
irrompendo entre o nevoeiro capaz
soube ser cais sereno das palavras silenciadas.
Queria ter mão nas palavras
dar-lhes mel forte
cores morígeras
um canto sem impurezas
usá-las para caiar as paredes sujas
e ciciar ao ouvido estrofes de amor.
As palavras mareavam, sem freio,
no céu noturno
num campo de estrelas,
rebeldes.
Queria apanhá-las entre os dedos
sentir o seu apelo telúrico
reinventá-las sem sentirem ultraje.
A manhã embaciada oferecia-se
palco majestoso.
Só que os olhos cansados pelo luto do sono
os sentidos em vertigem desassossegada
os espinhos esbranquiçando o corpo intimidado
a sensação de estar num avesso sem saída
– tudo conspirou para as palavras
serem contumazes em minhas mãos.

1.8.16

#46

Metáfora enfarpelada
no sobrolho entortado
não é método ciente
a não ser 
nos estouvados precipícios 
onde o musgo não medra. 

Saldo positivo

Da vastidão do pensamento
albergo orações sem deus dedicando
colho as ramificações dos caudais céleres
abraço uma miríade de olhos sequiosos.
Devolvo o de mim ao que me ronda,
próximo ou distante,
não interessa,
no sargaço que rumina as ruínas sem norte
sabendo da impureza das palavras
(por isso nunca definitivas).
Dou por mim banhado nas flores da buganvília
colhidas como deve ser
por camponesas diligentes,
antes de beber do cálice do entardecer
o vinho sublime que disfarça a idade.
Tomo nota,
num papel envelhecido,
das contas que rumorejam no pensamento:
arrumados os cálculos,
e passada a pente fino a contraprova,
contracenam os números fidalgos
no rescaldo do saldo positivo.
E sei,
em sina que se desemaranha das nuvens hirsutas,
que a talha dos que porfiam
em demorada paciência
os cobre de ouro puro.

31.7.16

#45

Nas margens encalhadas
entre dois sobressaltos
arde o peito num vulcão
aberto.

30.7.16

Forasteiro

Longe
e de mais para haver lucidez
no restolho que, ácido,
deixa o entardecer sitiado
num entorpecimento banal.
Longe dos dias sabidos
numa lente desfocada à frente das mãos
sem saber das palavras reprimidas
o sal do seu insentido.
Recolhendo das igrejas refrigeradas
um sal
para pavimentar os sobressaltos tugidos.
Meto as mãos na luz clara,
adoçando a lonjura com a baunilha
dos dois-passos-já-adiante
que é a nossa casa.

29.7.16

Impressões

Dá a impressão que o rio nada na corrente
trazendo o dia para fora da sua concha
tomando ânimo num copo de conhaque
no abrigo da esplanada.

O paquete circunstancial faz-se ao rio
trazendo as âncoras à mostra no casco
tomando o rio de amparo à espera do mar
no abrigo da cidade retratada no rio prateado.
       
Uma mulher só fuma cigarro atrás de cigarro
trazendo a tossiqueira em pano de fundo
tomando avidamente o cocktail
no abrigo do chapéu rombo.

Um turista ocidental procura a rua no mapa
trazendo nos preparos da mala projetos mil
tomando de empréstimo a língua arrevesada
no abrigo da paciência de um nativo.

Um cão adestrado responde às ordens do amo
trazendo o brinquedo na boca a tiracolo
tomando água fresca nas mãos do amo
no abrigo da sombra pensada pelo homem.

Um chinês jovem e distinto prega deus
trazendo ostensiva bíblia no regaço
tomando o tempo assoberbado dos incréus
no abrigo de uma paráfrase dos mandamentos.

Um dia arrastado no cenáculo do estio
trazendo uma miríade de promessas infecundas
tomando as rédeas dos ingénuos desprevenidos
no abrigo da provável loucura.

Dá a impressão que os gatos estão gastos
trazendo as mãos baças e as estrofes decadentes
tomando um arroio seco como manancial
no abrigo do porvir vazio.

28.7.16

#44

Um corso inteiro
deitado na fonte fresca
à espera do saque:
e eu juntava os dados
e deitava só os seis.

Incêndio

Em papiro à prova do tempo
escrita a carta de todas as cartas
o tremendo testemunho para memória futura
em linhas desenhadas a ouro
por entre intempéries frígidas
e searas mostrando a pele dura.

O papel deitado ao acaso
voando entre os ventos balizados
ancorado num arbusto seco,
ou errando entre as árvores sem dono
não se sabe se procurando destino
não se sabe se tomada por mãos algumas
que leia suas resoluções.

Datada
a carta tremendamente intempestiva
aluvião de segredos,
segredos a que se pode chamar segredos,
nunca por outros sabidos,
composição inquieta dos calendários
vindouros,
tabulando o pretérito de que se quer rasto:
favores rogados a outros
sem saber se os outros
à hora do deslacrar do papiro
taliões da vontade outra serão.

O papiro perfaz a viagem sem rumo
aterra num campo cheio de flores
a ser consumido pelo fogo.
A carta não tem vontade
nem pode a sua errância ajuizar vontade alguma:
ao deus-dará
abrindo-se de seu lacre
ao ser beijada pelos iniciais lampejos do fogo,
extingue-se, incensada.

Não se soube
se precedeu a extinção do autor seu.

As cinzas pereceram na fértil colheita do fogo
e nem as letras desenhadas nas linhas a ouro
ficaram para memória futura.

27.7.16

O paraíso não

Dei uma volta no paraíso
por onde há nuvens amorfas
e émulos de bailarinas a dormir,
artistas emudecidos
e palradores emasculados,
paisagens acetinadas
e vinhos dignos dos deuses,
praias sem areia
e framboesas sempre maduras,
e jurei que seria uma bandeira desaforada.

Todavia
era um sonho
apenas um sonho.
Imaterial.

Ao contrário dos guerreiros
a quem prometem setenta e sete virgens
não chamo a mim sonhos de tanta abundância
(nem acredito que haja delícia nessas delícias).
Dei uma volta no paraíso
ou talvez apenas
nos escombros de um convento clandestino
onde se aposta em jogos de casino
(ilegais)
por entre a densa nuvem de tabaco.
Julgavam alguns ser um paraíso
– como paraíso podia ser um restaurante gourmet
uma espingarda avariada
o dente de leão amigo
o simulacro de um harém
um poema cozido com perfume de flores.

Desfiz a volta ao paraíso.
Desfiz a desonra promitente dos sonhos.

Embarquei no navio novo
onde só pontuavam marinheiros diligentes
ascetas da sabedoria que importa.
Os marinheiros eram unânimes:
atiravam o dedo para o firmamento
enquanto formulavam a demanda:
“quem acredita num paraíso?”
ou, em sua reformulação:
“para que serve um paraíso?”
Era uma pergunta retórica.
Emudeci
em sinal de não resposta
logo entendida pelos marinheiros
como dupla negativa em resposta.

Quando desembarquei
senti um odor fétido
a subir das entranhas do cais
desde as águas paradas
onde o novo navio estava fundeado.
Não haveria prova melhor
da inexistência do paraíso.

(Mas sempre podiam reclamar
em defesa do paraíso
– ou dos paraísos que interessassem –
que os marinheiros fizeram batota
com as águas do cais.)

26.7.16

Work in progress

A areia movediça.
Não levanta jamais medos:
os segredos foram delidos
e os pés assentam nelas
como mastins esfaimados.
Devoram-se,
as areias movediças.
Extinguem-se os nevoeiros acesos
bolçando lava dos pântanos larvares.
Se havia estertor na praia noturna
quando a luz era ausente e os sumos nada
a grande centelha acesa deu caução
à aprendizagem maior:
percorridos os rochedos de anteparo,
no necessário tirocínio
contra os avassaladores fantasmas sem rosto,
sentiam-se cinco alqueires 
de terreno conquistado ao mar 
dantes medonho.
As espátulas cansadas
foram uma arte servil da grande proeza.
Estão gastas,
as artes rombas,
deixaram sua letra na placa que emoldurou
a proeza.
Agora,
que as janelas ficaram desempoeiradas
e todos os pássaros fazem escala 
no promontório,
já se anda a eito em chão liso
onde havia areias movediças.
Haverá lugares outros,
ermos,
em arremedos sombrios de névoa evaporada
das areias movediças outras.
É empreitada para diante:
o processo interminável 
que passa entre as gerações
até deixar o sublime olhar distante
num mapa firmado com os anéis-diamantes
que são lavra dos diligentes 
que não se derrotam.

25.7.16

Poetiza-me

Agarra-me o braço quente
prende-o à volta dos beijos carnudos
diz-me que serei teu lobo feroz
nas praias sem areia
nas luas que desembaciam o entardecer
com as mãos trémulas no espaço sem céu
com os dedos marcando a tinta rija o corpo
sem temor
sem apressamentos
sem capitular se não nas desregras que ditamos.

Eleva o braço quente
como se fosse tomar conta do sol
e dele bebesse a seiva toda
num profundo caule fervente sem modéstia
no arpejar contumaz que estilhaça as ameias
compondo estrofes ilhéus no corpo sedento
coreografando as pernas entrelaçadas
num vulcão desassisado
num sobressalto perfeito
num êxtase compassado.
                   
Toma o meu braço quente
os alinhavos de uma perfumada flor
diadema incrustado com pedras preciosas
pomar frondejante que asperge algidez
em contraponto com a febre sem esteios
dos corpos indomáveis em bafos desaustinados
em volteios mareados na mesa desemparelhada
sem temor
sem remorso
sem as traves amuradas dos tiranos.

E o meu braço quente em formidável torrente
em teu leito arregaçado recebido
justaposto à pele incensada tua
no apogeu soalheiro sucedâneo de levitação
antes do seu ocaso temporário
antes de guerreiro terçar as balsas do desejo
antes de reacender as candeias da estratosfera
sem se render
sem medrar na decadência
sem recusar a entrega próxima.

24.7.16

Tórrido

O jacarandá frondoso
hasteia a sombra
a dileta pele segunda que aplaca
o estio metido pelos poros.
Assobiariam andorinhas rampantes
não fosse o forno aberto a meio do dia.
As pessoas arrastam os corpos
pelas veredas vagarosas do dia.
Pedem aos jacarandás
que intercedam nas divindades
que aferroam o tempo que faz
– por acreditarem nos poderes dos jacarandás
por suplicarem a ajuda das divindades,
ou deve ser por as credenciarem.
Se olhassem
para o mercúrio de um termómetro
ser-lhes-ia levado ao entendimento
que não há divindades com dedo na meteorologia
não há intercessão das árvores inertes
nem porventura chegam às divindades
a não ser por projeção da incapacidade 
dos homens.
É neste estado
(de liquefação dos corpos e do resto)
que o esteta empoleirado no arco de granítico
proclama:
abriguem-se sob os jacarandás
se querem que o calor derreta o seu bastão.
E bebam
de tudo o que for possível
álcool de preferência
que, num ápice,
arrefecem em hibernação.

23.7.16

Torre bela

O arco melódico
entra no firmamento
sem supor franjas inertes
na tradução das inclinações serenas.
As pedras não estão encardidas:
todos os pés nelas passeantes
cuidaram de as tornar alvas
purificadas no desejo dos beijos
contumazes.

As pedras dançam
remexem-se
remoem com intensidade
os terramotos interiores
os que já tiveram tempo
e os que estiverem por vir.
É na torre bela
majestosa interpretação das almas maiores,
das almas que tudo compõem
com a prestidigitação dos singelos dedos,
que as paisagens se dilaceram
as lágrimas se enxugam em lenços vivos
os freios se libertam na magnífica orla da vida.
Na torre bela
onde a moeda que conta
é a fruição dos sentidos cunhados
nos mais preciosos metais
enfeitados com as flores macias
e com perfume embriagante.

Para
num êxtase
tudo se entregar ao altar
onde somos curadores da audácia
mestres na destreza
que é dobrar o braço ao risco
e às carantonhas que são imagem sombria
sem esteios terem,
porque não deixamos.

22.7.16

Dilemático

Um desfiladeiro sem baias
mesmo no epicentro de tudo
desafia o corpo leniente.
Os músculos apertados
berram o medo do precipício;
o desfiladeiro pode ser fatal
tamanha a altura da queda
se o corpo desajeitado
não for diligente.
Porém
o corpo pode ser prisioneiro
da letárgica indolência
se recusar o desafio do desfiladeiro.
É matar ou morrer
- atira o observador atento,
atraiçoado por uma desatenção:
na apoplexia do dilema
o corpo sabe
que é morrer, ou morrer.
Só não sabe quando chega primeiro.

21.7.16

Mãos arcaicas

As mãos cansadas ditam o suor
em erupções convulsivas.
As mãos debatem-se em suas rugas
são o espelho de um navio decadente
ocaso que espera pelo tempo devido.
As mãos velhas
protegem-se das arestas vivas
da convivência com as cinzas depostas
nos canteiros vazios.
Vulcões incandescentes
que degelam glaciares inteiros,
fogos ininterruptos que derrotam o torpor.
As mãos servis
abraçam a árvore centrípeta
cingem-se à cintura fina que espera
um abraço demorado
ou um beijo que levite.
As mãos com as rugas todas
são um mapa gasto na lassidão do papel
uma voz gutural e, todavia, em surdina
o plástico tornear das marés vivas
que teimam em adulterar as cores vivazes.
Mãos destas
em serena coreografia das palavras vitais
congraçam o desgaste do tempo.
Mãos cansadas e enrugadas
apaziguam o temor pelo tempo exíguo.
Colhem o sal do tempo
e transfiguram-no em casas sadias
retemperadoras
templos soalheiros à espera de quimeras.
E o mar todo
refugiado nas palmas das mãos.

20.7.16

Eureka

As bainhas da ideia
coziam-se com os ramos
das árvores primaveris.
Debatiam-se, as palavras
– as palavras particularmente certas –
no tojo florido das serranias altas.
Antepunham-se vozearias interiores
desafiando a alvura da ideia,
demónios na vez da contraprova precisa;
nos copos amarelos
a espuma da cerveja convocava
os repensares que tivessem carestia,
um chamamento aos olhos felinos
desembaciando a terra do pensamento.
Em linha
perfeitamente atirados por cima do ocaso
as fazendas translúcidas levantavam o véu
e os copos já despidos
celebravam os campos dourados
onde a ideia se mostrava,
ufana.

19.7.16

#43

Procuração a tinta-da-China
(indelével e sem mácula)
para não caucionar
retrocessos ou arrependimentos.